04 Dezembro 2018
No segundo protesto contra o aumento do combustível, a capital francesa se converteu, em um par de horas, em um cenário de uma monumental batalha campal, protagonizada pela polícia e grupos de origens ideológicas muito diversas.
O artigo é de Eduardo Febbro, publicado por Página/12, 03-12-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
De Buenos Aires para o Arco do Triunfo devastado, da Cúpula do G-20 aos destroços inauditos que o movimento dos coletes amarelos provocou em Paris durante as últimas horas: apenas chegava na França, e a agenda política do presidente Emmanuel Macron estava carregada de nuvens tempestuosas. O segundo protesto convocado pelos coletes amarelos contra o aumento da gasolina deixou um cenário de ruínas. Foram 700 presos, 140 feridos e vários bairros da capital francesa literalmente destruídos pelos manifestantes. Paris se converteu, em um par de horas, em palco de uma monumental batalha campal protagonizada pela polícia e grupos de origens ideológicas muito diversas. Os fascistas entoavam pelas ruas seu canto recorrente: “On est chez nous” (Nós estamos em casa). Os anarquistas e a esquerda, enquanto isso, cantavam o hino da Resistência Francesa durante a ocupação nazista no país: “Le chant des partisants” (O canto dos partisanos). Toda as formas de descontentamento se cruzaram em Paris e muitas outras cidades para revelar uma violenta irritação que o Executivo não antecipou, nem sabe como desativar. França se rebelou, se vestiu com trajes revolucionários sem que isso implique que se trata de uma revolução social de esquerda ou de direita. Todos convergem em um mesmo cenário e uma exigência comum: “Macron demisión”. A extrema-direita de Marine Le Pen sopra sobre as brasas e a esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon também apoiam o movimento. Ante a sensação de caos e vazio de autoridade, ambos líderes exigiram ontem que se levassem a cabo eleições legislativas antecipadas.
Emmanuel Macron visitou no domingo uma das zonas de enfrentamentos do Arco do Triunfo, e depois convocou uma reunião de urgência na sede da presidência que ao fim dela decidiu não se expressar. Por ora, somente se decidiu que o primeiro ministro, Edouard Philippe, receberá nas próximas horas os representantes dos partidos políticos e dos coletes amarelos. A faísca que se incendiou nesse outono, depois que o Executivo incluíra no seu programa sobre a transição ecológica que se nivelaria o preço da gasolina com o da gasolina normal, desembocou em um incêndio cujos atores são a França rural, a das cidades pequenas, a França do povo que “não chega ao fim do mês com os seus salários” (informe da Fundação Jean Jaurès), a França movida pelo sentimento de que, com sua pobreza, está pagando a riqueza dos outros. Os coletes amarelos e aqueles, oriundos de territórios políticos opostos, vão se somando a eles com o passar das semanas, são a radiografia de um país fraturado há muito tempo. A fissura explodiu na rua sem que haja líderes identificáveis, porta-vozes ou alguém com quem negociar. É um furacão horizontal, um movimento de ruptura pluri-ideológica, uma erupção que arrasa com o que se encontro no caminho. Macron paga nas ruas o tributo da sua política e do apelido que se colocou quando recém havia assumida a presidência em 2017: “o presidente dos ricos”, o “presidente das cidades”. Essa ironia inicial é a que aponta hoje contra o mandatário como uma arma de grosso calibre.
O resultado dessa bronca é, em Paris, a decoração de um filme de catástrofes: carros incendiados, calçadas levantadas, lojas destruídas e saqueadas, vidraças despedaçadas, prédios queimados. Um vandalismo com essa força não tem precedente. Muitos dos manifestantes que se uniram aos protestos estão ali com a única intenção de semear o caos. Os grupos de extrema-direita e os chamados “indentitaires” (adoradores da identidade nacional) aportam as doses necessárias de transbordamentos e enfrentamentos. O que Emmanuel Macron desenhou como narrativa eleitoral em 2017 veio para cima em 2018: o presidente adepto à globalização contra as forças localistas ou nacionalistas. É essa a França local que se rebela hoje. O país dos centros urbanos globalizados fica em casa, o outro sai à rua. A desigualdade social e territorial vai se transformando em uma massa social em ação, inclusive se os protestos não são em nenhum caso massivos. O respaldo, não obstante, cresce. As pessoas que antes olhavam para os coletes amarelos como se fossem uma minoria desinteressante, começou a respaldá-los. A Argentina de 2001 se reencarnou na França macronista de 2018, onde circula o lema central “que se vão todos”. O governo parece tão perdido que está contemplando a possibilidade de decretar estado de emergência no país. Essa vez não seria contra a ameaça terrorista como ocorreu depois dos atentados de novembro de 2015, mas sim contra sua própria sociedade. Apostou pelo esgotamento do movimento e depois na cartilha de violência que poderia prejudicar sua legitimidade em relação aos protestos. A presidência perdeu duas vezes.
A oposição política, os Republicanos (direita), a França Insubmissa (esquerda radical) e o Reagrupamento Nacional (extrema-direita, antigo Front National) correm com uma rede atrás dos coletes amarelos para captura-los para suas filas. No entanto, até agora, o caráter espontâneo e radicalmente antissistema dos coletes amarelos lhes impediram capitalizar o movimento. Os coletes amarelos não dão marcha ré ante nenhum sinal do sistema, nem sequer àqueles que dizem respeito à história mais profunda da França. No Arco do Triunfo se encontra um dos mais emblemáticos monumentos do país, a Tumba do Soldado Desconhecido. No final de semana, os manifestantes o destruíram parcialmente e o encheram de pichações contra Macron. Em 1º de dezembro inaugurou-se uma crise muito perigosa para a continuidade das políticas do Chefe de Estado. Os coletes, a oposição e inclusive vários parlamentares do próprio partido macronista, LRM (A República em Marcha), agora pedem ao governo que aplique uma moratória ao aumento da gasolina. O perigo está latente do outro lado, nessa convergência das ruas entre extremas-direitas e extremas-esquerdas e gente escassamente politizada contra Emmanuel Macron.
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Macron chegou a uma Paris com resquícios da raiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU