13 Junho 2018
Em 14 de março de 2018, por ocasião da memória de aniversário de nosso fundador, teve início na Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus (Dehonianos) o "Ano do coração ferido". "Tínhamos certeza que o flanco trespassado de Jesus poderia ser o ícone do século XXI", relata o superior general de saída, pe. Heiner Wilmer na carta com a qual saúda a Congregação por ter sido nomeado bispo da diocese de Hildesheim na Alemanha. O coração ferido "é a imagem das fragilidades e das feridas do nosso tempo. O coração aberto de Jesus inclui e acolhe todas as feridas físicas e psicológicas, inclusive as nossas. Considerá-las seriamente, expô-las abertamente, significa cuidar e curar delas - de uma forma humana, cheia de compreensão, com uma disposição empática. Então chegamos à convicção de que a dedicação aos homens e às mulheres desolados, marcados em suas vidas, só poderia ser autêntica se eu mesmo percebo e sou capaz de acolher a minha fragilidade, o meu coração ferido."
A entrevista é de Marcello Matté, publicada por Settimana News, 08-06-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
A que pergunta responde o chamado de um Ano do coração ferido?
Para nós e para mim, pessoalmente, queremos com essa iniciativa investigar qual seria a nossa possível resposta à dor. Para a dor física: há tantas pessoas que sofrem por doenças, acidentes, envelhecimento, guerras e abusos. Para a dor psicológica: há tantas pessoas que estão marcadas por pequenas ou grandes depressões, pessoas que se sentem rejeitadas, não amadas, negligenciadas, que sofrem pelo fim de relacionamentos, ou sobrecarregadas pelo peso de seu próprio passado que no presente pode significar a prisão. Para a dor espiritual: desorientação, perda de fé, incompreensibilidade do silêncio de Deus; as questões da teodiceia são sempre atuais.
Por um lado, nossa sociedade industrializada e competitiva recompensa o homem bem sucedido e o promove como modelo único; por outro lado, a realidade se apresenta mais frequentemente com a face do fracasso. Que resposta podemos dar diante da experiência do fracasso, que é mais real do que o sucesso? O fracasso é a experiência comum, não o sucesso. O coração ferido fala da seriedade com que Deus tomou sobre si, em Jesus, em uma experiência corpórea e não como uma ideia, a dramática realidade do fracasso.
Quais são as implicações teológicas do convite a "olhar para aquele, a quem traspassaram"?
O primeiro desdobramento é sobre a teologia bíblica. Olhar para Aquele a quem transpassaram é uma conexão que vincula o Antigo e o Novo Testamento.
Mateus 25 propõe a identificação de Jesus com o sofredor e o necessitado "quando nós ‘te vimos’ sem roupa, com fome, sem teto e triste". Ao mesmo tempo, Mateus também propõe a identificação do Filho do Homem com os makarioi, os abençoados.
Um adicional caminho teológico é traçado em Filipenses 2, um dos mais antigos hinos do Novo Testamento. Kenosis e encarnação: Deus "se esvaziou de si mesmo" e "se tomou homem". Deus não permanece uma ideia, mas se torna tangível, vulnerável e assume uma phisis, uma natureza que oferece a possibilidade de ser ferida. Deus se coloca na posição de ter que lidar com a possibilidade de ser ele próprio ferido. Deus não evita a experiência da dor. No coração ferido de Jesus podemos olhar e ver o Deus atingido pela dor.
No Salmo 23 ("Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?") aqueles em torno do protagonista zombam dele, por ter confiado em Deus A crítica mais forte à religião, relatada pela própria Bíblia, não é o ateísmo; não é a negação de Deus, mas a acusação de sua maldade. Os ímpios não negam a existência de Deus, mas zombam de sua obra ou, mais ainda, de sua "incapacidade", de seu fracasso.
São Paulo no Areópago quer ser fiel ao Jesus ressuscitado, mas é rejeitado e desprezado. Também a testemunha de Deus é ridicularizada e humilhada. É um fracasso espiritual e intelectual. É o fracasso de um projeto.
A Bíblia nos fala sobre os fracassos humanos, mas também sobre o fracasso de Deus e de seu projeto.
O Beato Duns Scotus, colocado em confronto com Tomás de Aquino, fala de duas formas de conhecer as coisas e distingue a cognito cognitiva e a cognito intuitiva. A primeira é a faculdade da ratio, da analogia; a segunda refere-se a um insight, um conhecimento que vem de dentro, que não pode ser explicado por silogismos ou equações matemáticas, mas mesmo assim existe, nos afeta, nos envolve, e, finalmente, nós confiamos a ele para as decisões mais importantes da nossa existência. As escolhas do amor, por exemplo. Não se ama alguém por cálculo, mas porque existe uma atração, uma intuição do bom que existe na pessoa. A cognito intuitiva de Duns Scotus abre para a mística uma passagem que a sistemática racional de Tomás de Aquino não conseguiu romper.
Existe também uma sugestão adicional: a teologia trinitária. Uma dimensão negligenciada em nossa teologia até o Vaticano II. O estudo tratou de teologia e de cristologia, mas a pneumatologia foi negligenciada. A dimensão que Deus é também o Espírito Santo, de que o batismo é o sacramento fundador e os outros são derivados dele. O topos da Trindade abre o discurso sobre Deus não como monos, mas como comunicação e comunhão. Deus é, em si mesmo, comunicação e comunidade. A comunhão inicia com dois, a comunidade começa com três. Deus é, em si mesmo, dinâmica, é criativo, é comunicação. Podemos olhar para ele e ele sente-se tocado pelo nosso olhar e ouve nossas perguntas.
Para dar uma resposta às profundas feridas da humanidade é necessário poder dirigir nossas perguntas a um Deus que fala, aliás, que é em si mesmo comunicação. Não um Deus que concede respostas fáceis e rápidas às questões complexas da humanidade, na modalidade do pegar ou largar. Mas um Deus que tem nuances em si mesmo, é em si mesmo uma conversa entrelaçada.
Acolher a complexidade e a "coralidade" em Deus permite reconhecê-lo como um interlocutor aberto às nossas perguntas, assim como reconhecê-los passível de feridas o credita a nós como interlocutor digno de credibilidade.
Quais são as implicações pastorais de um Ano do coração ferido?
Primeiro, o acompanhamento. Em um mundo extremamente complexo como o nosso, devemos levar as pessoas a sério, com respeito leal pela sua consciência. Nosso primeiro trabalho não é pregar, dando respostas pré-prontas; é ser crentes juntos com os outros, ser companheiros de estrada, solidários. Os filósofos franceses afirmam que a présence é mais importante que a répresentation. Em outras palavras, estar presentes, vivos, ao lado de outra pessoa viva é mais importante do que enviar-lhe uma representação de nós mesmos pré-pronta. A presença humana traz a salvação em si. Precede a palavra e dá significado às palavras. A presença humana cura, ou melhor, ajuda a cura.
Uma segunda implicação pastoral: transferir o acento da multidão para o indivíduo. Sem descuidar da multidão, o focus deve estar no indivíduo. Devemos voltar para Jesus que pregou sim para as pessoas, mas que em sua obra de cura sempre encontrou pessoas: a hemorrágica, o cego, o surdo-mudo... Jesus coloca lama nos olhos, toca com a saliva, se sente tocado por uma mulher enquanto está cercado pela multidão... Jesus nunca realizou uma cura em massa. Ele não curou a todos, retirou-se, escapou da tentação da multidão que queria torná-lo rei. Ele não se entregou a um ativismo em busca de grandes números. Ele curou alguns, deixando um sinal, um testemunho simbólico também para nossa missão pastoral: façam como eu fiz.
Uma terceira linha: a pastoral deve estar atenta com aqueles que fracassam. Não deve se dirigir apenas para aqueles que "conseguem". A realidade psicológica e sociológica do fracasso, e não do sucesso, deve ser o paradigma.
A Igreja abre-se novamente à arte contemporânea, porta-voz e intérprete da experiência humana que nós negligenciamos por demais. A arte é um sismógrafo que intercepta as profundas convulsões da psique e da sociedade. Sua linguagem está mais próxima do que é vivenciado no íntimo da experiência humana, mais que da lógica. Em particular, mais do que em outros momentos de sua história, a arte contemporânea está em fina sintonia com o sofrimento humano, com o coração ferido da humanidade. O Vaticano II (GS 44) nos diz que a arte moderna tem uma dimensão profética embutida. Mesmo quando nos parece superficialmente até mesmo blasfema, nos transmite profeticamente algo sobre a relação entre o homem e o mistério. A arte contemporânea, abstrata em sua dimensão figurativa, é paradoxalmente mais soldada à corporeidade. Isso é relevante na espiritualidade do Sagrado Coração. O corpo humano - um corpo imperfeito e não sua idealização perfeita e irreal - mais do que uma ideia é uma experiência. O mundo das ideias é fascinante em sua luminosidade e perfeição, mas a realidade é aquela do corpo que ri, que chora, que transpira...
Qual Igreja pode ser projetada a partir do coração ferido?
O Papa Francisco fala da Igreja em saída (EG). Isso está na simbologia do coração aberto. Nós poderíamos dar um passo à frente, do coração aberto para o coração ferido. Significa que a Igreja não está apenas em saída, mas que tem um destino: ir ao mundo da dor. O mundo da dor não é apenas um entre muitos. Nossa primeira atenção deve ser para as pessoas que sofrem e essas pessoas devem ser o encontro buscado e desejado, não puramente ocasional. Ir ao mundo da dor dá uma contribuição para a humanização do mundo.
Vem à minha memória um italiano de valor universal: Dom Lorenzo Milani. Teologicamente trazia em si o Antigo e o Novo Testamento, ele de ascendência judaica, cristão, sacerdote... A sua Escola de Barbiana é um protótipo de humanidade, porque ele foi até os jovens negligenciados, deixados de lado sem oportunidades, um mundo marcado pelo sofrimento e pela exclusão no nível sistêmico, sem saída. Ele mostrou solidariedade, mas, e isso é fantástico, ele mudou a perspectiva a partir da qual olhar para o jovem. No lugar de ver o jovem como destinatário de sua obra de formação, o tornou sujeito. Em sua escola, os meninos que tinham 10 anos de idade se tornaram professores daqueles mais novos. Levou-os a acreditar nas pessoas. "Eu te dou alguma coisa, mas também eu preciso de você; vejo que você é forte, mais forte do que você pensa." Não devemos não só ser missionários, mas incentivar as pessoas para serem missionárias, até mesmo os jovens. A nova evangelização deveria começar com os jovens. Olhar para os jovens não só como destinatários da nova evangelização, mas como protagonistas. A Igreja oficial deve ter mais confiança no mundo dos jovens, apostando inclusive em formas de experimentação.
O coração ferido me convida a construir uma Igreja que visa mais efetivamente a dimensão soteriológica. No mundo ocidental, mas de forma mais geral no mundo cristão, a comunidade eclesial, que é comunidade de pessoas, deve se preocupar mais com a proximidade com as pessoas do que com a tutela da instituição; deve dedicar suas energias à comunhão solidária mais do que à integridade do sistema, que certamente tem sua importância, mas é apenas um instrumento. O importante é a pessoa, tornar-se presente, tornar-se próximo.
Nesse contexto soteriológico, a Igreja deve redescobrir a sua dimensão pneumatológica e se perguntar como vivê-la hoje. Levar a sério a fé batismal significa menos ativismo, mais contemplação e mais criatividade; acreditar mais na experiência e na busca de novas experiências, não ter medo de cometer erros, não esperar que tudo esteja previsto e planejado. Acreditar no vento e no fogo do Espírito Santo; crer no Pentecostes, o terceiro grande momento do mistério da encarnação. Porque é depois do Pentecostes que nós vivemos.
Que vocação específica implica para a congregação dehoniana a teologia do coração ferido? O que a distingue e define das mil outras formas da vida consagrada?
O "sacramento da solidão" e a solidariedade como expressão da fé vivida. Eu vou explicar. O "sacramento da solidão" significa colocar-se na perspectiva da vítima, das pessoas que sofrem, abandonadas. Qualquer um que sofre está, definitivamente, sozinho. A dor física, psíquica e espiritual de alguma forma marginaliza, sempre tem a ver com a solidão. A solidão é o modus penitencial do sofrimento.
Por outro lado, a solidariedade como expressão da fé vivida. E aqui entra em jogo paradoxalmente a dimensão contemplativa.
A adoração, o caminho contemplativo que se abre para a mística, tanto no sentido clássico (diante do Santíssimo), como no sentido "samaritano" ( "os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade", Jo 4:23) é como o pontifex maximus entre a solidão da vítima e a nossa solidariedade. Na adoração eu me sinto sozinho, mesmo cercado pela comunidade. É uma maneira de estar na presença de Deus mesmo sem palavra, sem metas programadas, sem esquemas pré-prontos. O fruto dessa contemplação ilumina minha solidão e torna-a evidente para mim. Preciso ver e devo viver minha solidão para poder compreender a solidão do outro. Se eu não entrar nesse poço profundo de minha alma,nunca serei capaz de entender o outro que sofre, que se sente sozinho, que fracassa. Essa é a base da solidariedade. A adoração é um momento em que o próprio Deus se coloca como o Único diante de mim, sozinho, e ele também experiencia a sua "solidão". A adoração solidária atinge seu ápice no lado místico e a solidariedade tem o seu fruto no lado político, como estar interessados (inter-esse) na vida do outro, nos seus momentos, nos seus dias.
Qual é a força - ou a fragilidade - da reproposta da devoção? Qual pode ser a sua forma de responder à questão religiosa atual, pelo menos no Ocidente secularizado?
A força da devoção reside na sua capacidade de tocar o mundo emocional, o coração e desenvolver afetos, abrir os sentidos. A devoção favorece nossa unidade holística. É também uma espécie de linguagem de sentimentos, que introduz a mistagogia.
A fragilidade se manifesta quando a devoção evita a ratio, a razão, arriscando-se assim a cair em confusão e expressar-se em alguma estranheza que, vista de fora, pode resultar incompreensível e insignificante. Se à devotio faltar o logos, a profundidade da reflexão pode gerar o caos. É preciso argumentação, sabendo apresentar as razões da nossa fé.
Quanto à forma, penso em três pontos.
1. Desenvolver a dimensão do silêncio, da contemplação. Em Berlim, na popular avenida Unter den Linden, no Portão de Brandenburgo, em frente à famosa embaixada americana, há uma sala chamada Raum der Stille (Espaço do Silêncio). É uma estrutura vazia que quer exortar os visitantes a refletirem sobre a paz, contra o pano de fundo das recentes guerras e de suas vítimas. Tantas pessoas, alemães e estrangeiros, cristãos, judeus e muçulmanos, não-crentes entram naquela sala. O silêncio provoca, une. Às vezes o silêncio é "estrondoso". A dimensão contemplativa também é importante para nós na Igreja, porque sempre corremos o risco de cair no ativismo.
2. A Bíblia. Ler e compartilhar a Palavra, na sua totalidade, Velho e Novo Testamento. Deus se tornou Palavra, Deus é comunicação, é Trindade, é comunhão. A Bíblia é ao mesmo tempo palavra de Deus e reflexo das experiências humanas. Por exemplo, Moisés é a figura de um profeta que pode ser lido como espelho profundo da vida de cada um. É mais que um exemplo, é um paradigma. Da mesma forma que Jesus. A Bíblia me conduz para salas da minha alma que eu não sabia que existiam.
3. A peregrinação. Uma forma de devoção do Ocidente é colocar-se em caminho. O de Santiago é o caminho por excelência. Colocar-se em caminho é uma chave para entender o homem moderno. Nós vivemos em um mundo globalizado; a Internet permite que você esteja em qualquer lugar em um segundo. Sem mover passos e, no entanto, tudo está em movimento, tudo está em caminho, até mesmo frenético, e nos faz pensar no episódio de Emaús. Nós também vivemos depois da Páscoa, como aqueles discípulos que se colocaram em caminho para Emaús. Eram itinerantes com os pés, mas também com o espírito: tinham perguntas não respondidas, perguntas verdadeiras. Uma vida marcada pelo questionamento. Qual é a minha pergunta? Qual é o meu tema? Qual é minha preocupação? Colocando-se junto com os outros, compartilhando as nossas perguntas, compartilhando o caminho e a refeição à noite, abrimos o campo em que podemos encontrar a luz, como no famoso quadro de Rembrandt: não há mais a luz do sol, mas há a luz de Jesus. "Nossos corações ardiam. Nós não o reconhecemos, mas ele estava presente". A peregrinação é uma experiência física, uma homenagem à corporeidade, mas também uma homenagem ao pensamento pastoral teológico de estarmos próximos do outro, de viver os momentos antitéticos da solidão e da proximidade. Caminhar na natureza, sentindo o calor e o suor na pele. É sentir-se parte da natureza, sentir-se natureza na natureza; eu sou adam do adamah; eu sou a quarta-feira de cinzas. A peregrinação é uma forma cultural que se reporta à figura religiosa da quarta-feira de cinzas. A peregrinação é uma forma de devoção não só católica cristã, mas também judaica, muçulmana, budista e hindu. Todas as grandes religiões conhecem a peregrinação. Na peregrinação, vejo a sobreposição, o entrelaçamento entre cultura, civilização e religião.
O coração ferido restitui-me a imagem do Ressuscitado que vai ao encontro de seus discípulos desorientados em suas perguntas, no sentido do fracasso que estão experimentando; abre a eles o seu coração e abre seus corações; mostra a ferida no flanco e nessa tangibilidade de sua proximidade nos convida a acreditar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ano do coração ferido. Entrevista com Heiner Wilmer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU