19 Fevereiro 2017
"No mínimo, deveríamos começar nos indignando com o que a elite está fazendo conosco. Afinal, sabemos que o lobo pode comer o cordeiro. Mas o cordeiro não pode aplaudi-lo por isso", escreve Sam Adler-Bell, bacharel em História Americana pela Brown University, em artigo publicado por Commonweal, 08-02-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
Capital without Borders: Wealth Managers and the One Percent (Capital Sem Fronteiras: gestores da riqueza e o um por cento, em tradução livre)
Brooke Harrington
Harvard University Press, $29.95, 400 pp.
Os estadunidenses simpatizam demais com os ricos. Espero que esta visão não seja controversa. Nós gostamos deles demais.
Apesar de uma ligeira raiva pós-recessão do "um por cento" e dos esforços de políticos antiplutocráticos, como Bernie Sanders e Elizabeth Warren, os estadunidenses continuam vendo a riqueza extrema como virtude: sinal de integridade, inteligência, mérito. Eles ganham respeito e deferência, e até mesmo reverência. Ser rico significa que você fez algo de bom, atingiu algo louvável. Mais do que qualquer outro candidato à presidência, Donald Trump tornou o seu valor líquido a peça central de sua campanha, a prova de que ele merecia o cargo. Sua adversária, por sua vez, tentou retratá-lo como não sendo tão rico assim: um vigarista arrogante, não um verdadeiro bilionário. Sabemos o quanto isso funcionou.
Parece que a ideia de que ser bilionário possa desqualificar alguém - um obstáculo ao invés de uma vantagem ao governar um país - nunca atravessou a mente de ninguém. Mas deveria ter cruzado. A noção convencional de que milionários e bilionários são "inatingíveis" é uma grande verdade. Pessoas muito ricas tendem a ser menos compreensivas, menos altruístas e mais egoísta do que pessoas com menos recursos. Estudos psicológicos confirmam isso. A riqueza instrumentaliza suas relações com os outros, mesmo com aqueles que amam. Ela os isola da grande maioria das pessoas comuns e os afasta de nossas preocupações, nossa experiência de vida, nosso sofrimento. Para explicar de maneira clara, as pessoas muito ricas não são "como nós" e não vejo razão moral ou política para fingir que são.
Pelo contrário, o instinto de perdoar e (pior) se identificar com os muito ricos tem efeitos políticos muito ruins. Isso leva a presidentes como Donald Trump e, sejamos francos, candidatas como Hillary Clinton facilita a redistribuição de renda para a classe superior, torna a lógica de austeridade 'normal' e prejudica a base da política da classe trabalhadora. A ironia cruel é que é justamente a maior capacidade da classe trabalhadora de ter empatia e de nos enxergar neles - uma tendência ao cuidado mútuo e à preocupação a partir da necessidade - que nos torna tão vulneráveis à guerra contra nós que os ricos têm travado (e vencido) há séculos. Enquanto isso, os ricos não têm essas ilusões. Eles não acham que somos como eles.
Dificilmente pensam em nós. Enquanto vivemos nossas vidas, e votamos, como se fôssemos fundamentalmente iguais, os ricos fazem o que podem para garantir a diferença. Os lobos estão vestidos de lobos, mas ainda os tratamos como cordeiros.
Os meios obscuros pelos quais os ricos preservam seu luxo às nossas custas é o tema do novo livro de Brooke Harrington, Capital without Borders: Wealth Managers and the One Percent. O livro aborda uma questão sociológica desafiadora: quais são os agentes envolvidos na manutenção da estratificação da riqueza e quais são os seus métodos? O estudo de Harrington aponta para uma classe de profissionais pouco compreendida, conhecida pelo eufemismo de "gestores de fortunas". O seu papel no crescente abismo da desigualdade social, segundo Harrington, tem sido subestimado, infelizmente.
As complexidades sociais, culturais e financeiras desta profissão - que ocupam cerca de dois terços do livro - não são pouca coisa. Devido ao sigilo e à discrição exigida por indivíduos "super valorizados", os gestores de fortunas não querem divulgar os detalhes de seu trabalho. Principalmente para curiosos de fora com gravadores digitais. Também não existe um arquivo significativo para se basear. A gestão de fortunas é feita para deixar poucos rastros.
Ao superar esses obstáculos, Harrington mostra uma admirável pegada sociológica. Em 2007, ela participou de um programa de certificação em Trust and Estate Planning - TEP. Dois anos depois, concluiu com honras. Sua imersão lhe trouxe a perspectiva de enxergar as coisas um pouco mais do lado de dentro, como uma semi-insider. Ela ganhou acesso a materiais de formação exclusivos e entrou em uma sociedade profissional de gestores de fortunas. E ainda, ela usou sua certificação para ganhar a confiança dos participantes de suas entrevistas, cujas respostas transparentes (embora anônimas) baseiam o livro.
Harrington foi uma espécie de Virgílio para o leitor. Ela passou dois anos - na Suíça!- especializando-se na implementação dessas sórdidas degradações. Eu mesmo senti uma vertigem leve, uma mistura de excitação e nojo, com as amostras surpreendentes que o livro traz do luxo e dos meios enfeitados para preservar isso tudo. Esta proximidade com o poder e intimidade com os meandros de seu funcionamento são as vantagens da profissão. Os correspondentes de Harrington contam histórias de passeios ao redor do mundo em jatos particulares e drinks com chefes de indústria e chefes de estado. Os gestores de fortunas tornam-se os confidentes mais íntimos de seus clientes, e detêm a confiança sobre os segredos mais sombrios de família. Como disse Eleanor, um médico estadunidense, "É como ser um voyeur... o cliente tem de se despir na sua frente".
O que eles fazem exatamente? Em suma, eles entram em uma guerra para prevenir contra as forças da destruição de riqueza - sejam autoridades fiscais, credores, tribunais, reguladores ou até mesmo parentes gastadores. Eles constroem uma arquitetura global para resguardar a fortuna do cliente, que é ao mesmo tempo dinâmica, impenetrável e obscura. E graças à financeirização da nossa economia, especialmente a partir dos anos 80, a riqueza tem uma capacidade de fungibilidade e mobilidade sem precedentes. "Manter os ativos circulando entre estruturas e jurisdições", segundo Harrington, "permite o movimento pelo aparato regulatório dos Estados-nação de maneira quase imperceptível".
Os componentes essenciais destas estruturas de retenção de ativos são os trusts (administração de bens por terceiros), as fundações e as corporações. Talvez o de maior destaque seja os trusts - como nos "fundos fiduciários" - em que uma parte da riqueza privada é retirada de um Estado, permitindo que o beneficiário (muitas vezes um herdeiro) desfrute dos benefícios da propriedade sem incorrer em deveres e responsabilidades. A liga, porém, é dada pelos paraísos fiscais. O livro que orienta a certificação TEP começa dedicando vinte e oito páginas aos paraísos fiscais. Estados como as Ilhas Cayman, Ilhas Cook, Ilhas Virgens Britânicas, Jersey (não o que você conhece) e as Maurícias organizaram seus sistemas legais para acomodar as prioridades da elite global e seus fiduciários. Estes locais, conforme Harrington, são "zonas livres de regulação e prestação de contas", caracterizados por baixos impostos e pouca intervenção governamental (e estabilidade política).
Os gestores de fortunas usam a "arbitragem regulatória" para "liberar" seus clientes das regras legais. Esse é o seu trabalho. Desincumbir os ricos das obrigações legais e cívicas que se aplicam ao resto de nós: a obrigação de pagar impostos, pagar dívidas, pagar responsabilidades civis. Como observou Nicolas Shaxson, especialista em paraísos fiscais, o projeto de gestão global de riqueza é oferecer "rotas de fuga" para que as elites ricas evitem "os deveres atrelados a viver em e ser beneficiado pela sociedade". Este conjunto de estratégias impulsiona as cargas fiscais da sociedade para baixo, "impondo uma sobretaxa sobre quem não pode pagá-las". Nos Estados Unidos, esse custo adicional pode representar 15 por cento em impostos a mais para cobrir "o prejuízo referente a $35 bilhões dos estadunidenses mais ricos."
Mais para o final do livro, Harrington ajuda a desfazer dois dos piores mitos da atitude de extrema tolerância dos Estados Unidos com a elite: em primeiro lugar, que eles merecem ser ricos e, em segundo, que o resto da população também pode chegar à riqueza extrema.
O primeiro cai por terra quando entendemos que a grande maioria destes indivíduos super-valorizados - como o presidente Trump e seus filhos - se beneficiou de heranças. Como afirma o jurista Lawrence Friedman, "a classe alta é uma classe que tem heranças. A classe baixa é uma classe que não tem heranças". Nas próximas três décadas, são estimados de US$ 10 a US$ 41 trilhões em heranças de riqueza privada nos Estados Unidos. Praticamente tudo isso vai para uma pequena fração da população. Oitenta por cento de nós não vai herdar nada.
O segundo se desmitifica quando percebermos que, pelo mesmo motivo, a chance dos não-ricos acumularem grandes ou consideráveis riquezas em suas vidas é ínfima. Esta é a ideia central de Thomas Piketty, que ficou famoso por seu bestseller O Capital no século XXI. Quando a taxa de retorno sobre o capital excede a taxa de crescimento econômico - como tem acontecido na maior parte da história da humanidade -, a riqueza gerada no passado inevitavelmente cresce mais rapidamente do que a decorrente do trabalho. A riqueza criada a partir do trabalho (a menos que você seja a Taylor Swift ou LeBron James) simplesmente não tem como competir com a riqueza herdada. Já nascemos ferrados.
A relativa igualdade do meio do século XX é uma exceção a esta regra e advém de um breve período em que o crescimento excedeu o retorno - efeito tanto da destruição causada pela guerra quanto da redistribuição a partir da recuperação pós-guerra (embora o aumento e regulação de impostos não tenham feito mal a ninguém). Desde lá, retornamos à norma. Na segunda metade do século XX, os Estados Unidos e a Europa pararam de crescer e a taxa de retorno do capital subiu. Os Estados Unidos - atraídos pelos milionários e buscando atrair o capital móvel do mercado global - têm feito cada vez menos para neutralizar seus efeitos. Por isso, as transferências intergeracionais de riqueza adquiriram um "impulso contínuo" que aumenta a desigualdade geração após geração.
Os gestores de fortunas, aponta Harrington, permitiram e intensificaram essas condições. Praticamente eliminando os impostos sobre a herança - como disse um profissional, "o imposto sobre propriedade é um imposto voluntário em nosso país; você só paga se não se planeja" -, evitando as armadilhas da responsabilidade e do risco e protegendo a riqueza dinástica de impostos sobre a renda, eles colaboram para uma "máquina eterna de fazer dinheiro". Eles garantem que os benefícios da acumulação de riqueza fiquem restritas a uma só família e sabotam a possibilidade do Estado de gerar mobilidade social. Formam uma infantaria para preservar a hierarquia de classes.
A gravidade desta situação, seu absurdo Dickensiano, pode ser a nossa maior esperança de que o que Harrington chama de "valor moral ligado à riqueza" possa tornar-se mais saudável - para longe da admiração cega que nos trouxe até a presidência de Trump e em direção a uma desconfiança mais lúcida dos ricos e seus facilitadores. Há não muito tempo, talvez em épocas semelhantes à que estamos vivendo hoje, um presidente estadunidense disse: "a transmissão de grandes fortunas de geração em geração por testamento, herança ou doação não coaduna com os ideais e sentimentos do povo estadunidense". Seria ótimo para a grande maioria se concluíssemos, mais uma vez, como já concluiu Franklin Roosevelt, que as "grandes acumulações de riqueza" perpetuam uma "concentração indesejável de poder em poucas mãos, em detrimento do bem-estar e a satisfação de muita, muita gente".
No mínimo, deveríamos começar nos indignando com o que a elite está fazendo conosco. Afinal, sabemos que o lobo pode comer o cordeiro. Mas o cordeiro não pode aplaudi-lo por isso.
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Capital Sem Fronteiras. Gestores da riqueza e o um por cento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU