04 Abril 2016
"Conheci o fenômeno da resiliência na própria carne quando, jovem médico no Chile, fui detido, preso e torturado depois do golpe militar de Pinochet. Mas o que me impressiona quando recordo meu cativeiro é a capacidade de criar laços afetivos e estratégias solidárias com meus companheiros de cativeiro, de enfrentar o horror cotidiano das sessões de tortura e a possibilidade de ser assassinado impunemente. Um grupo de prisioneiros – eu, outro médico, um professor do ensino médio, um pastor luterano e um padre católico – fomos facilitadores dessas respostas. Hoje em dia, a quem desempenha esse papel dá-se o nome de 'tutor da resiliência'", escreve Jorge Barudy Labrin, neuropsiquiatra, psiquiatra infantil e terapeuta familiar, em artigo publicado por El País, 26-03-2016.
Eis o artigo.
Recentemente, a Real Academia Espanhola definiu resiliência como a “capacidade de adaptação de um ser vivo diante de um agente perturbador ou estado ou situação adversa”. Por experiência própria, como psiquiatra e terapeuta, testemunhei não só a dor e os transtornos provocados pelos traumas, como também a capacidade e a coragem das vítimas de resistir e fazer o impossível para que essas experiências não determinem suas vidas.
Resiliência designa a capacidade humana de superar traumas e feridas. Não é uma receita para a felicidade, mas uma atitude vital positiva que estimula a reparar os danos sofridos. As experiências de órfãos, crianças maltratadas ou abandonadas; de mulheres que sofreram com a violência machista de seus maridos; de vítimas de guerras, de tortura, de catástrofes naturais, ou de doenças permitiram constatar que muitas pessoas não se prendem a seus traumas a vida toda, mas contam com esse antídoto. Só precisam encontrar ambientes interpessoais e sociais que as ajudem a conhecer o valor terapêutico da solidariedade e do amor, porque são reconhecidos como afetados por experiências injustas e degradantes. Porque a resiliência dificilmente pode brotar na solidão. A confiança e a solidariedade de outras pessoas é condição imprescindível para que qualquer pessoa ferida por uma experiência traumática recupere a confiança em si mesma e na condição humana.
O termo tem sua origem na Física. É a capacidade que um material tem de resistir a um impacto e recuperar sua forma original. Uma bola de borracha é um objeto resiliente, ao contrário do vidro de uma janela que, diante de um impacto, se estilhaça e não recupera sua forma anterior. Este fenômeno físico serviu de metáfora para o ser humano, que pode receber o impacto de um trauma e seguir adiante sem se destruir.
Conheci o fenômeno da resiliência na própria carne quando, jovem médico no Chile, fui detido, preso e torturado depois do golpe militar de Pinochet. Mas o que me impressiona quando recordo meu cativeiro é a capacidade de criar laços afetivos e estratégias solidárias com meus companheiros de cativeiro, de enfrentar o horror cotidiano das sessões de tortura e a possibilidade de ser assassinado impunemente. Um grupo de prisioneiros – eu, outro médico, um professor do ensino médio, um pastor luterano e um padre católico – fomos facilitadores dessas respostas. Hoje em dia, a quem desempenha esse papel dá-se o nome de “tutor da resiliência”.
Acredito que, em parte, devo minha sobrevivência mental a esse compromisso de apoiar e trabalhar para manter a esperança no grupo de detentos, a meus empenhos em atendê-los como médico. Fui capaz disso graças à força do afeto que tinha recebido em minha família e em meu bairro durante minha infância e adolescência. Somou-se minha capacidade de me indignar e me rebelar contra os atos violentos dos militares, que prenderam, torturaram e mataram civis indefesos, amigos e colegas de trabalho. Naquela altura, eu não sabia que ao resistir desse modo iniciava meu próprio processo de remendar meu eu estilhaçado pelos traumas. Começava assim a construir minha própria resiliência.
Foi graças à leitura dos livros de Boris Cyrulnik que me reconheci como uma pessoa resiliente que tinha transformado a dor e os sofrimentos em ações construtivas.
Se a resiliência individual familiar ou social é filha do amor e da solidariedade, não se pode desenvolver nessa enorme população de refugiados, afetada pela indiferença, pela rejeição e pelo poder patriarcal dos governantes europeus
Minha “obsessão”, desde que me colocaram em liberdade, foi transformar minhas dores em solidariedade efetiva, e participei de um projeto para reparar o dano traumático de outras pessoas. Em 1974, o Governo belga criou um programa de acolhida para os refugiados latino-americanos com bolsas de pós-graduação, e me especializei na Neuropsiquiatria, depois em Psicoterapia, Terapia familiar e Psiquiatria infantil. Em 2002, depois de conhecer Cyrulnik, tornei-me um ativista para a promoção da resiliência, não somente de refugiados e solicitantes de asilo, como também de crianças afetadas pela violência dos adultos, em forma de maus-tratos, assim como na resiliência de mulheres e seus filhos vítimas da violência machista.
Na atualidade, existe o risco de o conceito de resiliência se desvirtuar ao ficar na moda. Por exemplo, alguns políticos e gestores de políticas sociais o usam para minimizar o dano e justificar os cortes nas políticas sociais.
Nas empresas multinacionais, os seminários sobre as capacidades resilientes estão sendo usados para apoiar o tópico de “você pode”, embora as condições trabalhistas se degradem a cada dia. No discurso midiático, apresenta-se associado ao sucesso de esportistas de elite, cantores da moda, ou competidores do MasterChef.
Também os militares se apropriaram do conceito e o corromperam. Quem provoca ou participa das guerras se interessa pelo tema para motivar a força destrutiva de suas tropas e banalizar o impacto de suas ações na população civil e em seus próprios soldados.
Isto contradiz as pesquisas sobre a resiliência, que mostram que ela é um produto social e sempre interpessoal.
Os contextos interpessoais resilientes são afetuosos (biologia do amor), facilitam a consciência de ter sido afetado por injustiças – venham elas da natureza (como as catástrofes naturais), da opressão, da violência política, de gênero, dos maus-tratos infantis –, o que permite empoderar-se para seguir em frente. A solidariedade empática com os afetados, a expressão artística, o humor e a espiritualidade também são fatores resilientes.
Nesse sentido, é pouco provável que se desenvolva resiliência nos milhares de refugiados que se encontram às portas da Europa: as imagens comovedoras de mulheres, crianças, muitas delas bebês, e idosos refugiados sírios são exemplos de contextos antirresilientes.
Se a resiliência individual familiar ou social é filha do amor e da solidariedade, não se pode desenvolver nessa enorme população de refugiados, afetada pela indiferença, pela rejeição e pelo poder patriarcal dos governantes europeus.
Resta-nos a esperança de que algumas faíscas desse fenômeno se produzam pela ação solidária da sociedade civil, que traz esperança para que alguns dos afetados possam resiliar essas circunstâncias dramáticas.
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