28 Julho 2018
Escritora portuguesa Isabela Figueiredo, que fala na Flip no sábado, comenta sua trajetória de "retornada" de Moçambique e a centralidade do corpo na sua obra.
A entrevista é de André de Oliveira, publicada por El País, 26-07-2018.
Quando pequena, a escritora Isabela Figueiredo, lia as histórias de Charles Dickens e pensava algo como: “Epa, este não é o mesmo mundo em que cá estou a viver”. É que nos livros do britânico, havia dois tipos de personagem. Ou os velhacos avarentos ou umas pessoas, assim, muito boas, muito generosas. Onde estavam, então, a gente da vida real, como seu amado papá, que, num momento, podia ser o homem mais carinhoso e generoso que ela conhecia, para, no seguinte, dar um encontrão ou um pontapé em um negro e gritar-lhe que ele não passava de um parvo?
Lá por volta dos anos 2000, Isabela, que participará de uma mesa na programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) neste sábado, encontrou dentro de si a voz literária que procurava fazia anos. Uma voz que lhe exigia que esse mundo, o colonial português que conheceu em Moçambique, fosse revelado. Assim, em 2009, publicou Caderno de Memórias Coloniais, recém lançado pela Todavia – responsável, também, pela publicação de A Gorda, seu terceiro romance, de 2016. E ela não amenizou para o lado dos que, como ela, são conhecidos como retornados – aqueles que, uma vez derrubado o salazarismo, e declarada a independência das ex-colônias africanas de Portugal, regressaram à Europa.
“Os brancos iam às pretas”. Com essa frase começa seu Caderno de Memórias Coloniais para depois, parágrafos à frente, concluir: “As incursões sexuais pelo caniço não assombravam o seu futuro, porque uma negra não reclamava paternidade. Ninguém lhe daria crédito”. O resultado do livro foi imediato. Figueiredo acabava de ganhar a antipatia de uma boa parte dos regressados ao relatar o que viu na infância, expondo não apenas a sociedade colonialista, mas centrando sua sinceridade transbordante na figura do próprio pai. “Os retornados tiveram um choque enorme, odiaram-me e ainda odeiam-me, mas eu estou cá bem com minha consciência”.
Mas esse assunto ainda é um tabu em Portugal?
Ainda, mas menos desde que saiu o Caderno de Memórias Coloniais. Antes do livro, era um assunto não dito, um assunto que não se tratava, a não ser para dizer que os portugueses haviam sido uns colonialistas especiais, diferentes dos belgas, espanhóis e ingleses. O discurso oficial era que havíamos tido uma colonização muito mansa, muito boa e éramos muito amiguinhos da população africana.
E por que o livro surgiu dessa forma autobiográfica tão contundente?
O que aconteceu é que eu comecei a ver nas livrarias uma série de livros de ex-colonialistas, que publicam seus livros de autor falando sobre a vida cor de rosa das colônias. E eu vendo que aquilo, não sendo completamente mentira, era uma construção da realidade. Eu tinha, sim, vivido aquela vida boa, aquela vida ao ar livre, cheia de frutas e de maravilhas. Mas eu também tinha visto outras coisas que não me tinham agradado quando eu era criança, inocente, e supostamente não perceberia a perversidade à nossa volta. Essa perversidade era a discriminação e o racismo, que eu enxergava sem que ninguém me houvesse explicado o que era. Nunca ninguém havia me falado que o tratamento aos negros não era correto, ou justo. Eu compreendi isso sozinha, de acordo com aquilo que veio comigo e de acordo com o que aprendi em minha Igreja Católica. De acordo com o exemplo de Cristo, de acordo com o que eu lia na literatura inglesa ou russa.
Por retratar uma realidade diferente, a literatura te ajudou a abrir os olhos para a sua própria?
Sim. Quer dizer, aqueles eram livros modelo. A literatura também tem uma função pedagógica de nos apresentar modelos. Nos personagens de Charles Dickens, por exemplo, eu via modelos de generosidade e avareza e depois olhava ao meu redor e me calava. Se aquilo tudo era normal para eles, para mim nunca foi. Mas eu vivia com esse silêncio dentro de mim. Como minha mãe sempre dizia: “Tu és criança, tu não tens querer”. Eu via, ouvia, pensava e guardava.
Em 1975, mais ou menos um ano depois do fim da ditadura salazarista, e da independência das ex-colônias, como Moçambique e Angola, a escritora, nascida moçambicana, retornou a Portugal aos doze anos de idade. Os pais resolveram lhe enviar de volta à Europa, porque Moçambique havia se tornado um lugar perigoso para jovens brancas como ela. “Os negros tinham sido amarfanhados, maltratados, subvalorizados, durante anos pelos colonialistas racistas, então, quando veio a independência, passaram eles a exercer suas vinganças pessoais também”, diz. Ela foi, os pais ficaram.
Quando chegou a Portugal, descobriu que os portugueses não estavam interessados na história dos retornados e os apertos que passaram em Moçambique depois do fim do colonialismo. “Eles diziam: ‘está claro, tu, branco, que estava lá a roubar dos pretos, tiveste o que merecia”, conta. Assim, os retornados fizeram de tudo para se esconder na sociedade portuguesa. As batas africanas, que Figueiredo usava em Moçambique, por exemplo, ficaram trancadas em seu armário, pois a marcavam como uma retornada. Por isso, diz, seu Caderno de Memórias Coloniais causou tanta raiva entre os retornados, já que revelou a extensão do apartheid social imposto pelos portugueses na África.
E por que seus pais não partiram logo com você também?
Meu pai era um racista sim, um grande racista, mas as coisas não são tão simples. Meu pai amava aquela Moçambique. Seu racismo era paternalista. Ele tinha uma visão europeia do mundo, civilizadora, que era: “Eu, europeu, vou chegar aqui nesta terra e vou ensinar esses homens essas mulheres a serem europeus”. Para mim, meu pai era um bom pai, para os negros, em sua visão, era um pai mau. Era coisa muito paternalista. Na cabeça dele, quando ele dava pontapés, encontrões, e gritava, ele estava a ensiná-los a serem homens sérios. Os portugueses agiram dessa forma monstruosa: não compreendendo uma realidade, não querendo saber dela, queriam forçar a sua própria. Foi o que fizemos em África e, imagino, aqui no Brasil também.
Seu primeiro livro [sem publicação brasileira] é de 1988, mas foi só em 2009 que você foi publicar esse Caderno de Memórias Coloniais. Por que a demora para tocar no tema?
Um dia eu escrevi uma crônica sobre a construção da barragem de Cahora Bassa, onde meu pai trabalhava depois de minha volta a Portugal. Falava sobre a beleza daquele lugar. E o [José Eduardo] Agualusa, que escrevia no mesmo jornal que eu, veio ter comigo e disse: “Ah! Mas e os massacres do Wiriamu? Tu esqueceste dos massacres”. Eu digo honestamente que nunca tinha ouvido falar disso, que foi um massacre que os portugueses fizeram naquela zona em que meu pai trabalhava. Eu não era uma pessoa politizada. Atenção. Meu pensamento de criança não era politizado. Era o meu eu, era meu sentido de Justiça que me dizia o que estava certo e o que estava errado. Nessa altura, eu ainda estava à procura do que queria escrever, eu não sabia o que queria escrever. Só decidi que queria falar sobre isso, quando vi os livros na livraria contando de um Moçambique que não era o meu.
Você nasceu em um lugar que não existe mais. Sente-se apátrida?
Passei a minha vida a me sentir apátrida, porque eu sentia ser uma portuguesa que não era portuguesa, que era moçambicana. Agora, desde que voltei a Moçambique, percebi que não sou moçambicana. Sou portuguesa. Já não sou apátrida. Tem aqui um chip moçambicano que, de vez em quando, é ativado, mas eu sou portuguesa. A realidade de Moçambique hoje é África. O que eu percebi? Percebi que minha infância não foi vivida em África, foi vivida numa Europa construída na África. O mundo em qual eu vivi, era um mundo europeu que se servia da mão de obra africana e se servia também da vida dos africanos. Quando estive em Moçambique, depois de muito tempo, reconheci a geografia, a fauna, a flora, mas o ambiente era outro. E o ambiente faz a terra.
Ler os dois livros da autora, que foi professora secundária durante toda a vida e só agora está conseguindo se dedicar mais a literatura, é se deparar com uma realidade complexa e dura. Se seu pai era um racista - talvez o maior exemplo de racista que tenha conhecido na infância, porque o mais próximo - , ela também o amava. E a relação com ele aflora no livro a todo momento. Se a Moçambique colonialista era infernal para a população de negra origem e direito daquela terra, havia, ainda assim, algo de verdadeiro nos relatos edulcorantes dos retornados que tanto incomodaram a escritora.
Nesse sentido, Caderno de Memórias Coloniais, totalmente autobiográfico, pode ser visto como um primeiro volume de A Gorda, seu livro seguinte, em que a protagonista, Maria Luiza, ela também uma retornada, se vê às voltas com seu corpo que lhe desagrada e com as memórias de seu pai e de Moçambique. “Para mim, a Maria Luiza, protagonista de A Gorda, que faz uma cirurgia bariátrica, é praticamente a continuação da menina do Caderno. É uma mulher muito forte, muito decidida e que sabe o que quer e que luta, que tem seu mundo”, diz.
Para além da brutal sociedade colonialista que aparece, nos dois livros o corpo ocupa papel de protagonista. O corpo que se confunde com o corpo do pai, a descoberta do corpo...
Isso é porque o corpo é importante para mim. Eu gosto muito de viver e, para viver, eu preciso ter um corpo. O corpo dá acesso aos sentidos, ao prazer e também à dor. No primeiro, ele está presente de uma maneira muito freudiana, que é o amor pelo meu pai. Que é um amor real, um amor físico. Quase incestuoso, sabe? Havia qualquer coisa de quase incestuosa naquela relação. E eu devo dizer, na minha vida, desejaria ter encontrado um homem como meu pai. Para poder amar. Percebe o que estou a dizer-lhe? Há aqui, de fato, uma coisa minha. Um fascínio imenso pelo meu pai. Não pela cabeça do meu pai, não pelo racista paternalista. Mas pelo homem generoso e bem humorado que também existia.
E você sente saudades do corpo dele, porque isso era ele?
Sinto e eu adoraria ter encontrado um companheiro como ele. Essa parte do amor, que há naquela criança pelo pai, é muito verdadeiro. Eu sinto muito isso. Sinto saudade do corpo do meu pai. As minhas mãos são muito parecidas com as do meu pai. Eu sou muito parecida fisicamente com meu pai. E, olha, quando estive em Moçambique, eu chorei imenso de saudades do meu pai e uma forma que eu tinha de me consolar, era me abraçando. Eu abraçava meu corpo, porque quando eu abraçava meu corpo, eu sentia que era como abraçar meu pai, minha mãe.
É curioso você falar isso, porque no segundo livro o corpo gordo se volta contra a protagonista.
Pois. Mas nós não somos coerentes. Nós estamos cheios de contradições. Nós queremos e não queremos, gostamos e não gostamos, desejamos e não desejamos. Somos paradoxais, contraditórios. Sim. A protagonista ela não vive bem com seu corpo, porque seu corpo a limita, ela é limitada pelo tamanho de seu corpo, ela é limitada pelo olhar que os outros tem de seu corpo. E a própria mãe tem esse olhar.
Por fim, a posição da mulher branca em Moçambique colonial era pior do que em Portugal?
Aí está mais uma das contradições que estamos a falar. A posição da mulher branca na colônia era sempre superior à da metrópole. Portugal era um país muito pobre. Quer dizer, muito rico, com os cofres cheios de ouro, mas era uma ditadura, a população não tinha acesso à riqueza. Meu pai foi para Moçambique para melhorar sua vida. Na sociedade colonial, a mulher tinha mais liberdade. A mulher podia usar a roupa mais curta, podia fumar, podia ter mais liberdade. Na verdade, a chegada dos retornados acabou sendo muito importante para o desenvolvimento de Portugal tal como é hoje, porque nós vínhamos com muita liberdade, com um nível de vida muito alto. Todos nós íamos à escola, o que não acontecia em Portugal. Um dia, se você quiser, faça essa verificação: onde nasceram as pessoas que estão bem colocadas hoje em Portugal?
Angola e Moçambique. É tudo contraditório. E eles não gostam de mim por causa do meu livro, mas a verdade é que eu tenho feito um bom trabalho por eles.
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“Compreendi o racismo sozinha, de acordo com o exemplo de Cristo, com o que lia na literatura” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU