14 Fevereiro 2017
Em diálogo com o Página/12, Juan Villoro fala sobre a relação do México com os Estados Unidos antes e depois de Trump, da fronteira, da América Latina, do fascismo e do valor da literatura como um oásis ou refúgio em um mundo cada vez mais hostil.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 12-02-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
O empedrado das ruas de um dos bairros mais românticos do México, Coyoacán, guia os passos até a casa de um dos intelectuais mais brilhantes da língua espanhola: o mexicano Juan Villoro. Lá, onde ele costuma escrever, surge uma descoberta. Romances, contos, literatura infantil, peças de teatro, ensaios e um profuso e imperdível trabalho jornalístico compõem o corpo de uma obra cheia de poesia e ironia lúcida. Vencedor de uma boa dezena de prêmios em várias categorias, do romance ao jornalismo, Villoro publicou seus primeiros contos em 1980 (La noche navegable) seu primeiro livro infantil em 1985 (Las golosinas secretas) e seu romance inaugural em 1991 (El disparo de argón). O sucesso narrativo chegou em 2004 com o romance El testigo (Prêmio Herralde). Sua escrita percorre uma gama de temáticas, mas principalmente a dessa paixão planetária e organizada que é o futebol, um esporte que Villoro elevou à categoria metafísica e sobre a qual ele escreveu uma joia da literatura, Dios es redondo (Prêmio Vázquez Montalbán, em 2006). Tem sido, até agora, o único escritor que tenha lhe ocorrido contar não a impossibilidade de um autor em escrever, mas o empenho de um livro para não deixar-se ser lido (O Livro Selvagem).
Juan Villoro é para as palavras o que um saxofonista como John Coltrane é para o jazz e a música: um explorador inesgotável de ressonâncias e sentidos. O México de Juan Villoro é alheio a todo folclore: é a cidade, o olhar de explorações infinitas que vai descobrindo um lugar onde "o carnaval se confunde com o apocalipse". Conto infantil, crônica jornalística, narrativa novelesca ou breve relato, a obra de Villoro é um corpus reflexivo, cheio de humor, de gravidade e de leveza. A eleição de Donald Trump colocou México no alvo da ira xenofóbica do presidente norte-americano. Nesta entrevista concedida à Página/12, Villoro reflete sobre o lugar da literatura em tempos de crise, aprofunda a complexa relação entre o México e os Estados Unidos, assinala a quase solidão de um país que se distanciou de sua fonte natural, a América Latina, e profetiza um mundo que se decompôs e no qual somos "como bárbaros de uma nova era".
Eis a entrevista.
Depois dos atentados contra o jornal semanário Charlie Hebdo e o supermercado judeu, em 2015, o livro mais vendido na França foi um clássico de Voltaire: Tratado sobre a Tolerância. Logo, em novembro do mesmo ano, houve a matança no Bataclan e nos bares da capital francesa. A partir daí, o livro mais vendido foi Paris é uma Festa, de Ernest Hemingway. Agora, nos Estados Unidos, após a vitória de Donald Trump, o best-seller é 1984, de George Orwell. A literatura parece conservar um valor de refúgio, uma espécie de oásis para a compreensão do que acontece conosco.
A literatura se parece um pouco aos paraquedas. Em condições normais, nem todo mundo exerce a literatura, nem todo mundo lê ou se joga de paraquedas por esporte. Mas em uma situação de urgência, a literatura e os paraquedas salvam sua vida. Esta é mais ou menos a situação que temos. Um náufrago que sobrevive e encontra um livro tem algo para entreter a mente. O mesmo acontece hoje com pessoas desesperadas tentando encontrar na literatura um refúgio ou referências para saber o que foi que aconteceu e como poderia ter acontecido algo como os ataques de Paris ou Donald Trump. Mas desde já, há muitas pistas na obra de Orwell para compreender o que está acontecendo nos Estados Unidos. O caso de uma sociedade que se considera democrática e que dá espaço a um candidato racista, que nega a informação, que diz mentiras e que falsifica dados é algo muito complexo. Em suma, um grande charlatão, um grande bufão que deixou de ser uma figura de segunda ordem na televisão e um magnata bastante questionado para converter-se no homem mais poderoso do planeta.
O que acontecerá com Trump já está descrito na literatura em uma espécie de antecipação que vai tomando forma a cada semana.
Há algum tempo escrevi um artigo sobre um romance de Sinclair Lewis, It Can't Happen Here (Isso Não Pode Acontecer Aqui, n.t.). O romance fala de um político norte-americano conservador, messiânico, que, imitando a liderança de Hitler e Mussolini na Segunda Guerra Mundial, apresenta uma agenda muito atrativa para o descontentamento americano. Muitas pessoas liberais dizem na novela que esse candidato não pode triunfar nos Estados Unidos, pois a democracia é muito forte. Logo, no romance, as pessoas que votaram nele acabam decepcionadas porque, uma vez que um governo autoritário é estabelecido, surge uma ditadura. Inclusive as pessoas que o apoiaram acabam presas. Este é, então, um esboço do que poderia acontecer nos Estados Unidos. Mas os presidentes não leem romances e, aparentemente, a realidade tampouco o faz, de maneira a estarem suficientemente alertas sobre o que poderia acontecer.
A desconfiguração do mundo não é uma exclusividade norte-americana. Na Europa está acontecendo a mesma coisa com as pujantes extrema-direitas. Há uma propagação dessas utopias do mal.
O Populismo é uma semente que está latente em todas os povos. Há um impulso nacionalista que muitas vezes parece ser a resposta definitiva para uma circunstância desagradável. Vimos isto nos EUA com Donald Trump, na Inglaterra com o Brexit e na Catalunha o separatismo aumentou com a crise. O Dr. Johnson dizia: "o nacionalismo é o último refúgio dos canalhas". Ou seja, a última oportunidade de encontrar uma raiz válida para uma realidade adversa. Isto continuará a ocorrer em todo o mundo. O fascismo italiano foi nacionalista, o nazismo alemão também. Não é uma invenção norte-americana. Creio que o grande problema da classe política e da mídia foi a incapacidade de analisar o descontentamento real de muitas pessoas nos Estados Unidos e, também, o esgotamento de um modelo político. Isto foi o que também possibilitou que uma candidata tão deficitária quanto Hillary Clinton, membro de um sistema totalmente obsoleto e questionável, se apresentasse como uma alternativa contra Donald Trump. Claramente que não era.
Nesta situação, o México está na vanguarda. Sua fronteira com os Estados Unidos é uma ameaça.
Sim, no México está ocorrendo uma reação para potencializar um candidato que seja o anti-Trump. Trata-se de Andrés Manuel López Obrador, o candidato da esquerda. Obrador permaneceu em voga por muitas razões. Em duas ocasiões concorreu à presidência. Na primeira foi objeto de todo o tipo de truques e ficou como se fosse um mal perdedor. Desde então, ele não parou de lutar. Parte de seu projeto político tem a ver com o nacionalismo que o governo do atual presidente, Peña Nieto, tem prejudicado muito. Todas as reformas que ocorreram no México apontaram para a famosa globalização. No dia 1º de Janeiro de 1994, o Exército Zapatista pegou em armas para protestar contra a entrada em vigor do Acordo de Livre Comércio entre o México, os Estados Unidos e o Canadá. Eles diziam: "estão vendendo o México em uma época que o nosso povo originário não recebeu nenhum benefício do chamado desenvolvimento". Isso, em 94, despertou a atenção de maneira muito importante. Desde então, os diversos governos não têm feito outra coisa senão articular uma política dependente dos Estados Unidos. Recentemente, houve uma reforma energética que permite que sejam feitos investimentos de até 100% por 100% com capital estrangeiro, em águas profundas, para explorar petróleo. Esta é a venda do patrimônio nacional. Um governo que não teve uma atitude de defesa da soberania agora está sendo desafiado por López Obrador, um candidato forte, carismático, que agora recebe o impulso dos Estados Unidos. Parece ser a pessoa que poderia enfrentar com mais consistência o projeto imperialista dos EUA. O nacionalismo de López Obrador adquire combustível. Para os mexicanos, há uma preocupação de que Donald Trump seja o presidente dos Estados Unidos, mas há uma preocupação muito maior de que Peña Nieto seja o do México.
Ao governo tem lhe faltado solidez em sua resposta às agressões de Trump, expondo-se às provocações do presidente norte-americano, sem opção de resposta contundente.
É evidente que Trump define a agenda e o México não consegue ter uma agenda paralela. A resposta mexicana aos Estados Unidos foi muito branda e totalmente indiferente com a América Latina. Esse é um dos grandes problemas que temos.
O México de distanciou inexplicavelmente da América Latina quando, na realidade, costumava ser um agente decisivo no passado.
Se formos ver os últimos fóruns que foram realizados na América Latina, a participação mexicana tem sido muito escassa, ou nem tem participado. Não temos uma verdadeira política hemisférica com a América Latina. Claro, agora que estamos com um grande problema não há um apoio da comunidade latino-americana ou uma unidade a respeito de Trump, nem pode havê-la. O problema é que o México tem uma mentalidade de irmão mais novo com relação aos Estados Unidos. Visualizamos o presidente dos Estados Unidos como o irmão mais velho, impositivo, cruel, poderoso, arbitrário, mas que pode nos fazer alguns favores, porque, a final de contas, podemos considerar que temos seu consentimento, que somos o seu favorito, o seu protegido. Essa sempre foi a estratégia do México frente aos Estados Unidos: jogar a carta do favorito por ter uma grande fronteira e por ser o país com o qual temos mais comércio. A fronteira entre o México e os Estados Unidos é a mais atravessada no mundo, seja com travessias legais ou ilegais. Nesta situação, consideramos que os Estados Unidos irão nos favorecer com algum tipo de privilégio. Por isso a política tem sido muito branda, uma política que não coloca as cartas na mesa sobre o assunto. Isto é muito grave, porque há muitas décadas temos os mesmos problemas. Barack Obama foi o rosto sorridente de uma política muito semelhante à de Donald Trump. Obama quebrou recordes de deportações, mais de três milhões de mexicanos regressaram para cá. No Oriente Médio, Obama quebrou recordes de ataques com drones, havendo mortes da população civil. Em suma, não foi um presidente ao qual poderíamos considerar como um parceiro do México. A situação é esquizofrênica. Os empregos estão disponíveis para os mexicanos. Em qualquer restaurante dos EUA as cozinhas estão cheias de mexicanos. São eles que lavam todos os pratos do império. Nesta situação em que tantos trabalhadores mexicanos são necessários, não tem sido possível regularizar a imigração. Isso é algo gravíssimo. Os mexicanos têm que atravessar um autêntico safari na fronteira e sobreviver através de milagres para, em seguida, chegar aos trabalhos que estão eventualmente disponíveis. Esta situação já dura 30 anos. O México não teve uma política verdadeira em relação aos Estados Unidos.
Se formos enxergar a configuração de hoje através do humor, da ironia ou da literatura, temos um grande problema ou uma grande oportunidade nas mãos?
As crises são oportunidades. Parece-me maravilhosa a marcha de um milhão de mulheres em Washington após o triunfo da Trump, mas que essa marcha também pudesse ter sido realizada caso Hillary Clinton tivesse ganhado também, porque os problemas lá denunciados não foram resolvidos por ninguém até agora. Trump tem esse efeito repulsivo que faz com que muitas pessoas se envolvam pela primeira vez. Se Hillary tivesse vencido, teria sido para muitos algo como "podemos dormir em paz, a democracia triunfou, a democracia se impôs". Mas esta é uma democracia muito falida e uma razão questionável. Então, este efeito repulsivo é importante dentro dos Estados Unidos. E aos mexicanos também deve servir para recapacitar, para reformular a nossa política e buscar alternativas para a dependência que temos: 85% do nosso comércio é feito com os Estados Unidos. Na década de 80 o México chegou a ser o quarto maior produtor mundial de petróleo. Hoje importamos dos Estados Unidos 60% da nossa gasolina. E temos reservas comprovadas para cinco dias. Se os Estados Unidos cortassem o fornecimento de gasolina, em dez dias o país estaria paralisado. Esse é o nível de nossa dependência. Isto deve nos levar a pensar em outras alternativas. O que não me parece certo é que isso nos conduza a isentar as responsabilidades internas e, a partir daí, Donald Trump se tornar o aliado mais paradoxal de Peña Nieto ao fazer do nosso presidente a vítima do continente, o homem que queria e não pôde defender completamente a soberania mexicana.
Muitos mexicanos, devido à sua posição geográfica, consideram-se norte-americanos. Esta não é uma armadilha na percepção da identidade? Por acaso o México não precisa perceber que faz parte da imensa cultura da fronteira sul e pertencente a esse orbe de identidade?
Esse tem sido um dos nossos grandes atrasos. O México sempre teve essa visão voltada para o norte. Por exemplo, em linguagem coloquial, quando alguém diz que vai para a fronteira, refere-se ao norte. Não existe a fronteira sul, por mais que a tenhamos. A obsessão mexicana é olhar para o norte. Nossa cultura tem sido forte o suficiente para viajar aos Estados Unidos, sem perder tradições, para transformar os costumes, a comida, os valores de muitas comunidades no interior dos Estados Unidos. Fomos fortes o suficiente para não perder a nossa identidade. Mas, ao mesmo tempo, não tivemos uma política latino-americana forte. Houve momentos em que a maioria dos países latino-americanos – todos – romperam relações diplomáticas com Cuba, mas no México não, mantivemos com Cuba uma relação estratégica muito importante. Creio que quando o levante zapatista disse que "estamos nos entregando aos Estados Unidos", de fato incentivavam uma fibra muito mais forte da que podia ser vista naquela época.
De qualquer forma, as relações entre o México e os Estados Unidos são complexas. A fronteira é, para os americanos, muito mais do que uma divisão física: é ao mesmo tempo a porta do paraíso e do inferno.
A percepção de certos americanos sobre o México é muito curiosa. Lembro-me que nos anos 60 haviam botões hippies em São Francisco que diziam: "God is alive and well and living in Mexico City". Deus está são e salvo e vivendo na Cidade do México. Isto era paradoxal porque a nossa comunidade de então era bastante convencional, para não dizer repressiva, mas os hippies encontravam aqui a possibilidade de viver tranquilamente. A Geração Beat veio para cá, Kerouac escreveu aqui o seu famoso romance On the Road, William Burroughs viveu no México, matou sua esposa e saiu sem quaisquer problemas. A Burroughs parecia que a justiça mexicana era maravilhosamente subornável. O México era como a reserva dos excessos dos EUA. O norte-americano que vem para o México é um fugitivo, um exilado ou alguém que está infeliz com um estado de coisas que há no seu país e que pensa em comportar-se de forma diferente no México. Este país dá-lhe a oportunidade. Tivemos a sorte de contar com esse tipo de norte-americanos. Mas é uma relação complexa porque os mexicanos estão perfeitamente cientes do papel que os EUA desempenharam para nós. O presidente Porfirio Díaz costumava dizer "pobre do México. Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos". Sempre pensamos que é o inimigo que devemos derrotar e também o parceiro ao qual devemos adular.
Me resta a tentação de uma última pergunta que formulo: muitos pensadores, jornalistas e escritores estão confiantes de que o mundo está quebrado, de que os moldes de antes não servem mais nem para compreendê-lo, nem para narrá-lo.
Tenho a impressão de que somos os bárbaros de uma nova era. Algo está começando, há um final de ciclo, novas tecnologias, novas dependências, novos vícios, novos medos, novas ilusões. Tudo isto cria um paradigma que ainda não acabamos de decifrar. Temos recursos e instrumentos que ainda não sabemos como usar. Não é por acaso que a palavra de 2016 tenha sido pós-verdade. Estamos apenas aprendendo novos protocolos. Neste mundo de miragens temos de encontrar novos recursos, novas estratégias para recuperar a verdade. Sem ela não poderemos viver.
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"Somos os bárbaros de uma nova era" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU