23 Março 2018
Em artigo, antropólogo analisa a retirada de crianças Guarani e Kaiowá de suas famílias. Ações que violam a organização do povo foi denunciada recentemente na ONU.
"As formas indígenas de compreender o mundo sempre operam pela variação, pela multiplicidade. A opção em enquadrar seus modos de vida de maneira homogênea é uma escolha dos poderes do Estado para gerenciar as questões decorrentes do processo histórico de esbulho territorial e fragilização das redes de parentesco e educação indígena", escreve Diógenes Cariaga, antropólogo, em artigo publicado por CIMI, 20-03-2018.
O histórico das políticas indigenistas criadas pelos Poderes do Estado é marcado pela ausência da participação dos indígenas nas formulações e na sua efetivação. O indigenismo do Estado Brasileiro foi construído no início do século XX a partir de concepções jurídicas, sociológicas e antropológicas fortemente amparadas em concepções assimilacionistas e tutelares que até os dias atuais promovem efeitos nocivos, através de decisões judiciais e ações públicas.
No imaginário da sociedade nacional, projetam-se imagens de incapacidade, violência e negligência quando se refere às complexas questões que envolvem a vida familiar indígena em contextos marcados pela intensidade de relações com a sociedade nacional, potencializada pelo aumento da dependência das ações do Estado e da judicialização progressiva da vida cotidiana nas terras indígenas. Como no caso das famílias Kaiowá e Guarani que vivem em diminutas porções de terras nas áreas criadas pelo SPI, a partir de 1910, de modo completamente alheio as suas concepções sobre a vida familiar e coletiva, onde vive hoje a maior parte da população destes povos, que se aproxima em torno de 50 mil pessoas.
No cenário de vida controverso existem medidas que sugerem melhorias para “facilitar” os problemas da vida dos indígenas, contudo, parecem mais estratégias para garantir o cumprimento de determinações dos Poderes Públicos, sem garantias adequadas ao que postula a Constituição Federal, referente aos Direitos dos Índios, que está preconizado nos artigos nº 231 e 232. São mecanismos que estendem a todo conjunto da legislação nacional a garantia e reconhecimento às especificidades referentes aos modos de vida, organização social, parentesco e língua. Além destes direitos pétreos, o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT que assegura aos povos indígenas direito ao consentimento sobre procedimentos que os afetam, deste modo, o Estado deveria garantir a participação indígena deste as esferas iniciais de consulta, chegando a implementação de políticas públicas estatais.
São mecanismos que estendem a todo conjunto da legislação nacional a garantia e reconhecimento às especificidades referentes aos modos de vida, organização social, parentesco e língua.
Este instrumento é constantemente violado pelo Estado como verificado nas notícias veiculadas nos meios de comunicação de Dourados-MS, a respeito da decisão do juiz responsável pela Vara da Infância e Juventude, Zaloar Murat Martins, em incluir as crianças indígenas no Cadastro Nacional de Adoção, com o intuito de retirá-las dos locais de acolhimento onde se encontram, após serem retirados do convívio familiar e comunitário para serem adotadas por famílias não indígenas.
Segundo a matéria “Justiça libera adoção de crianças indígenas” do jornal O Progresso de 27/12/2018, repercutida em jornais online e redes sociais, traz os argumentos do magistrado que se baseiam em interpretação que existem muitas tentativas frustradas de reinserção familiar e restrições estipuladas pela Fundação Nacional do Índio, no intuito que as crianças não “perdessem” a identidade cultural. Todavia, não há uma explicitação sobre as razões que terminam em “tentativas frustradas”, que acaba omitindo a responsabilidade dos programas e ações públicas no âmbito do sistema de garantia de direitos da retomada de vínculos familiares. Entretanto, quando se trata dos graves problemas da vulnerabilidade que se encontram as famílias Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul, decisões como esta não resolvem os problemas que são de ordem estrutural. Um deles é a fragilização das redes de parentesco e de educação das crianças, que por sua vez, terminam no grande número de crianças acolhidas em instituições.
Formulações judiciais desta natureza acabam em imputar aos povos indígenas responsabilidades que são decorrentes de uma dupla violação histórica perpetrada pelo Estado: a intromissão progressiva de políticas adversas aos modos de vida destas populações que as deixaram em extrema dependência das ações exógenas devido à impossibilidade de reprodução da vida social, política e material em razão da omissão e negligência do Estado Brasileiro em demarcar seus territórios tradicionais.
A questão das formas imanentes das relações entre a educação das crianças, locais de habitação das famílias extensas e o modo de vida kaiowá e guarani são amplamente conhecidas através matérias jornalísticas, quanto em pesquisas produzidas sobre os povos através do conceito de tekoha. De modo muito sintético, a palavra é formada por teko que pode ser traduzida como modo de ser, conhecimentos, costumes, tradições e cultura, aditivada pelo sufixo há, que indica o/um lugar onde ocorre a ação. As famílias kaiowá e guarani traduzem tekohá de forma mais recorrente como lugar onde podemos viver de acordo com nossa cultura.
O maior equívoco dos operadores do sistema de garantia de direitos é pensar que tais questões estão relacionadas ao passado, a vida anterior ao contato ou de maneira “folclorizada”.
As formas indígenas de compreender o mundo sempre operam pela variação, pela multiplicidade. A opção em enquadrar seus modos de vida de maneira homogênea é uma escolha dos poderes do Estado para gerenciar as questões decorrentes do processo histórico de esbulho territorial e fragilização das redes de parentesco e educação indígena. O que se entende por educação indígena são as relações familiares, cosmológicas e territoriais engajadas no cuidado e atenção ao crescimento das crianças a partir do ponto de vista kaiowá e guarani. O maior equívoco dos operadores do sistema de garantia de direitos é pensar que tais questões estão relacionadas ao passado, a vida anterior ao contato ou de maneira “folclorizada”.
Devido a isto, interpretações judiciais e legislativas desconsideram que cada grupo indígena partilha de concepções próprias sobre etapas da vida da pessoa e que a identidade ou a cultura, são relações que estariam sempre no limite da perda. É raro ver alguma decisão que considera as interpretações indígenas sobre as transformações vivenciadas ao longo das décadas de contato com a sociedade nacional e seus efeitos.
Se para o magistrado existe um “tabu que é falar em adoção de crianças indígenas”, sugiro que se faça um exercício reverso de refletir com os indígenas porque para eles é as crianças são tão importantes para existência do grupo. Ao invés de investir na consequência (retirar as crianças indígenas das casas de acolhimento para adoção por não indígenas) por que não cobram dos gestores públicos que cumpram o pacto federativo para atuarem nas causas que antecedem a retirada das crianças de suas famílias?
Se grande parte das crianças são retiradas do convívio familiar decorrentes de uma série de problemas oriundos do consumo abusivo de bebidas alcoólicas e drogas, tal contexto não pode ser encarado como uma escolha ou pensando em termos “culturais”, responsabilizando os indígenas, mas que o entendimento sobre a situação de vulnerabilidade as quais as famílias indígenas vivenciam são produtos da ausência de reflexões coletivas, entre os indígenas e os operadores de direitos, na produção de meios de garantir que não haja mais acolhimentos de crianças indígenas.
É necessário investir na articulação entre as políticas de assistência social, saúde, educação, geração de renda, produção de alimentos nas áreas já regularizadas e no cumprimento do Compromisso de Ajuste de Conduta firmado entre o Ministério Público Federal e União para a identificação e demarcação do território tradicional de habitação das famílias kaiowá e guarani.
Somente a composição entre estas vias pode garantir que as famílias indígenas possam educar suas crianças de acordo com os preceitos do teko porã – modo belo, pleno e correto de vida, altamente impactado pelo processo histórico de ocupação não indígena de seu território e de percepções não indígenas que não levam em consideração a história.
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Primeiro atuar nas causas, para depois agir sobre as consequências: a vulnerabilidade das famílias Kaiowá e Guarani e a educação das crianças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU