11 Outubro 2017
Deus fez parte da campanha presidencial, especificamente na de Fillon, candidato à Presidência da França nas últimas eleições. Será que foi apenas um breve passeio e depois se foi? Mal esquecemos o episódio e o tema volta. Em um pequeno ensaio, rico em fórmulas estimulantes, Le Nouveau Pouvoir [O novo poder] (Cerf, 2017), Régis Debray explora o neoprotestantismo cultural que, em detrimento da tradição católica própria do nosso país, marca, segundo ele, a era Macron e a americanização da nossa civilização.
O midiólogo resmungão e mordaz não avança sozinho. Um cortejo de papel o acompanha. Romances, ensaios, biografias... entre ciência e cientismo, entre mística e martírio, entre feridas da história e paisagens do futuro, entre agnosticismo e absoluto, entre piadas acadêmicas e profundidades sutis, nós nunca cruzamos tanto com o bom Deus como neste retorno intelectual. Como exempolo podemos citar Bakhita (Éd. Albin Michel, 2017), de Véronique Olmi, e Zabor ou Les Psalmes (Cérès Éditions, 2017), de Kamel Daoud. Após ter explorado toda a paisagem literária, a revista francesa La Vie propõe suas escolhas. As obras que tratam do islã, do islamismo e do jihadismo chovem como monções. Mas a verdadeira novidade vem de um retorno sobre si mesmo.
Neste inventário da herança judaico-cristã encontra-se o que nós deploramos, o que nos perturba, o que nós queremos defender. E para nós, não há nenhuma dúvida: Psychothérapie de Dieu [Psicoterapia de Deus] (Odile Jacob, 2017), o impressionante ensaio de Boris Cyrulnik, dá o tom. Aí nós encontramos novamente a marca do renomado neuropsiquiatra, que fez sucesso em seus anteriores best-sellers, sua humanidade, sua habilidade para desbravar novos campos a fim de torná-los finalmente inteligíveis. Aplicada a esse Deus que não teve a chance de encontrar, sua ciência surpreende, provoca e interroga. “Parece que a fé é um precioso fator de resiliência”, observa ele, perplexo e benevolente. O cristão se empertiga. “Os crentes dão muita importância à socialização pelo conformismo”. O cristão se empina. Mas todo o interesse do livro reside justamente nessa honestidade equilibrada, que perceberemos nesta longa entrevista exclusiva que o grande teórico da resiliência nos concedeu. O tempo passa, mas Boris Cyrulnik nem sempre procede com parcialidade. É o que o torna único e apaixonante.
A entrevista é de Jean-Pierre Denis e Marie-Lucile Kubacki, publicada por La Vie, 14-09-2017. A tradução é de André Langer.
O senhor escreveu um livro sobre Deus e manteve distância do tema... Por quê?
Eu me coloquei como clínico. Compreender por que tantas pessoas acreditam em Deus fazia parte dos meus desejos. Isso deveria ter sido parte da minha profissão. Desde 1993, Michel Manciaux, pediatra, e Stefan Vanistendael, responsável pela oficina católica da infância em Genebra, com os quais eu trabalhava e que eram muitos crentes, me diziam que a religião poderia ser um fator de resiliência. Eu estava disposto a acreditar neles, mas para isso precisava de mais experiências. O gatilho foi o encontro com crianças-soldados do Congo, em uma missão da Unicef em 2010. Essas crianças eram pequenos velhos, com ossos salientes, apesar disso... eram trágicas. Elas vinham me ver e me perguntavam por que só se sentiam bem na igreja. Eu fiquei mudo, incapaz de responder a esta pergunta que as teorias da psicologia não conseguiam responder.
Esse trabalho transformou sua incredulidade?
Não. Eu sou ainda melhor do que antes, mas não me transformou.
O senhor, no entanto, olha de maneira diferente para a fé dos seus amigos?
Eu compreendo melhor os meus pacientes e meus amigos que creem. Antes, eu estava sujeito aos meus preconceitos e aos meus estereótipos. Eu dizia para mim mesmo que a crença em Deus era um fenômeno infantil e que, quando se cresce, não se acredita mais em Deus. Agora eu penso que a fé é respeitável e acho uma pena que a nossa sociedade tenha se dividido entre os sem-Deus, que, como eu, acham os crentes infantis, e os crentes condescendentes com os não-crentes. Os crentes devem saber que os não-crentes também têm um acesso a uma transcendência e a um sentido moral.
Ao contrário do que afirma Ivan em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, se alguém não crê em Deus, nem tudo lhe é permitido. Existem outros determinantes além de Deus para a moral. Alguns sacerdotes são perversos e, nessa área, os números são comparáveis aos da população em geral. Nas guerras de religião também agem crentes pervertidos. Quando a crença é fechada e torna-se aquilo que eu chamo de “moral perversa”, o crente adota um comportamento moral apenas em relação àqueles que compartilham o mesmo Deus e podem ser totalmente perversos com os demais.
Criança durante a guerra, o senhor sobreviveu à incursão dos judeus de Bordeaux, e foi bater à porta de conventos, que permaneceram fechados. Esta experiência foi determinante para a sua recusa em crer?
Não se trata de uma recusa, mas de uma impossibilidade. A recusa é não querer ser um crente. A impossibilidade é que não fui visitado. Deus não me visitou.
Sua impossibilidade de crer não tem relação com a sua experiência pessoal?
Quando eu era criança, eu frequentava instituições laicas e depois instituições religiosas, onde eu ia à missa. Eu era uma criança recatada. Eu me chamava Jean Laborde e não Boris Cyrulnik – nome que condena à morte. Para mim, a missa era tão bonita quanto uma ópera. Nós cantávamos, havia um colorido, um cenário. Eu achava tudo isso muito bonito, mas Deus não vinha se encontrar comigo. Depois disso, eu passei a frequentar por algum tempo ambientes judeus. Esses judeus eram laicos. Eu fui a algumas sinagogas. Também lá Deus não me aparecia.
Ali, ao contrário, interessava-me ver como as pessoas organizam toda a sua vida em torno de uma representação abstrata, uma coisa impossível de perceber, mas intensamente representada. É verdade que ter sido salvo pelos justos, pelos cristãos, exerceu um papel na minha abertura aos crentes. Eu sou judeu porque meus pais eram judeus, mas eu fui salvo pelos cristãos, e o fechamento em uma religião me dá medo. Além disso, eu apresentei um relatório com informações gerais sobre a radicalização, há 15 dias.
Para dizer o quê?
Eu propus três eixos. Em primeiro lugar, no plano político-religioso, a religião é instrumentalizada por pessoas muito ricas. Em segundo lugar, no plano existencial, o Ocidente encontra-se em uma grande crise cultural. A família faz bem o seu trabalho, mas não existe uma etapa 'perifamiliar' para quando os jovens deixam sua família. A adolescência é a idade dos grandes engajamentos. O ser humano está, em primeiro lugar, preso ao seu pai, à sua mãe, ao lar, depois chega o momento em que se deve deixar o lugar que nos dá segurança para questões relacionadas ao desejo sexual e ao desenvolvimento de si mesmo.
Esta é também a idade das conversões e das mudanças. Você se apaixona. Você tem necessidade de intensidade. Você pode se tornar mais crente que os seus pais. É uma mudança. Se os jovens têm dificuldades para se tornarem autônomos, eles podem achar que um grupo extremista os ajudará a sair do casulo familiar. As etapas perifamiliares são tanto mais cruciais quanto, com o prolongamento dos estudos, a autonomia psicológica avança, mas a independência social é retardada. Finalmente, o último eixo do meu relatório diz respeito à dimensão psiquiátrica da radicalização, que foi analisada pelo CNRS. Ela é surpreendentemente minoritária na realidade, mas majoritária na representação verbal.
É verdade que, após os atos terroristas, se ouve falar com frequência de “loucura” e de “desequilíbrios”. Como explicar esta propensão à psiquiatrização do terrorismo?
As crianças que vão para a Síria foram enganadas por uma minoria político-religiosa muito rica, cujas fontes nós conhecemos. Mas, de um ponto de vista cultural, a loucura é uma explicação fácil: se alguém cometeu um ato estúpido e assustador, é porque é louco! E não é isso: a maioria dos atos terroristas não é cometida por loucos, mas por crianças enganadas ou por adultos fanáticos. A alegação de que os terroristas são loucos é uma maneira de ocultar a responsabilidade da sociedade, é um pensamento desculpabilizante. É um reflexo preguiçoso.
Esses jovens são enganados, mas eles não destacam também o vazio existencial da sociedade?
Exatamente. Antes, eu os chamava de “trouxas” e um amigo muçulmano me repreendeu por isso.
Por que esse título, Psychothéraphie de Dieu?, que parece indicar que Deus está doente...
Deus sofre! O Mal existe, portanto, ele sofre, ele mesmo chega inclusive a dizer isso. Nós podemos, portanto, considerá-lo do ponto de vista da psicoterapia... Para ser sincero, a ideia do título me ocorreu durante a leitura da peça Zalmen ou la Folie de Dieu, de Elie Wiesel. Ele diz a um comediante: Deus sofre porque o Mal existe, mas eu tenho essa necessidade dele. Eu tenho necessidade de Deus, eu creio nele, e, portanto, Auschwitz existe – assim como outros genocídios... Na impossibilidade de tomar o título de Elie Wiesel, eu inventei o meu: Psychothéraphie de Dieu.
Eu me interessei pelo trabalho de Raymond Falsetti sobre os sobreviventes de Auschwitz. Depois disso, a frase clássica era: “Deus não existe, do contrário não teria permitido Auschwitz”. Falsetti fez um trabalho sobre o tema. Ele fez uma pesquisa com os ex-deportados para saber se eles tinham perdido a fé: 13% dos entrevistados responderam que não eram mais capazes de crer em Deus depois de tudo o que aconteceu e 16% responderam que eles o encontraram lá. Para os outros, isso não mudou em nada a sua crença. O trabalho psicossociológico que foi realizado permite precisar essa frase que entrou na cultura, e que é apenas parcialmente verdadeira.
Como explicar que não haja mais estudos sobre a ligação entre fé e resiliência?
A resiliência é um raciocínio que muitos ainda têm dificuldades para admitir, porque eles são dualistas e separam a alma do corpo. Toda a psiquiatria é organizada em torno desta falta de pensamento. Se o problema vem do corpo, damos medicamentos. Se vem da alma, é outra coisa!
A questão da fé é objetivável pelos conhecimentos médicos?
Eu conheço pouco a história das religiões, eu conheço pouco os dogmas, portanto eu me situo pouco nesse terreno... O foco deste livro é a psicologia, com o esclarecimento das teorias do apego. As teorias do apego sofrem de um método sistêmico que integra as aproximações biológicas, psicológicas, psicossociológicas e culturais. É por isso que nós somos obrigados a trabalhar em equipe, porque eu sou neurologista, psiquiatra e psicólogo, mas eu não sou nem antropólogo nem sociólogo. Para responder à sua pergunta, parece-me pitoresco falar de “localização cerebral” de Deus, como já ouvi falar. Mas podemos fotografar o efeito da crença em Deus.
Como?
O neurologista Henri Gastaut – meu professor em Marseille no final dos anos 1960 – fez eletroencefalogramas de pessoas em oração e ele constatou que, quando uma pessoa se põe a rezar, isso produz um efeito sobre as ondas alfa... É um começo de resposta à pergunta das crianças-soldados: uma crença é uma representação que suscita um sentimento de segurança e esse sentimento de segurança provoca um apaziguamento. Quando alguém reza, seu cérebro já não funciona mais da mesma maneira. A parte que controla o pânico e o sofrimento se apaga e o sistema límbico da memória e das emoções aumenta. A pessoa toma posse do seu mundo interior: ela vai cavar em sua memória, ela elabora... É um mundo de elação – a sensação de ser elevado para o céu, acima de si mesmo.
Em seu livro, o senhor estabelece uma estreita vinculação entre a capacidade de linguagem e de crença. Um ser que não teve acesso à linguagem não pode crer em Deus?
Nenhum bebê acredita em Deus no dia do seu nascimento. Ele não sabe. Ele precisa esperar ver sua figura de apego – mãe, pai, ou seus irmãos e irmãs – fazer gestos curiosos, que mais tarde chamará de rituais, orações, missa, para que compreenda que esses gestos curiosos permitem ter acesso a uma representação invisível. Essa é a função da palavra. O fato de falar nos permite provar um sentimento em nosso corpo, provocado por uma representação verbal que designa um objeto invisível, impossível de perceber.
Na hora seguinte ao nascimento, os bebês percebem o que lhes dá segurança e o que lhes causa insegurança. Eles aprendem a falar entre o vigésimo e o trigésimo mês. Ao embarcar no mundo das palavras, eles provam em seu corpo sentimentos provocados pelas representações verbais que designam coisas totalmente impossíveis de perceber. Quando um bebê fala, ele pode provar fisicamente um mundo totalmente invisível. É, portanto, ao longo do terceiro ano, quando ele tem acesso ao mundo das palavras, que seus pais lhe apresentam seu Deus.
O senhor disse que o modo do apego a Deus depende do modo do apego que nós adquirimos no contato com quem nos ensinou. Quer dizer que se nós tivemos pais autoritários, nós nos apegamos a um Deus autoritário? Uma família cool, um Deus cool? Podemos sistematizar isso?
A sistematização é estatística, nunca falamos em 100% de uma população. O que é verdadeiro para uma população não o é necessariamente para todos os indivíduos que a compõem. Em escala da população, portanto, as crianças aprendem a amar a Deus como se ama Deus em sua família. Há, por exemplo, famílias em que se ama Deus de maneira muito alegre: as crianças brincam na igreja, na sinagoga, e se tentamos acalmá-las, não as punimos, porque dizemos que Deus vai entender que elas são crianças. Em alguns círculos mais rígidos, as crianças serão reprimidas mais severamente; se explicará que elas blasfemam. A relação com Deus depende também dos contextos socioculturais. Os estudos mostram que os cristãos de alguns países acreditam em um Deus mais descontraído que os cristãos de outros países...
O fato de viver em um contexto secularizante é determinante para o fato de crer ou não crer?
Quando uma criança se desenvolve em uma família de maneira “segura”, ela aprende um apego seguro a Deus. Ela ama a Deus como se ama em sua família.
O senhor escreveu: “Em uma sociedade em paz ou que facilita os encontros, a necessidade de religião se impõe menos”. É a tese da secularização: as sociedades prósperas têm menos necessidade de religião. Portanto, quanto mais ricas são materialmente, menos nós sentiremos necessidades espirituais...
Protegida não quer dizer necessariamente rica! Pode-se ser pobre e totalmente apaziguado, mesmo se nos ambientes pobres as dificuldades são grandes. A segurança depende mais da estruturação afetiva e cultural. Uma socióloga francesa fez estudos sobre os comportamentos de solidariedade entre os ricos e entre os pobres. Quanto mais rica é uma sociedade, mais solidariedade existe através do dinheiro e dos meios de comunicação, do telefone e do correio... Mas as famílias se veem uma vez por ano.
Mas, quando o senhor fala de Auschwitz, reconhece que, da mesma experiência de insegurança, podemos tirar conclusões diametralmente opostas.
Existem duas maneiras diferentes de encontrar Deus. A primeira são as imagens familiares. Amar o mesmo Deus que sua mãe ama é fazer-lhe uma declaração de amor: partilhando o mesmo mundo mental que ela, eu estaria perto dela. Se eu aprendo Deus, ela pode se ausentar e eu fico seguro, porque eu aprendi Deus por empréstimo. E há uma outra maneira de encontrar Deus, como Éric-Emmanuel Schmitt, que se perde no deserto e diz que vai morrer e vive uma experiência de conversão fulminante.
No meu livro, eu conto a história de um pastor protestante que está preso em um trem em campo aberto durante a guerra. Os soldados sobem em cada extremidade e abrem as portas para verificar os documentos dos passageiros. Ele ouve o barulho se aproximando e sabe que está fadado a ser preso. Em sua mala encontram-se todos os nomes e endereços dos membros da sua rede de resistência. Ele diz que vai morrer, mas que toda a sua rede também vai ser massacrada. Esta representação desencadeia angústias cada vez mais fortes e ele é preso em plena euforia estática. É a outra maneira de descobrir Deus. Quando eu era praticante, muitos pacientes me explicaram ter vivido isso. Podemos, pois, encontrar Deus por empréstimo ou por necessidade, passando da angústia ao êxtase.
De que maneira a fé ajuda a enfrentar melhor as provações da vida?
As pessoas de fé que vivem um infortúnio também sofrem, mas como elas são solidarizadas pela religião, motivo pelo qual elas se apoiam afetiva e socialmente e se sentem protegidas por uma representação divina, elas enfrentam melhor o sofrimento. Isso é impressionante no luto, por exemplo. Eu acabo de perder uma pessoa muito querida e, no seu enterro, sua família, muito crente, não chorou. Sua companheira, não crente, estava arrasada. Sua família dizia: “Ele está melhor lá onde está”. Para um crente, a morte é relativa. Para um sem-Deus, ela é definitiva.
Mas qual é a lógica? Uma pessoa está mais segura pelo fato de ser crente? Ou é o contrário: porque se está seguro, acede-se mais à fé?
Eu faria uma nuance. O fato de ser crente tem um efeito protetor. As populações de crianças crentes são mais protegidas que as populações de crianças não crentes. Mas também se pode descobrir Deus. Um psicossociólogo que trabalha em um dos meus grupos me contou que seu pai polonês era comunista e repetia que a religião era o ópio do povo: ele discutiu com seu próprio pai, um homem muito crente, e eles cortaram as relações. Durante a guerra, eles foram presos, deportados e o filho vê seu pai nu entrar na câmara de gás. O pai, entrando na câmara de gás, por sua vez, vê o seu filho e grita: “Volte para Deus!” O filho é fulminado e permaneceu na fé até o fim da sua vida.
Mas em um país secularizado, não é certo que o crente esteja em uma situação particularmente confortável. Hoje, um jovem católico na França pode ser o único de sua classe, no primário, a ir ao catecismo... Essa não é, para ele, uma resposta a um conformismo social – pode, às vezes, sofrer pressões desagradáveis.
Hoje, um jovem que declara sua fé em uma cultura em que o conformismo incentiva a não ser crente encontra-se na mesma situação que um jovem cuja cultura conformista o obrigava a ir à igreja quando ele não acreditava. Mas as coisas mudam às vezes muito rapidamente. A Espanha, a Itália e o Canadá, que eram muito crentes a não muito tempo atrás, tornaram-se muito pouco religiosos, sem debate nem conflito, em uma geração.
Como explicar isso?
Nós temos menos necessidade de Deus e nós encontramos outras formas de transcendência. A arte, as ONGs, uma forma de espiritualidade laica, etc.
Não é também a influência do materialismo?
Eu não acredito. Os pobres são mais materialistas que os ricos, pois eles precisam comer na mesma noite. Para eles, a palavra materialismo remete a um refrigerador vazio, quando têm um. Em La Seyne-sur-Mer, cidade de marinheiros, eu tenho pacientes que me contam que eles sabem se terão alguma coisa para comer à noite ou não. Essas crianças se desenvolvem em um materialismo superagudo, de sobrevivência. Será preciso encontrar o que comer a cada dia. Eu também vi isso no Congo.
Existem estudos que relacionam o nível de vida das sociedades com o nível de religiosidade e existem muitas formas de materialismo. Além disso, o senhor evoca o materialismo de subsistência. Há também o materialismo de opulência e de consumo...
Esta forma de materialismo provoca geralmente o empanturramento. Os jovens dizem à sua mãe “você me empanturrou”. E isso provoca o desapego. O que suscita o apego à mãe, ao pai, a Deus, é uma pequena separação que aguça o desejo do encontro. Mas, mais que a riqueza das sociedades é a organização do Estado que tem uma influência sobre o nível de religiosidade. Quando o Estado está bem organizado e as riquezas são bem distribuídas, a necessidade de Deus se relativiza. Podemos viver em um Estado rico em que as riquezas sejam mal distribuídas e, nesse caso, alguns terão mais necessidade de Deus.
Estamos assistindo ao retorno de Deus?
Sim, com o que isso comporta de benéfico: em uma cultura que dilui as relações, as pessoas se encontram. Muitos jovens me dizem que eles se sentem melhor desde que entraram na igreja ou na sinagoga. Isso lhes dá sentido. Mas com o que isso comporta também de radicalização, quando a necessidade de Deus se expressa para dominar os outros.
Um historiador judeu, Yuval Noah Harari, explica em seu último livro, Homo Deus (Companhia das Letras, 2016), que as religiões vão desaparecer: com efeito, nós não temos mais necessidade de relatos, pois a tecnologia vai tomar o controle da humanidade e os tornará inúteis. O que pensa sobre isso?
Eu concordo com a constatação de que o mundo humano, o artifício do instrumento e da palavra, cria uma super-humanidade. Nós vivemos em um mundo virtual marcado pela virtualidade da máquina, da internet e da palavra. As guerras de hoje são todas guerras de religião. No Oriente Próximo, as guerras de hoje existem por problemas criados há dois mil anos. A guerra dos sérvios contra o Kosovo tem como motivação uma derrota dos cristãos contra os muçulmanos que remonta há cinco séculos. As teorias do apego ajudam a entender que o mundo do artifício criou um mundo virtual, mas se nós nos amputamos do meio natural, como fazemos com a ecologia atualmente ou como se faz na psiquiatria, caímos em um mundo à moda Orwell. Se o homem se torna Deus, não nos restará outra coisa senão um mundo sobrenatural amputado do mundo real. Saindo do sulco, nós deliramos, cortados das raízes naturais que são, entre outras, o sono, a afetividade, o cérebro.
O tema do meu livro é que nós cremos em Deus porque falamos e porque amamos. Não é uma máquina que vai fazer isso. Mas eu acredito que as máquinas, com suas performances reais, nos fazem delirar, nos levam a guerras de delírio. O que vai acontecer quando um computador chegar a essa conclusão? Certamente, todo o progresso real tem seus efeitos colaterais. As descobertas reais, científicas, têm um pouco disso, mas jamais elas combateram a necessidade de amar ou a necessidade de Deus, que pertence à própria família. A palavra humana tem uma dimensão mais afetiva que informativa, ao contrário do computador. É por isso que eu proponho a palavra “delirar”. Porque nós podemos ter um delírio não psicótico...
Qual é a diferença entre a fé e a convicção delirante?
É uma sensação. “Eu sinto Deus”, dizem os crentes. Eles não têm necessidades de provas.
“A religião acalma o medo de viver”, o senhor escreveu. Este não é um clichê antirreligioso?
É preciso colocar esta frase no seu contexto. É uma resposta ao clichê segundo o qual as pessoas são religiosas por medo da morte. Quando se faz pesquisas com idosos, nós nos damos conta de que eles não têm medo da morte. Eu encontrei uma senhora que teve um locked-in syndrom – os médicos acreditam que ela estava em coma, mas ela estava plenamente consciente. Ela me contou que dizia para si mesma que iria morrer, mas que ela se deixava ir com prazer, sem medo. Nós sentimos angústia quando temos medo de fracassar na vida. Mas, quando chega a morte, a maioria das pessoas idosas se deixa ir. O que sobrevém no fim da vida, geralmente, não é tanto a angústia da morte senão a melancolia de perder a vida. A maioria dos idosos diz que gostaria de ter alguns anos a mais.
Para um crente, a motivação da fé não é o medo, mas o desejo de viver mais plenamente.
Sim, é o desejo de viver sem medo. Muitos sacerdotes me disseram ser crentes por amor à vida. Um dia, a Irmã Emmanuelle me disse: “Eu experimentei tal êxtase de viver que eu disse para mim mesma que era preciso partilhá-lo”. Um prazer partilhado é multiplicado por dois.
A imagem de Turner escolhida para a capa do seu livro mostra um pôr do sol ou um nascer do sol?
Só Deus sabe!
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“Nós cremos em Deus porque falamos e porque amamos”. Entrevista com Boris Cyrulnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU