27 Junho 2018
Se um produto anuncia que contém cálcio, potássio, B-12 e ômega 3, fuja dele.
A reportagem é de Juan Revenga Frauca, publicada por El País, 25-06-2018.
Há uma espécie de febre coletiva que nos leva a contar os nutrientes do que comemos. Fazemos isso de forma metódica há mais de um século, quando foram descobertos os primeiros nutrientes e suas funções nos alimentos. Longe de arrefecer, trata-se de uma tendência que vem aumentando à medida que descobrimos funções concretas desses nutrientes em nosso metabolismo. Você sabe: o cálcio é bom para os ossos, a vitamina C para a defesa... e muito cuidado com os carboidratos simples, que disparam a insulina. Esse tipo de coisa.
No terreno mais tenebroso do assunto, uma parte da indústria de alimentos (normalmente, a menos aconselhável) tem se aproveitado de nossa natural inclinação para receber com os braços abertos qualquer mensagem sobre a saúde baseada nos nutrientes. Assim, tentam nos empurrar produtos que fracassariam de maneira estrepitosa em qualquer estimação objetiva de seu valor nutricional. Alguns dos exemplos práticos que encontramos nesse campo – e existem centenas – são a bobagem de enriquecer com ferro os pães e doces industriais, os leites para crianças com zilhões de nutrientes e a absurda tendência de produzir águas "funcionais" agregando ao produto (nesse caso, a água) diversos ingredientes.
A água não precisa de mais nada (Foto: Pixabay)
Como chegamos a pagar o triplo por uma água com vitamina D e zinco?
As vitaminas e minerais foram os primeiros, de modo que são os decanos da faculdade dos nutrientes com superpoderes. Mas há muitos outros além desses veteranos e bem-sucedidos protagonistas: todos eles servem para condimentar – com boas vibrações – qualquer conselho nutricional que se preze. Sem eles, sem sua mera menção ou invocação, parece que qualquer recomendação – ou qualquer ação de marketing alimentar – carece de seriedade suficiente.
Convenhamos: dizer que o ácido docosa-hexaenóico (DHA) – um ácido graxo da família ômega 3 – é benéfico na hora de ajudar o funcionamento normal do coração não é o mesmo que recomendar que a pessoa inclua mais sardinhas e nozes na alimentação. A primeira opção tem muito mais apelo para o consumidor, embora este não tenha nem ideia do que (ou quem) seja o ácido docosa-hexaenóico.
Não se trata de uma opinião gratuita. Este estudo de 2015 mostrou que, embora cada vez mais especialistas em nutrição enfatizem os benefícios para a saúde dos alimentos "naturais" (não processados), muita gente prefere citar nutrientes a se referir aos alimentos quando fala dessas questões. Algo chama mais a atenção se lemos depois este outro artigo de 2010, que diz que argumentos como esse podem fazer você aumentar de peso. Por quê? É fácil: por causa do chamado "paradoxo das pessoas que fazem dieta". Muitas delas acreditam que o mero fato de incluir alimentos percebidos como saudáveis – sejam eles realmente saudáveis ou não, o que importa é a percepção – ajuda a diminuir as calorias das escolhas não saudáveis. Como num passe de mágica!
Embora originalmente todos os nutrientes fossem bem fofinhos, neste universo acontece algo parecido com a Força: temos nutrientes superdescolados que integram o plano Jedi-todo-poderoso; e, ao mesmo tempo, temos nutrientes que são os supervilões. O primeiro grupo é liderado pelas famosas vitaminas e minerais, além das novas incorporações como o ácido oleico – um ácido graxo monoinsaturado –, as proteínas, que continuam surfando na onda há anos, e as fibras, além de muitos outros. Por outro lado, entre os cruéis e capazes de arruinar qualquer prognóstico de saúde com sua mera presença, destacam-se os mais aterrorizantes de todos: as temíveis gorduras.
Logo a seguir vem um novo, mas não menos opressor nutriente-vilão: o açúcar. Entrando um pouco em detalhes, os piores seriam as gorduras saturadas, o ácido palmítico – encarnado no óleo de palma – e os pérfidos aditivos (alguns mais, outros menos, mas todos enfim).
Aqui já passaríamos aos maus nem tão maus assim, como a lactose e o próprio glúten: como você vê, nessa tarefa de repartir nutrientes há um bem e um mal bastante definidos, e a indústria faz isso à perfeição.
A fruta é bem mais que açúcar (Foto: Maxpixel)
Esse panorama propiciou um enorme mercado de produtos "com" – acrescente aqui os nutrientes bonzinhos que desejar – e também de produtos "sem" nutrientes malvados. Dessa forma, as embalagens, a publicidade e o marketing podem vociferar com toda a força que um determinado produto – que, em essência, é uma porcaria – passa a ser interessante pelo simples fato de colocarem o nutriente do grupo da elite, ou por dizer que ele não contém um ou vários dos nutrientes malditos. Assim, a mera menção de nutrientes isolados costuma, na maioria dos casos, convencer, despistar e finalmente enganar os consumidores sobre o verdadeiro interesse nutricional de um produto ou de uma forma de consumo. Isso acontece, por exemplo, quando você une na mesma frase "fruta e açúcar" e algumas pessoas – cada vez mais – resolvem tirar conclusões errôneas. Para isso, bastam apenas artigos como o escrito recentemente pelo dietista-nutricionista Julio Basulto para explicar por quê, apesar de ter açúcar, a fruta não "engorda".
São os perigos do "nutriente-centrismo", também chamado de nutricionismo. Uma ideologia ou corrente que traslada os efeitos isolados de alguns nutrientes ao conjunto de um alimento, enquanto normalmente ignora o efeito sobre a saúde – diretamente ruim ou, no melhor dos casos, nulo – do alimento em seu conjunto. O resultado pode ter um efeito negativo sobre a saúde, por exemplo, quando temos o costume de lanchar pães e bolos industriais enriquecidos com ferro e deixar a fruta de lado porque tem muito açúcar. Também corremos o risco de cair em padrões inadequados de consumo tentando reparar um erro com outro, dando leite enriquecido a uma criança que não come como alguns adultos gostariam que comesse.
Devemos reconhecer que muitos de nós, nutricionistas e especialistas em nutrição, transformamos nossa mensagem numa espécie de jargão incompreensível, ou pelo menos difícil de ser traduzido na prática quando vamos ao mercado. Em muitas ocasiões, os guias alimentares, essas ferramentas que levam à população as mensagens mais elementares sobre o que e quanto comer, têm estado repletas de justificativas em forma de gorduras saturadas, sódio, fibras solúveis e coisas do gênero. Por isso, é cada vez mais necessário abraçar este comentário de uma das figuras mais reconhecidas no panorama mundial da epidemiologia nutricional, o Dr. Dariush Mozaffarian:
"Os atuais postulados e recomendações centrados em nutrientes, além de (sendo generosos) contar com o germe da dúvida em seu interior, são frequentemente utilizados pela indústria para criar confusão numa população completamente midiatizada. Portanto, é hora de concentrar os esforços na criação de guias e recomendações baseadas nos alimentos."
Pode-se dizer mais alto, mas não mais claro. O mais curioso é que essa opinião veio na sequência de um comentário sobre um artigo que ressaltava que talvez fosse necessário rever a noção de que as gorduras saturadas sejam ruins – um velho paradigma nutriente-centrista –, considerando os dados obtidos em pesquisas recentes. Cada vez mais convencido e seduzido pela simplicidade do conselho, volto a convidá-los a seguir a receita de "mais mercado e menos supermercado", de modo que:
Menos ômega 3, DHA e EPA (em alimentos e suplementos) e mais sardinhas.
Menos cálcio e vitamina D enriquecendo leites, bolos, sucos ou o que for, e mais verduras e exercícios ao ar livre.
Menos sucos "sem adição de açúcar" e mais frutas.
Menos bolos industriais com ferro e sem açúcar e mais merenda com fundamento.
Menos barrinhas energéticas enriquecidas com fibra e mais salada de lentilha.
Menos águas supervitaminadas e mineralizadas com coisas, e mais água sem porcarias.
Menos colágeno, mais receitas de bacalhau.
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Menos vitaminas e minerais – e mais comida de verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU