25 Julho 2017
“O Evangelho é o reconhecimento vigilante e profético de um ‘nós’ que atravessa a consciência e a história dos sujeitos: é o dom de se reconhecer reconhecido. Tirar os sapatos diante da bendita autoridade do outro, hoje, encontra dificuldades e oportunidades, como sempre aconteceu, mesmo que hoje ocorra de modo novo e um novo mundo.”
A análise é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado na revista Rocca, n. 3, 01-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A “mudança de época” que a Amoris laetitia do Papa Francisco sabe reconhecer e atestar com grande eficácia torna-se particularmente significativa se for enquadrada no horizonte daquela que podemos chamar de “sociedade aberta”.
A pergunta radical que atravessa todo o texto ressoa assim: como dizer o “nós matrimonial” na sociedade aberta? Essa pergunta é visceral há pelo menos 200 anos.
A. Tocqueville, no seu ensaio sobre “A democracia na América”, já havia intuído a questão em toda a sua decisão: a revolução “rompe a corrente, mas também separa os anéis individuais...”. E muitas das “ciências humanas” que surgiram no século XIX e XX punham-se como objetivo entender a possibilidade do “nós” em relação a uma sociedade que ia se individualizando cada vez mais.
Gostaria de tentar propor sinteticamente o “relato” da história desse “nós”, que mudou de forma, estilo e linguagem, a partir de meados dos anos 1800, até chegar à Amoris laetitia. Com efeito, o texto da Amoris laetitia é a oficialização de um “trânsito” importante, para se continuar a poder dizer “nós”, mas sem o estilo do século XIX e da primeira metade do século XX. É um caso, emblemático e poderoso, de “tradução da tradição”.
Gostaria de focar a minha atenção, acima de tudo, naquele que foi tal “estilo clássico” do “nós católico”, formulado, muito frequentemente, “contra” o eu que estava nascendo. Então, todo o “novo” parecia negar o nós, a sua realidade e a sua possibilidade.
Depois, gostaria de notar os passos que foram dados entre esse modelo clássico e o nosso tempo. Por fim, vou me concentrar sobre as “reviravoltas fundamentais” que a Amoris laetitia nos propõe, com autoridade e com parrésia. São apenas três passos, dois dos quais são breves e preliminares, e o terceiro – mais amplo e encorpado –, dedicado especificamente à compreensão do “Nós” que nos é oferecida pela Amoris laetitia.
A sociedade fechada impõe um nós fundamental e formal, que usa todos os meios à sua disposição para “formar e controlar” os sujeitos. A atual e compreensível nostalgia pelo nós deve ser honesta: embora hoje o tenhamos esquecido, o nós foi, por muitas gerações, um pesadelo e uma demanda implacável, que pairava sobre os sujeitos e sobre a sua identidade. Com base em um “nós” forte demais e intrusivo demais, o sujeito era posto às margens, tornava-se irrelevante, era funcionalizado, instrumentalizado, desfigurado, violentado.
Esse nós “arcaico” pode ser bem visto em alguns filmes e em alguns livros: “Filomena”, por exemplo: um forte “nós” familiar, social e eclesial “discrimina e excomunga” toda jovem mãe e todo filho natural.
Mas também, bem antes dos anos 1950, “Anna Karenina”, de Tolstói, ou “Hard Times”, de Dickens, ou “O processo”, de Kafka, falam desse “nós” que deve ser superado. Se devemos recuperar uma função essencial do “Nós” como horizonte e condição de possibilidade do Eu, no entanto, devemos evitar ceder às tentações nostálgicas, que são injustificadas e, muitas vezes, também, muito injustas.
É verdade: o sujeito moderno corre o risco de se esquecer do nós como condição do eu-tu e de cair, por isso, em uma forma de solipsismo, de individualismo, de relativismo.
Mas o Eu não é simplesmente o “destruidor do nós”. Esse é um modo “antimodernista” de pensar sobre o sujeito que erra no matrimônio e na família. E a relação da qual o sujeito se confessa necessitado e desejoso não se perverte necessariamente em “ditadura do relativismo”.
Porque essa ditadura – diante da qual muitos católicos se dizem indignados – é muitas vezes apenas a resposta exagerada e desequilibrada à ditadura do nós fundamentalista e tradicionalista, de uma identificação entre Deus, pátria e família que é, pelo menos, igualmente escandalosa. E é sempre útil recordar que, se hoje se sujeitos individuais custam tanto a “honrar” a comunidade familiar, ontem eram as comunidades familiares que não conseguiam honrar e reconhecer os sujeitos.
Essa emergência do sujeito na modernidade tardia foi favorecida pela sociedade aberta, que obrigou a repensar não só matrimônio e família, mas também todas as estruturas comunitárias (a escola assim como o trabalho, o seminário assim como o mosteiro).
É curioso notar que a reação da doutrina católica sobre o matrimônio à provocação do “novo regime cultural e social” moveu-se em duas diretrizes diferentes não facilmente unificáveis: uma primeira cerrou fileiras em torno do “nós institucional”, assumindo a forma de Codex, enquanto uma segunda inaugurou uma “personalização do nós” que adquiria muitos valores modernos e os fazia entrar profundamente no tecido da doutrina e da disciplina católica.
Institucionalização e personalização, procedendo em paralelo, evidenciaram as suas harmonias, mas também as desarmonias, as tensões e as contradições internas. E o arco temporal que vai de meados do século XIX à Amoris laetitia – poderíamos dizer de Pio IX a Francisco – apresenta quase a todas as gerações um elemento de grande novidade. Em um desígnio certamente unitário, mas marcado por reviravoltas profundas, por retrocessos e por intuições proféticas. E sempre em diálogo, não só com a Palavra de Deus, mas também com a experiência de homens e mulheres.
As soluções do século XIX – que tendem a se perpetuar também no século XX – declinam oficialmente com a Amoris laetitia. Talvez por isso, alguns setores eclesiais pequenos e marginais reagem mal, irritados e violentos: quem tinha se iludido de que “católico” significava “do século XIX” ficou atordoado. Especialmente nos últimos tempos, tínhamos feito de tudo para convencê-los de que estavam certos.
Agora, desse “sistema defensivo” do século XIX, que tanto resistiu, não resta pedra sobre pedra. Gostaria de focar os “marcos” dessa “reformulação não oitocentista do nós”, precisando bem que a Amoris laetitia não renuncia, de fato, ao “Nós”: ela sabe que Deus e o próximo continuam sendo uma incontornável “raiz do Eu”. Mas é ingênuo e mesquinho identificar o Nós com as condições de uma sociedade fechada. O Nós também é o fundamento da sociedade aberta, mas em condições diferentes. E é isso que a Amoris laetitia nos diz com grande força e com particular eficácia. Em quatro marcos descobrimos “um fim e um início”.
Algo acaba e algo se perfila novamente no horizonte:
a) O Evangelho tem relação com a lei objetiva e com a consciência subjetiva, sem se identificar nem com uma nem com a outra (AL 304). Esse é o fim do maximalismo jurídico e a recuperação estrutural da práxis do discernimento (para confiar e não apenas para desconfiar). Essa virada permite restabelecer um equilíbrio entre lei e consciência, que justamente a “institucionalização” do fim do século XIX tinha tomado emprestado, na Igreja, de concepções estatais e civis da lei. E repropõe um conceito de “discernimento” que, no fim do século XX, tinha assumido quase apenas acepções desconfiadas e suspeitas. Usava-se “discernimento” apenas para “alertar”, não para aproveitar as oportunidades. Agora, recupera-se o aspecto positivo do discernimento eclesial, não para evitar um erro, mas para compreender uma verdade particular.
b) A relação entre Cristo e a Igreja é conteúdo do “sinal” e da “analogia” do matrimônio, mas de modo imperfeito (AL 72-73): este é o fim do maximalismo teológico e a recuperação estrutural de uma “razão teológica mais ampla”, que possa temperar com sabedoria o ideal e o real, o universal e o particular, as coisas últimas e as penúltimas.
c) Acompanhar, discernir e integrar é o estilo geral da pastoral eclesial, que vale para as “famílias felizes”, assim como para “famílias feridas” (AL 308): fim do minimalismo pastoral e reestruturação de uma “pastoral de comunhão e reconciliação” digna da tradição, na qual a recuperação da iniciação dos sujeitos passa pelos limiares delicados e poderosos dos mistérios, que atravessam as biografias e as gerações.
d) O matrimônio é relação de amor de sujeitos livres que lança raízes, não sequência de direitos e deveres fundamentados em um contrato (AL 37): fim do minimalismo administrativo e recuperação da “relação de amor” como sujeito/objeto da pastoral, com uma clara distinção entre lógicas jurídicas, lógicas morais e lógicas sacramentais, que não se deixam identificar nem opor.
Esses “marcos” redefinem o “trabalho pastoral” e saem da alternativa drástica entre “foro interno” e “foro externo”, criando um “foro pastoral”, não diferente dos dois primeiros, mas que os integra e os transforma estruturalmente.
A vigilância cristã é uma arte que exige “manualidades finas”: porque ela traz no coração a esperança do bem que chega antes que o temor do mal que se abate. Como um ladrão – o que é em si preocupante –, o Senhor se anuncia. E vigiar significa abrir-se ao bem que irrompe, antes de desconfiar do mal que surpreende.
O Evangelho é o reconhecimento vigilante e profético de um “nós” que atravessa a consciência e a história dos sujeitos: é o dom de se reconhecer reconhecido. Tirar os sapatos diante da bendita autoridade do outro, hoje, encontra dificuldades e oportunidades, como sempre aconteceu, mesmo que hoje ocorra de modo novo e um novo mundo.
Recuperar a necessidade de autoridade – sem nunca escorregar em desvios autoritários – para cada verdadeira experiência de liberdade – sem resignação relativista – é um desafio para a Igreja do futuro. Desafio não no sentido apologético do termo, acima de tudo, mas em sentido radical.
Como dizia E. Gilson, um relâmpago brilhou nas mentes do início do século XX, quando se descobriu que São Tomás, ao contrário do neoescolásticos, fazia e se fazia “verdadeiras perguntas”. O mundo tardo-moderno não nos desafia simplesmente para que nós resistamos, não nos seduz apenas com mentiras e não nos apresenta apenas máscaras nuas; ele nos desafia para que nós, nesse contexto – às vezes, apesar dele e outras vezes justamente graças a ele – possamos compreender melhor o Evangelho: Evangelho do sujeito relacionado misteriosamente ao nós matrimonial, familiar, popular, comunitário, social. Nada menos do que isso está em jogo na pequena e grande revolução anunciada e realizada por essa exortação apostólica sobre “o amor na família”.
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O “nós” matrimonial na atual sociedade aberta. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU