Por: João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas | 19 Mai 2018
Para o teólogo José María Castillo Sánchez, a originalidade do cristianismo reside no seu Deus, que não é uma figura celestial e abstrata. Ou seja, está no Cristo, destacado como o próprio Deus encarnado, um Deus humano. “Não podemos conhecer Deus se nos limitarmos ao ‘sagrado’, ao ‘religioso’, ao ‘divino’, ao ‘infinito’... Tudo isso é apenas a ‘representação’ que nós, a partir de nossa ‘imanência’, fazemos do ‘Transcendente’. O cristianismo afirma que conhecemos Deus em Jesus”, reflete. Por isso, José María destaca que a grande novidade de Francisco é ser um Papa mais humano, aquele que resgata o sentido dos primeiros seguidores de Cristo. “O que é mais genial e original no papa Francisco é que, na medida em que ele é ‘mais humano’, esta mesma medida nos revela a Deus mais claramente”, pontua.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o teólogo explica que esse humanismo de Francisco se manifesta quando ele “sente a proximidade e as necessidades dos doentes, dos pobres, dos que vivem separados ou afastados”. “Esta profunda humanidade de Francisco é a reprodução da profunda humanidade de Jesus”, destaca. Para o teólogo, com suas ações e posições diante dos desafios do mundo de hoje, retomando sempre o Evangelho como ponto de partida, Francisco traz à luz o que de fato é essencial para ser cristão em nosso tempo. “O cristianismo é isto: cada qual em seu trabalho, sua tarefa, sua vida. Mas tudo centrado em um ‘projeto de vida’, que é o mesmo projeto vivido por Jesus. O que mais necessitamos no mundo de hoje são homens e mulheres livres, focados em reproduzir o projeto de vida de Jesus”.
José María também critica a teologia de hoje que, segundo ele, segue presa à escolástica medieval. Lógica que talvez possa ser quebrada através do humanismo atualizado em Francisco. “Somente quando a Teologia sintonizar o ‘humano’ é que entrará na mesma sintonia que Jesus, Deus, a nossa humanidade e as necessidades atuais dos seres humanos”.
José María Castillo Sánchez | Foto: Paules Zaragoza
José María Castillo Sánchez é teólogo espanhol, integrou a Companhia de Jesus até 2007. Boa parte de sua produção teológica é descrita por ele mesmo como “meu itinerário teológico”. Entre suas produções mais recentes, destacamos La religión de Jesús. Comentarios al Evangelio (Desclée De Brouwer, 2017), La laicidad del evangelio (Desclée De Brouwer, 2014), La Iglesia y los Derechos Humanos (Desclée De Brouwer, 2007) e os três volumes de Teologia Popular (Loyola, 2016).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor tem dito que Francisco deu uma guinada ao papado. No que consiste essa guinada? E ela tem volta?
José María Castillo Sánchez – É fato que o papa Francisco deu um novo rumo à Igreja. Portanto, é possível falar em uma "guinada ao passado". Além disso, a cada dia vejo mais claramente que a nova "guinada" da Igreja não tem mais volta. Principalmente, se considerarmos que a nova "guinada" da Igreja está apenas começando. É preciso certo tempo para estabelecer a solidez e a força de uma mudança de vida, de convicções e de costumes, pois ainda não estávamos acostumados a ver e a vivenciar a "religiosidade" de maneira diferente, em uma nova e distinta forma.
IHU On-Line – O que distingue Francisco de outros pontífices?
José María Castillo Sánchez – A diferença ou distinção entre Francisco e os pontífices anteriores é que Francisco se posiciona como um Papa "mais humano". Para entender a importância que isto tem e o que representa, é preciso considerar que a originalidade do cristianismo se encontra em seu Deus, que é um "Deus humanizado". Porque a "encarnação" de Deus é a Sua "humanização". O Deus transcendente (o Deus que nos "transcende" e, portanto, não pode ser conhecido a partir da condição "imanente" do ser humano) nos é revelado e se comunica conosco através de Jesus de Nazaré. Isto é o que nos é dito em João 1, 18 (cf. João 1, 14). E mais claramente ainda em João 14, 8-11: em Jesus, enxergamos Deus. Em Jesus, aprendemos o que Deus quer e o que Deus rejeita. O mesmo foi dito em Mateus 11, 27 par. Da mesma forma que também foi afirmado em Filipenses 2, 6-7. E em Hebreus 1, 2.
Portanto, Jesus é a revelação de Deus. A "Encarnação de Deus" é a "Humanização de Deus". Assim, não podemos conhecer Deus se nos limitarmos ao "sagrado", ao "religioso", ao "divino", ao "infinito"... Tudo isso é apenas a "representação" que nós, a partir de nossa "imanência", fazemos do "Transcendente". O cristianismo afirma que conhecemos Deus em Jesus. Ou seja, o conhecemos por intermédio do Evangelho, em que Jesus ocupa papel fundamental e central. Então, Jesus é Deus. Mas é o Deus presente "no humano", em um ser humano. Consequentemente, conhecemos Deus e o encontramos em um ser "perfeito em sua humanidade", como definido pelo Concílio de Calcedônia [1] (no ano de 451. Denz-Hün. 301). O que é mais genial e original no papa Francisco é que, na medida em que ele é "mais humano", esta mesma medida nos revela a Deus mais claramente.
IHU On-Line – Já há bastante tempo o senhor vem denunciando um empobrecimento da teologia. Como se deu esse processo? Até que ponto podemos afirmar que a proposta de Francisco de uma “Igreja em saída” é potente para promover uma renovação teológica?
José María Castillo Sánchez – A teologia se empobreceu porque continua dependendo das ideias fundamentais da Escolástica medieval. É a teologia que acabou sendo sistematizada nos séculos XII-XIII. A teologia que tinha como base ideológica a filosofia do helenismo do século V (a.C.) e que foi elaborada a partir da Teologia de São Paulo. Mas acontece que Paulo não conhecia Jesus, nem se interessava pelo Jesus histórico. Paulo conhecia o Ressuscitado. Não conheceu o "ser humano" que foi o Jesus histórico.
A partir dessa fundação, a Teologia não pode ser atualizada. É e sempre será uma teologia estagnada e presa a um passado que não existe mais. Somente quando a Teologia sintonizar o "humano" é que entrará na mesma sintonia que Jesus, Deus, a nossa humanidade e as necessidades atuais dos seres humanos.
IHU On-Line – Ao colocar a Igreja de hoje em perspectiva aos dilemas do mundo contemporâneo, que conceito de cristão Francisco vem imprimindo?
José María Castillo Sánchez – Se nos concentrarmos no "Jesus do Evangelho", logo fica claro que as três grandes preocupações de Jesus eram: 1. a saúde (relatos de cura); 2. a comida compartilhada (relatos de refeições e banquetes); 3. as relações humanas (sermões e parábolas). São as mesmas preocupações do papa Francisco. Este Papa sente a proximidade e as necessidades dos doentes, dos pobres, dos que vivem separados ou afastados. Esta profunda humanidade de Francisco é a reprodução da profunda humanidade de Jesus.
Por outro lado, nessas três grandes questões estão os grandes desafios e as enormes necessidades que a grande maioria da população mundial vive. Nem a política, o dinheiro ou a tecnologia resolvem esses problemas.
IHU On-Line – Em que medida podemos relacionar a teologia latino-americana com os posicionamentos tomados por Mario Jorge Bergoglio diante dos desafios do mundo de hoje?
José María Castillo Sánchez – A Teologia Latino-americana, centrada na Teologia da Libertação [2] , foi o movimento teológico mais importante vivido pela Igreja depois do Concílio Vaticano II [3] . Foi uma série de propostas e de ideias geniais. Hoje, temos uma espécie de insegurança e de medo de que toda aquela contribuição nova e inédita tenha perdido parte de sua originalidade. Na realidade, acho que teríamos de recuperar o que há de mais original (e desconcertante) que encontramos no conjunto dos relatos dos evangelhos: o ponto central do Evangelho não é a Fé, mas o Seguimento de Jesus.
Jesus tolerou as dúvidas, medos e obscuridades dos discípulos no que se refere à fé. Portanto, Jesus repreendeu os discípulos por sua pouca fé, seus medos e sua descrença. No entanto, ele tolerou suas deficiências no que diz respeito à temática da fé. Jesus foi mais exigente no que se refere ao "Seguimento". Diante de seu chamado, "Siga-me", aqueles que eram chamados abandonavam tudo "imediatamente" e partiam com Jesus. Esses chamados ao "seguimento" envolviam um mistério: Jesus não dá explicações, não diz os motivos pelos quais fazia as convocações, não propõe um projeto ou estabelece condições. Ele apenas convoca. O próprio Jesus, por si só, é o chamado. Este consiste em abandonar tudo e colocar nas mãos de Jesus a segurança da vida.
O cristianismo é isto: cada qual em seu trabalho, sua tarefa, sua vida. Mas tudo centrado em um "projeto de vida", que é o mesmo projeto vivido por Jesus. O que mais necessitamos no mundo de hoje são homens e mulheres livres, focados em reproduzir o projeto de vida de Jesus. O segredo da "sedução" do papa Francisco é que ele é um crente que segue Jesus. Por isso ele exerce a sedução que Jesus exercia.
IHU On-Line – Nesses cinco anos de pontificado de Francisco, para onde o clero está indo?
José María Castillo Sánchez – Há muitos clérigos que veem em Francisco o futuro da Igreja, para encontrar saídas para tantos problemas que temos. Mas também existem muitos clérigos-funcionários, que se tornaram parte do clero apenas para viver. E viver o melhor possível. Ser clérigo não é uma "dignidade". É um "despojar-se" de tudo o que nos impede de sermos livres como o vento, como Jesus disse a Nicodemos.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta as críticas e resistência a Bergoglio?
José María Castillo Sánchez – Só conseguem concordar com Bergoglio aqueles que enxergam claramente e se esforçam para seguir Jesus, tendo o Evangelho no centro de suas vidas. Aqueles que não sentem isso, enxergarão perigo em Bergoglio. E não poderão suportá-lo.
IHU On-Line – Quais os temas que, apesar das guinadas de Francisco, ainda não avançaram na Igreja? E, especificamente quanto à figura de Bergoglio, quais são seus limites?
José María Castillo Sánchez – Falta muito a ser feito. Acima de tudo, manter a unidade da Igreja, tolerando cada vez mais para que todos os dias haja mais liberdade. Mas isso só será alcançado mediante uma religiosidade (espiritualidade) muito profunda. No momento, é urgente renovar o Direito Canônico, para que nele se encaixem os Direitos Humanos. Renovar a Liturgia também é urgente. As pessoas não entendem mais os rituais de mais de mil e quinhentos anos atrás.
IHU On-Line – O que o senhor ainda espera desse pontificado?
José María Castillo Sánchez – Há aqueles que desejam que o Papa suprima a lei do celibato, que permita que as mulheres sejam ordenadas sacerdotisas, que mude alguns cardeais etc. Mas não esqueçamos que, se houve tanta oposição por conta do problema dos divorciados, poderíamos temer razoavelmente que as decisões de maior envergadura pudessem causar uma cisma na Igreja. As pessoas "tradicionais" e "fanáticas" são muito perigosas e o Papa tem que governar de maneira a manter a Igreja unida. A melhor coisa que o Papa pode fazer é continuar vivendo o Evangelho, próximo daqueles que mais sofrem. Isso é o que pode mudar a Igreja e o mundo.
IHU On-Line – No início deste ano, o senhor recebeu um telefonema do Papa, que, mais tarde, gerou um encontro seu com ele realizado em abril. Como foi? O que mais lhe marcou nessa conversa [4]?
José María Castillo Sánchez – Por iniciativa do próprio Papa, ele telefonou um dia para minha casa. O que mais me impressionou foi o que me disse quando conversei com ele em Santa Marta no Vaticano: "Siga escrevendo e publicando, pois isso faz muito bem para as pessoas". Nestas palavras de confiança, escutei que Deus se fia em mim. Por que não temos esse coração de bondade e humanidade? Se Deus se fia tanto em mim, não irei confiar em Deus? O seguimento de Jesus é a chave.
Notas:
[1] Concílio de Calcedônia: concílio ecumênico realizado entre 8 de outubro e 1º de novembro de 451 na Calcedônia, cidade da Bitínia, na Ásia Menor. Foi o quarto dos primeiros sete Concílios da História do Cristianismo, onde foi repudiada a doutrina de Eutiques do monofisismo e declarando a dualidade humana e divina de Jesus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Por não ter sido aceito por alguns movimentos cristãos ortodoxos, o Concílio deu origem à Igreja Copta e outras Igrejas nacionais. (Nota da IHU On-Line)
[2] Teologia da Libertação: escola importante na teologia da Igreja Católica, desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. Surge na América Latina, a partir da opção pelos pobres, e se espalha por todo o mundo. O teólogo peruano Gustavo Gutiérrez é um dos primeiros que propõe esta teologia. A teologia da libertação tem um impacto decisivo em muitos países do mundo. Sobre o tema confira a edição 214 da IHU On-Line, de 2-4-2007, intitulada Teologia da libertação.Leia, também, a edição 404 da revista IHU On-Line, de 5-10-2012, intitulada Congresso Continental de Teologia. Concílio Vaticano II e Teologia da Libertação em debate. (Nota da IHU On-Line)
[3] Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962 pelo papa João XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em cada ano. Seu encerramento deu-se a 8-12-1965, pelo papa Paulo VI. A revisão proposta por este Concílio estava centrada na visão da Igreja como uma congregação de fé, substituindo a concepção hierárquica do Concílio anterior, que declarara a infalibilidade papal. As transformações que introduziu foram no sentido da democratização dos ritos, como a missa rezada em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este Concílio encontrou resistência dos setores conservadores da Igreja, defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus frutos foram, aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja à estrutura rígida preconizada pelo Concílio Vaticano I. A revista IHU On-Line publicou na edição 297 o tema de capa Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, bem como a edição 401, de 3-9-2012, intitulada Concílio Vaticano II. 50 anos depois, e a edição 425, de 1-7-2013, intitulada O Concílio Vaticano II como evento dialógico. Um olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo. Em 2015, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promoveu o colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade. As repercussões do evento podem ser conferidas na revista IHU On-Line 466, de 1-6-2015. (Nota da IHU On-Line)
[4] O IHU, na seção Notícias do Dia, em seu sítio, publicou a reportagem Francisco telefona para José María Castillo, teólogo espanhol: "Quero lhe agradecer o que você está fazendo por mim", em que detalhe esse contato do Papa com o teólogo. Em 20-5-2018, o IHU também publica a reportagem Papa reabilita teólogo espanhol. "Leio com prazer seus livros, que fazem muito bem às pessoas", disse Francisco a José María Castillo, que narra o encontro entre os dois. (Nota da IHU On-Line)
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O humanismo de Francisco revela a essência do ser cristão. Entrevista especial com José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU