Por: João Vitor Santos | 14 Abril 2018
Numa perspectiva psicológica, é possível afirmar que a violência é inerente ao ser humano. Porém, é no amadurecimento do aparelho mental que se aprende a controlar esses instintos violentos de forma que não sejam reproduzidos. Promover esse amadurecimento a fim de que se consiga elaborar as coisas da vida para que não respondamos de forma violenta já é um grande desafio. Mas a violência não é somente isso. O psicanalista David Léo Levisky propõe que, antes de mais nada, se compreenda de forma mais ampla o conceito de violência, para só depois pensar em formas de resistências e enfrentamentos. “O conceito é muito amplo. Há quem considere qualquer forma de educação um ato de violência porque incide sobre o sujeito. Precisamos saber de que violência estamos falando, pois assim conseguiremos enfrentar esse problema, promover vínculos que ajudem nesse amadurecimento emocional”, adianta.
Levisky foi o conferencista de mais uma atividade do Ciclo de estudos e debates: Violências no mundo contemporâneo. Interfaces, resistências e enfrentamentos, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na palestra realizada na quinta-feira, 12-04, ele fez questão de abrir sua fala com a reprodução literal de sua elaboração sobre a ideia que tem de violência. “Entende-se como violência, em todas as suas formas de manifestação, a força que transgride os limites dos seres humanos, tanto na sua realidade física e psíquica, quanto no campo de suas realizações sociais, estéticas, políticas e religiosas. É uma força que desrespeita os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais o homem deixa de ser considerado como sujeito de direitos e deveres e passa a ser olhado como puro e simples objeto”, define.
Levisky defende um conceito mais amplo de violência (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Na perspectiva do psicanalista, uma população que não tem acesso à água tratada, a uma infraestrutura mínima para se viver, está sendo vítima de violência. “Quando vemos pela televisão a desfaçatez dos políticos em desvios de recursos, também estamos sendo vítimas de violência. Precisamos ter essa clareza de que a violência não é somente algo físico”, completa. Assim, as pessoas que vão sendo expostas a essas violências acabam, quase que naturalmente, tendo uma postura de ataque como única resposta. Levisky ainda explica que essas pessoas não se reconhecem na instância privada e individual e tampouco no coletivo. “O sujeito precisa se reconhecer e se dar conta da existência dele. Só a partir disso é possível fazer com que module suas reações na relação com as outras pessoas”, detalha.
Para David Léo Levisky, esse autorreconhecimento enquanto sujeito se dá pelo estabelecimento de vínculos. Assim, chega-se às relações que se estabelecem desde muito cedo, ainda dentro da família e, por vezes, ainda antes do nascimento. “Vivemos numa sociedade sem pai e sem mãe, sem essas referências. Isso se estende para a sociedade. Quais são nossos referenciais? Os políticos nos dão que exemplo, que referências? Vivemos num país de instituições frágeis e que não representam o que deveriam representar”, aponta. E sem essas conexões não há reconhecimento de si e tampouco do outro. “Precisamos desses reconhecimentos, porque é por eles que articulamos as diferenças para que consigamos modular e organizar formas de violência”, completa.
Diante desse cenário de falta de referenciais, os jovens acabam sendo as principais vítimas. “A adolescência é a parcela mais ativa de uma sociedade. Mas é também a parcela que mais comete e sofre violência”, indica o psicanalista. Para ele, a opção por atitudes violentas e depois pelo crime não são propriamente uma escolha. É quase uma saída, uma resposta para reagir ao mundo sem referências e à exposição a diversas formas de violência. “Jovens que vivem no mundo do crime acabaram ali porque não tiveram modelos. Assim, o único modelo que acabam tendo é o que o crime organizado oferece”, sintetiza.
Levisky ainda vai além. Considera que o jovem que cresce na periferia sem as assistências mínimas não é nem se torna excluído de uma sociedade. “Esses que vão para o crime, na verdade, criam uma outra sociedade que não dialoga com a nossa. Daí o choque. O jovem busca essa sociedade porque quer se organizar enquanto sujeito e faz isso da maneira que dá”.
Repressão sem modelos se torna vazia
O psicanalista é enfático e repete muitas vezes ao longo de sua fala que optar pelo combate à violência através da repressão é um modelo vazio. “Não adianta de nada a repressão sem antes fazer um trabalho de geração de modelos”, indica. Foi mais ou menos isso que ele e um grupo de pesquisadores buscaram no projeto Abrace seu Bairro, desenvolvido na cidade de São Paulo. Nessa experiência, os jovens foram provocados a pensar o que é violência e como estão expostos a ela. Depois, eles teriam que se organizar e propor, pelos recursos deles, formas de enfrentar essa realidade.
Levisky recorda que esses adolescentes conseguiram se ver como sujeitos, buscaram seus modelos e construíram algo no coletivo. “Eles apontaram uma sala fechada com computadores estragados na escola, por exemplo, como uma forma de violência. Indicaram que a falta de um mural de avisos para se comunicarem também é uma forma de violência. Depois, eles se articularam e buscaram soluções para cada uma de suas demandas”, recorda. “O enfrentamento da violência implica nisso: ter a percepção de articulação e integração, num sistema de concessões e defesas”, analisa.
Entretanto, ele ainda acrescenta que é preciso que se pense já desde muito cedo o papel de cada um, como na família, na formação desses jovens. “Ser pobre não gera violência. O que gera é a falta de vínculos”, dispara. O psicanalista se refere aos pais que não assumem seus papéis, por exemplo, deixando de lado a convivência e optando por saídas como disponibilização de recursos materiais. São as crianças que passam mais tempo diante de eletrônicos do que diante da família. “E não existe forma pronta para se gerar esse tipo de enfrentamento. Tem a ver com pensar, sentir, dialogar consigo e com o grupo, seja ele qual for”, sugere.
Nessa perspectiva de “pensar, sentir, dialogar consigo e com o grupo”, David Léo Levisky provoca uma reação ao grupo que acompanha a palestra. “Muitas pessoas não falam sobre esse tema da violência e, até como uma arma do subconsciente, fogem desse debate. Vocês são poucos aqui, gostaria de ouvir, saber o que pensam”, provoca.
De imediato uma mão se ergue entre os espectadores. A jovem estudante Márcia, que cursa Letras na Unisinos, revela no rosto a expressão de alguém que tem algo mais a pensar sobre as relações pessoais mediadas pela tecnologia. “O senhor falou da importância dos vínculos nessa fase do desenvolvimento das crianças. Mas como as tecnologias interferem nisso?”, questiona. Para o psicanalista, há uma interferência positiva e outra negativa. “Esses dispositivos ajudam no desenvolvimento motor das crianças, mas quando os pais deixam de interagir com as crianças e as deixam diante de um aparelho, temos problemas”, indica.
Para Levisky, isso inevitavelmente repercute no futuro. “Diante de um aparelho como a TV ou o computador, a criança não cria seu espaço transacional. Ela entra num sistema fechado em que não interage, apenas responde por inputs”. O resultado pode ser o estabelecimento da mesma lógica nas relações interpessoais. “Hoje, muitos jovens tratam as relações como ‘enter’ ou ‘delete’. Eles não modulam as relações, não têm a experiência da interação. Veja as relações de sexo, onde o jovem usa enquanto acha que é bom e não mensura as consequências. Quando não quer mais, descarta”.
Hoje, muitos jovens tratam as relações como ‘enter’ ou ‘delete’.
Colega de Márcia, Carla não esconde um certo sorriso. Talvez fosse a sensação de ter feito a escolha certa. Mais velha que as amigas, ela conta que optou por parar os estudos e cuidar da família enquanto as crianças eram pequenas. “Depois da separação, eu optei por primeiro atender as crianças e agora resolvi voltar a estudar”, revela, indicando que, no seu caso, foi a melhor opção.
Também estudante de Letras, Maiara divide a pergunta que parece tê-la incomodado ao longo das reflexões: “afinal, qual a nossa responsabilidade, enquanto sociedade, nessa violência que se estruturou no Brasil? Isso se daria por omissão nossa?”. Para o psicanalista, se a pessoa tem consciência de que é coparticipante de um processo maior, é impossível que ela se omita. “O desafio é este: fazer o sujeito se reconhecer e se ver como parte de um processo. Assim, ele faz o que é possível. Não é colocar a responsabilidade só no político ou no governo. Cada um tem que fazer o que pode, ter a consciência de que é parte e tem participação nesse processo de sociedade”, reflete.
Levisky: "O desafio é este: fazer o sujeito se reconhecer e se ver como parte de um processo. Assim, ele faz o que é possível. Não é colocar a responsabilidade só no político ou no governo. Cada um tem que fazer o que pode, ter a consciência de que é parte e tem participação nesse processo de sociedade"
(Foto: João Vitor Santos/IHU)
Psicanalista e professor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Formado pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, possui especialização em Psiquiatria e nas áreas da infância e da adolescência. Também é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Foi, ainda, coordenador do projeto Abrace seu bairro, um projeto piloto de prevenção de violência na escola desenvolvido na cidade de São Paulo. Recentemente, teve seu artigo Uma contribuição psicanalítica para políticos e cidadãos publicado no livro Winnicott: integração e diversidade (Rio de Janeiro: Perspectiva, 2018), organizado por Anna Melgaço. Entre outras publicações, destacamos Adolescência e Violência: ações comunitárias na prevenção (São Paulo, Casa do Psicólogo, 2001) e Um monge no divã – a trajetória de um adolescer na Idade Média Central (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007).
O Ciclo de estudos e debates: Violências no mundo contemporâneo. Interfaces, resistências e enfrentamentos ocorre ainda até junho. A próxima atividade será o Seminário de apresentação de pesquisas e de projetos com a tematização sobre Violências, Resistências e Enfrentamentos, no dia 2 de maio. Acesse mais detalhes do programa e da ficha de inscrição na página de eventos do IHU.
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A necessidade dos vínculos para cessar a reprodução da violência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU