06 Março 2018
A crise da solidariedade é hoje um dado de realidade incontestável, ligado à propagação de uma mentalidade e uma cultura do individualismo, que se desenvolveu em nosso país, especialmente a partir da segunda metade dos anos 1970 do século passado. Teve início naquele momento um processo de contra tendência em relação à orientação que havia se afirmado no imediato pós-guerra – significativo, a respeito, o papel central atribuído aos direitos sociais na Constituição - e que levou a um empenho generalizado na reconstrução, até encontrar a expressão máxima na forte tensão participativa do final dos anos 1960.
O excesso de projeção social e política desse último período, que inclusive desaguou em tendências extremistas, no fenômeno do terrorismo e na falta de atenção às questões relacionadas com a esfera da subjetividade, provocou uma mudança radical de rumo, dando origem ao que foi definido por muitos como "refluxo". Palavras de ordem como militância, participação e revolução foram assim substituídas por palavras de sinal diferente como desejo, prazer e felicidade, destinadas a delinear um novo universo em que o que conta é o indivíduo e as suas necessidades, reprimidas ou, no mínimo, abafadas por uma ideologia totalizante, para a qual a busca da mudança da sociedade é sacrificada diante qualquer outro objetivo.
O artigo é de Giannino Piana, teólogo italiano, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, publicado por Rocca n. 5, 01-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um papel decisivo na ocorrência dessa mudança certamente foi representada pelo movimento feminista, que se empenhou desde o início para integrar as instâncias da subjetividade no âmbito da ação sócio-política – basta pensar ao famoso slogan "o pessoal é político" - fornecendo a esta última a capacidade de executar, através do envolvimento dos aspectos mais profundos da identidade pessoal e mediante uma real equalização dos sexos, uma verdadeira revolução cultural. Mas, apesar desse positivo impulso inovador, devido à presença de outros movimentos pré-políticos principalmente direcionados ao respeito pelos direitos e à melhoria da qualidade de vida - basta recordar aqui os movimentos pelos direitos humanos, pela proteção do meio ambiente e pela paz - individualismo e privatização tiveram a melhor com evidentes efeitos involutivos.
A recuperação do "sujeito", em vez de assumir a marca da abertura para o mundo da "pessoa", que é, por definição, um sujeito relacional, portanto constitutivamente social, desenrolou-se em direção ao fechamento dentro do mundo do “indivíduo”, com uma tendência autorreferencial, que acabou por excluir o outro do próprio horizonte existencial.
As razões para essa tendência, que impede o desenvolvimento da solidariedade, são atribuíveis não só a causas de natureza subjetiva – os egoísmos individuais constituem uma ameaça permanente para a vida comum – mas também a causas de ordem social e cultural, que merecem ser levados em séria consideração.
A primeira dessas causas pode ser atribuída às mudanças profundas que ocorreram na produção industrial, em virtude da passagem de um sistema, que, mesmo causando estados de profunda alienação, ainda assim criava agregação - a linha de montagem, apesar das pesadas implicações negativas bem conhecidas, favorecia uma forma de comunidade no campo trabalhista -, para um sistema, o atual, que principalmente devido à distância física e à frequente mobilidade, não facilita a comunicação e enfraquece, até a sua anulação, a solidariedade operária, que já representou no passado um importante fator para cimentar as relações sociais.
A isso se soma - e é uma segunda razão, não menos importante - o fenômeno da migração, que se produziu em tempos curtos e em ritmo acelerado, e que teve, inclusive por essa razão, um impacto traumático, provocando a surgimento de atitudes de desconfiança e hostilidade para com o outro. A solidariedade, que no passado estava ligada ao pertencimento a uma sociedade homogênea, é posta em crise pela presença de formas de diversidade étnica, cultural e religiosa, percebidas como desestabilizadoras. Origina-se assim a tendência para demonização do estrangeiro, com o avanço de formas de xenofobia e racismo, e ganham corpo, ao mesmo tempo, impulsos nacionalistas, para as quais o que constitui a base da ligação unitária, e, portanto, dá vida a uma forma aberrante de solidariedade – a solidariedade contra - é a rejeição do outro.
Mas, talvez a causa mais importante da perda de significado da solidariedade - a terceira - é formada pelo crescimento exponencial das desigualdades sociais – aliás, a Itália está entre os primeiro lugares no mundo nesse quesito - e o desconforto resultante que se produziu, especialmente na classe média e camadas populares. A grave crise econômica e financeira, que começou em 2008, e ainda parcialmente persistente, e a concentração da riqueza em poucas mãos produziram (e só poderiam produzir) desigualdades inaceitáveis: camadas populares e classes médias foram fortemente empobrecidas e, ao mesmo tempo, ficaram sem voz, inclusive pela incapacidade da esquerda reformista de representá-las – o que não é apenas um fenômeno italiano (aliás, em outros países europeus, e não só, é ainda mais significativo) - consequentemente colocando em julgamento a própria democracia representativa com a tendência para direcionar-se ao populismo.
O que faltou foi, portanto, a contribuição decisiva à solidariedade de uma parte da sociedade que por muito tempo contribuiu para o fortalecimento do Estado de Direito e para promover a paz social, revestindo a importante função de ponto de união entre a sociedade civil e as instituições públicas. Mas, também acabou sendo afetada a cultura de referência dessa camada social, com a perda dos valores próprios da democracia liberal de molde progressista, e a adesão a fórmulas simplistas e propostas simplificadoras. A falta de confiança de vários setores da sociedade - dos jovens até as elites - em relação às políticas desenvolvidas pelos partidos tradicionais de esquerda, infelizmente, traduziu-se na rejeição das instituições liberal-democráticas com graves riscos para a vida civil do país. A isso deve ser somado o avanço do populismo, que assume as características de protesto com conteúdos programáticos ilusórios ou a afirmação de modelos nacionalistas e de política étnica, que têm - como mencionado - o efeito de alimentar a xenofobia e o racismo.
Se a isso somarmos a redução do bem-estar, por razões econômicas - para determinar tal redimensionamento contribuem os altos custos dos benefícios assistenciais na ausência de uma economia impulsionadora e o constante aumento da dívida pública - e, portanto, a diminuição da igualdade redistributiva, compreende-se a virulência da objeção ao sistema atual e a acentuação dos impulsos para sair dele, indo à busca de soluções alternativas. E isso, na presença de uma cultura generalizada que enfatiza o interesse pelos direitos subjetivos – basta pensar nas recentes leis, como das uniões civis ou o sobre o fim da vida - em detrimento da atenção aos direitos sociais, com uma maior tolerância às desigualdades de renda e assistência.
Não se trata, é claro, de desconsiderar a importância dos direitos subjetivos, próprios dos grupos minoritários que vivem no plano civil em condições de marginalidade, mas a esquerda não pode desistir de dar prioridade à proteção e promoção dos direitos sociais, que - como afirma claramente o artigo 3 da Constituição italiana - são a condição básica para o exercício efetivo da cidadania. A renúncia à reivindicação de tais direitos e a tendência a se adaptar na definição dos direitos civis aos parâmetros da cultura liberal e radical, ao invés de abordá-los com uma atenção privilegiada aos efeitos sociais, implicam na abdicação de sua especificidade e, consequentemente, na perda de sua credibilidade política.
Em um ensaio importante intitulado O que aconteceu com a solidariedade, reproduzido parcialmente pelo "La Stampa" (10 de janeiro 2018), o historiador e sociólogo francês Pierre Rosanvallon denuncia duas modalidades aberrantes de conceber a solidariedade: a primeira é a solidariedade de exclusão, que já foi mencionada, que deságua nos nacionalismos e xenofobias; a segunda é a solidariedade como uma caridade individual - a chamada american compassion - caracterizada pela recusa prejudicial da intervenção institucional e, por isso, pelo encolhimento do Estado social.
Sobre a primeira modalidade já mencionamos a gravidade; a construção de uma solidariedade contra, deve ser rejeitada vigorosamente pela sua imoralidade radical.
Quanto à segunda, aparentemente mais aceitáveis, as contra-indicações são evidentes, quando se considera o que no longo prazo acabou sendo verificado (e em parte ainda ocorre) nos Estados Unidos, onde uma parte substancial da população composta pelas classes médias e pelas camadas socialmente desfavorecidas, não usufrui de uma adequada cobertura previdenciária pública e, portanto, não se beneficia de garantias suficientes de proteção social.
A reconstrução da solidariedade não pode deixar de passar - esse é um fator essencial - pela presença de instituições públicas eficientes, que garantam a possibilidade de acesso às instâncias ligadas aos direitos fundamentais, os quais devem ser absolutamente garantidos a todos como salvaguarda essencial da própria dignidade.
Essa foi uma conquista inquestionável do Estado social que certamente deve ser reformada para torná-la mais aderente às necessidades dos cidadãos, e mais eficiente na prestação de serviços, mas não deve ser redimensionada, mas potencializada mais ainda mediante a oferta de prestações cada vez mais atualizadas.
Mas não podemos esquecer - esse é um ponto de importância primordial - que o bom desenvolvimento das instituições de solidariedade passa através da afirmação de uma sociedade solidária; em outras palavras, a qualidade de solidariedade está intimamente ligada à qualidade de vida coletiva. É como dizer que, se você quiser dar consistência real à convivência democrática, criando um tecido resistente de suporte, é necessário alimentar o sentido da cidadania através de formas de participação, que tornem transparente e consolidem na consciência o “sentir-se parte" da sociedade a que se pertence e o "tomar parte" na vida da mesma. Isso requer, para poder acontecer, a criação de formas de interação entre sociedade civil e instituições públicas. Mas também (e especialmente) demanda o desenvolvimento de uma cultura que, em resposta às tendências individualistas atuais, favoreça o crescimento de uma mentalidade agregadora e solidária.
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Crise de solidariedade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU