02 Junho 2018
"Foi crucial na resistência à ditadura — em especial após o assassinato de Herzog. Descobriu Carolina Maria de Jesus. Seguiu na luta até ontem", escreve Marta Maiai, jornalista, historiadora, professora do curso de Jornalismo e do Mestrado da Universidade Federal de Outro Preto, que atuou com Audálio Dantas, nos últimos anos, na curadoria do Fórum das Letras de Ouro Preto, em artigo publicado por Outras Palavras, 31-05-2018.
Vitalidade inesgotável de quem sempre fez muito. Se o futuro, mesmo hoje, diante de sua perda, aparece assim tão presente, é porque seu passado escreve uma trajetória de lutas, de escritas, de descobertas e ações em prol de homens e mulheres desse país chamado Brasil. Sim estou falando de Audálio Dantas, um jornalista que tem, fez, e faz história; muitas.
Seu nome logo é associado a duas outras importantes personalidades do século XX: Carolina de Jesus e Vladimir Herzog, o Vlado. No primeiro caso, uma perspicaz descoberta do repórter sobre a história da favelada que escrevia seu diário em papéis de embrulho e que resultou na publicação do livro Um quarto de despejo, publicado em 13 línguas diferentes; no segundo, a intensa presença do presidente do Sindicato antes e após a morte de Vlado, ex-diretor de telejornalismo da TV Cultura, ícone da luta contra as injustiças de um período de censuras e violências por parte da ditadura.
E na atualidade, por onde andou Audálio? É preciso dizer que este vigoroso andarilho seguiu, sempre, protegendo a democracia de seus antagonistas (e olha que não são poucos). Ao lado de Fernando Morais, amigo e companheiro de tantas lutas, ajudou a terminar o Relatório da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, que, entre outros encaminhamentos, indicou a criação (já implementada) do Prêmio Alceri Maria Gomes da Silva de Direito à Memória e à Verdade. Alceri, operária, negra, destacou-se na luta de resistência democrática e foi morta em 1970 pela ditadura civil-militar.
Audálio sempre respirou política, no sentido pleno da palavra. Não aquela referida aos cargos e funções, mas aquela originária da Grécia e relacionada ao papel cidadão de cada sujeito em sociedade. Sua participação na Comissão da Verdade é marca de quem atua em benefício do ser humano, sempre. É ele mesmo quem me disse: “sempre me preocupei com o respeito aos outros. O que me preocupa muito é que, às vezes, sinto que não consigo atender todas as demandas, todas as pessoas; gostaria muito de poder agradecer a todos, de maneira indistinta”. Que me perdoem os gramáticos mais puristas, mas generosidade, em seu caso, é muito mais que substantivo, é prerrogativa de vida, foi sempre seu modo de ser. Sua esposa, Vanira Kunc, diz que perdeu as contas da quantidade de vezes que ajudou Audálio a angariar fundos para alguns jornalistas com dificuldades financeiras e, em geral, com problemas de saúde.
Com Carolina Maria de Jesus (à esquerda) e Ruth de Souza, na Favela do Canindé, anos 1960 (Foto: Outras Palavras)
Sim, sua militância a favor dos jornalistas nunca teve fim. Foi eleito, em 2016, para um mandato de três anos como membro da Comissão de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Sempre disposto ao debate, asseverou que “o grande problema do jornalismo é a manipulação do patronato” e que “muitos jornalistas passam ao largo da necessidade de informar”. Para ele, um “serviço público”. Segue, dizendo que a arrogância é um dos males da profissão hoje em dia, afinal ela impede que o profissional vasculhe a realidade na medida em que se arvora um “sabe tudo”, já que a certeza paralisa, transforma o que poderia ser uma fecunda apuração em verdade absoluta, sem a necessidade da investigação séria, eficaz. Frases como “o jornalista tem um compromisso histórico com a apuração”, “o jornalista tem o dever de informar”, entre outras, foram ditas por ele como uma espécie de mantra. Repetições que sustentaram a atuação profissional baseada em princípios éticos, estéticos e técnicos.
Como todo ser humano comprometido com o próximo, ele também deixou entrever contradições e dúvidas sobre a realidade hoje. “Por que tanta miséria, tanta tragédia? O que vale essa vida se ela é uma constante provação, um grande sofrimento? Por exemplo, você olha para o Paquistão; será que aquelas pessoas não são filhas de Deus?”. A diferença entre ele e outros, entretanto, é que a perplexidade não o deixou paralisado; pelo contrário, impulsionou-o à ação. Uma das formas que encontrou para dar vazão aos seus desejos de mudança foi a escrita de livros, muitos publicados (e premiados) e outros ainda na cabeça, fervilhando. “Queria ter mais tempo para a escrita de livros, pois tenho vários projetos em mente. Acredito piamente que se você deixa de sonhar, você deixa de acreditar na razão de ser da vida”. Palavras de quem nasceu em 1929, mais precisamente no dia 8 de julho, em Tanque D’Arca, Alagoas, e participou ativamente da história viva do país há muitas décadas.
Elis Regina cantava. Mas não só cantava, acontecia. Sim, nessa noção moderna de alguém que “faz e acontece”. Tanto que o apelido que Audálio carrega até hoje foi dado por ela: Ordélio. Assim, do nada, ela apareceu no sindicato e, brincando, soltou o verbo, ou melhor, o apelido. Quando enviava email para uma pessoa que tem um pouco mais intimidade, Audálio assinava Ordélio. Ele ainda conta que Elis era uma militante das causas sociais, estava sempre no sindicato, tanto que em 1977, no aniversário de 70 anos da entidade, participou ativamente da campanha de arrecadação de fundos. Mas a história não para aí. Audálio tinha um enorme orgulho de ter sido deputado federal pelo velho MDB (1978-1982) e, mais ainda, fazia questão de dizer que a maior doação financeira da campanha adveio da estreia do show “Transversal do tempo”, estrelado por Elis. Decididamente, a “Pimentinha” fez parte de sua história de vida.
Como deputado, pôde contribuir com o processo de democratização, tendo sido agraciado, em 1981, com o Prêmio de Defesa dos Direitos Humanos da ONU. Um ano antes, participou da primeira delegação de parlamentares brasileiros a Cuba após o rompimento diplomático por parte dos militares em 1964. Esse período sempre foi vividamente relembrado por Audálio: “sinto muita alegria quando encontro alguém que votou em mim, ao mesmo tempo também sinto certo desconforto, pois não consigo me lembrar de todos. Gostaria de saber o nome de cada um que me cumprimenta. Infelizmente, nem sempre é possível”.
Por uma série de fatores, Audálio não conseguiu seguir carreira na imprensa diária. Entretanto seguiu escrevendo, e é na escrita de livros que ele conseguiu lançar suas reportagens, suas investigações. Ganhador do Prêmio Jabuti como o Livro do ano de não ficção, em 2013 (além de melhor livro-reportagem), Audálio escreveu, logo nas primeiras páginas, que teria a “irrecusável” tarefa de escrever um livro sobre o Vlado (As duas guerras de Vlado) porque, até então, nenhuma publicação havia revelado o papel central do sindicato na luta pela democratização do Brasil. Ele assumiu, em 1974, a presidência do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e disse que, no período ditatorial, a entidade foi a principal referência da sociedade civil na luta contra a censura e a repressão. Isso significa, segundo ele, que a reação dos setores democráticos contra os desmandos da ditadura teria sido capitaneada pelo sindicato, como espaço aglutinador e organizador dessa movimentação.
E não se pode falar sobre o sindicato nos anos 1970 sem mencionar o jornal Unidade, criado justamente na gestão de Audálio para denunciar as arbitrariedades cometidas pela ditadura. Esse jornal teve a relevante ação de imprimir suas páginas na luta contra a censura e pela democratização do país. O jornal, que surgiu dois meses antes da morte de Vlado, ocorrida em 1975, publicou uma edição antológica ao veicular a primeira página inteiramente preta, só com o logotipo e o nome do jornalista, escrito de maneira discreta, no pé direito da página. Reverberou sua morte de maneira ímpar, além das reivindicações da sociedade e da categoria durante muitos anos. E não estava sozinho, pois nos anos 70 e 80 existiram inúmeros jornais alternativos aos meios de comunicação tradicionais, como Opinião, Movimento, Coojornal, Lampião da esquina, Brasil Mulher, entre outros.
E o caso Vlado é citado aqui também por conta da imensa repercussão que o ato ecumênico de 7º dia, ocorrido na Catedral da Sé, em São Paulo, gerou no interior da sociedade brasileira, cansada de tanta censura. Esse ato é considerado um dos precursores da movimentação pela volta da democracia no Brasil. Capitaneado pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo reverendo James Wright, conseguiu mobilizar milhares de pessoas que lotaram a catedral e os arredores da praça. E quem teve a iniciativa para a organização desse ato? Audálio Dantas.
Outro relevante feito do mestre jornalista foi a descoberta e posterior organização dos escritos de Carolina de Jesus. E o que Audálio tem a dizer sobre essa reportagem nos dias atuais? “Considero que a reportagem mais importante que eu escrevi na vida foi a da Carolina de Jesus, entretanto tenho várias frustrações”.
Mas justiça deve ser feita, pois muitas outras reportagens foram realizadas desde 1954, quando Audálio entrou na Folha de S. Paulo, depois na redação do Cruzeiro, em 1959, uma revista com tiragem de mais de 500 mil exemplares na época, indo parar em 4 Rodas em 1966. E, como bom repórter, é claro que acabou assumindo essa função na revista Realidade em 1969, uma das publicações mais ousadas do período. Prosseguiu escrevendo matérias até 1974, com rápida passagem pela TV Manchete, quando foi convidado (o verbo também poderia ser “aclamado”) pelos colegas a dirigir o Sindicato dos Jornalistas.
Como dizia Tchecov é melhor não falar o suficiente do que falar demais. Sigo essa máxima e termino por aqui. Um obituário nos dá pistas, nos alerta para a relevância (ou não) de tal pessoa, entretanto eu consigo vê-la melhor é no contato pessoal, nos encontros – isso, quando possível. Do contrário, posso também conhecer melhor um indivíduo por intermédio de sua escrita. Convido então você, que acabou de ler este pequeno texto, a ler os livros escritos por Audálio. Suas reportagens e histórias dizem muito de si e dos outros; suas palavras afetam, dizem muito sobre os sujeitos, sobre a vida em sociedade. Eliane Brum está certa quando diz: “Audálio, o mundo é melhor porque tu existes”. Eu não consigo pensar o mundo sem ele e, por isso, completo: e o jornalismo é melhor por causa de tuas palavras e atitudes. Seguimos, ao seu lado; Audálio Presente!
Camarim do Fórum das Letras, em 2014. Audálio Dantas, Lira Neto, Ricardo Kotscho, Paulo Markun, João Batista de Andrade, Marta Maia e o apresentador do Fórum, Cris Gomes. (Foto: Outras Palavras)
Falar sobre Audálio é falar sobre vidas. A minha, a sua, a dele, a nossa. Tanta generosidade poderia revelar algo deveras superficial, afinal é possível alguém ser assim, tão agradável e tão consensual? Talvez, para quem estivesse distante, ficaria mais difícil essa percepção, mas para quem o conhecia de perto não há como desconsiderar essa característica. A disposição para o encontro, para o compartilhamento e para a ação preenchia todo o espaço em seu entorno.
Desde a minha graduação em Jornalismo, escutava falar sobre o repórter experiente que descobriu Carolina de Jesus, que presidiu o Sindicato dos Jornalistas, que lutou contra a ditadura, que trabalhou na revista Realidade, enfim, um exemplo para a nossa categoria. Pois bem, tive a oportunidade de convidá-lo para lançar o livro As duas guerras de Vlado Herzog e portanto, de conhecê-lo pessoalmente, em março de 2013, quando fiz a mediação de uma mesa na IV Semana de Estudos em Comunicação do Curso de Jornalismo da UFOP. A convivência, mesmo que fugaz nesse caso, ajudou-me a entender o motivo da relativa unanimidade em torno dele.
Após esse primeiro contato pessoal, foram vários outros encontros, com certa frequência, em especial, durante a realização do Fórum das Letras, evento do qual faço a curadoria do Ciclo Jornalismo e Literatura. Ele sempre contribuiu com sugestões, contatos e propostas (o tema central do Fórum de 2015, por exemplo, foi proposto por ele). A partir desses encontros, além de telefonemas e trocas de e-mails, senti a necessidade de traçar seu perfil. Aproveitei o evento de 2016 e sentei-me por um bom tempo ao seu lado, tendo a oportunidade de ouvi-lo falar sobre sua história, suas ideias e suas perspectivas.
Muito do que ele falou sequer fez parte desse texto que, inclusive, foi lido por ele em formato de perfil (ainda inédito), agora convertido em obituário, mas sem dúvida alguma ficou gravado em minha memória. Muito do que ele disse acabou expondo, sem censuras, a faceta de um lutador, de uma pessoa que reconhecida por todos e todas que anteveem um Brasil melhor. Deixo aqui as palavras de Juca Kfouri, que realizou, em 2008, o discurso de homenagem ao jornalista que recebeu o título de Cidadão Paulistano: “Porque não é de hoje que Audálio Dantas deixou de ser um alagoano de respeito para se tornar um cidadão paulistano, um cidadão do mundo, um cidadão na acepção do que os gregos imaginaram, alguém mais que livre, alguém capaz de lutar pela liberdade do próximo”. Quiçá consigamos seguir as suas pegadas.
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Audálio Dantas (1929-2018), eterno andarilho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU