22 Novembro 2016
No último dia 24 de outubro, Agamenon Suruí, de 54 anos, deixou sua casa na aldeia Lapetenha, em Rondônia, para resolver assuntos de trabalho em Cacoal, a 40 km dali.
Enquanto percorria um trecho de terra na garupa da moto pilotada pelo filho Pilatos, de 25 anos, ambos perceberam que eram seguidos por um carro com três pessoas.
O veículo ultrapassou e bloqueou a moto. Um homem desceu. Com o dedo no rosto de Agamenon, avisou que ele e o irmão deveriam "tomar mais cuidado".
A reportagem é publicada por BBC Brasil, 21-11-2016.
O irmão em questão é Almir Narayamoga Suruí, de 42 anos, chefe dos paiter-suruís e um dos principais líderes indígenas do Brasil.
O episódio na estrada é sinal do agravamento dos conflitos na TI (Terra Indígena) Sete de Setembro, localizada entre Rondônia e Mato Grosso e que nos últimos anos foi considerada a grande promessa de uso da tecnologia para proteger a floresta na Amazônia.
"Tenho medo de morrer. É um risco que corro a todo o momento. As pessoas acham que me matando vão poder explorar madeira numa boa. Sou alvo não só pelos madeireiros e garimpeiros, mas também pelos índios madeireiros", afirmou Almir à BBC Brasil.
Ele é um dos chefes indígenas mais viajados do país - já rodou por países distantes como Turquia e Indonésia, acumulou prêmios e distinções enquanto faz lobby por parcerias internacionais para preservar os recursos naturais na reserva dos paiter-suruís.
Nesse trabalho, costurou acordos com grandes empresas daqui e de fora, ONGs ambientalistas e políticos em Brasília.
Ganhou fama em 2008, quando fez um acordo com o Google para monitorar o desmate na terra indígena - índios ganharam celulares para registrar extração ilegal de madeira, capturar fotos e vídeos geolocalizados e fazer upload no Google Earth.
Em 2012, os paiter-suruís se tornaram a primeira nação indígena do mundo a fechar contratos nos quais eles faturam ao evitar desmatamentos em seu território - houve acordos com Natura e Fifa, que renderam ao menos R$ 1,2 milhão.
Nos últimos anos, contudo, discordâncias sobre o uso dos recursos reacenderam divisões históricas entre os suruís e situação saiu de controle na Sete de Setembro - uma área de 2,4 mil km² (ou duas vezes a cidade do Rio de Janeiro) e 1,3 mil índios espalhados por 25 aldeias.
O desmate ilegal dentro da TI Sete de Setembro saltou de 85 hectares em 2013 para 496 hectares (cerca de 500 campos de futebol) em 2015, segundo a ONG Idesam (Instituto de Conservação e de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia).
A terra dos suruís (ou paiter, como se intitulam) fica em um dos principais focos do chamado "arco do desmatamento", região em que a fronteira agrícola avança em direção à floresta e responde pelos maiores índices de desmatamento da Amazônia.
Segundo Almir, hoje 15 das 25 aldeias da terra indígena estão envolvidas em exploração ilegal de recursos naturais. Cinco se opõem à presença de madeireiros e cinco estão divididas, afirma.
"A floresta não precisa ser intocável, mas deve ser usada com planejamento e critério. Somos contra a forma como a madeira está sendo retirada", diz o líder dos paiter-suruís.
Índios contrários ao desmatamento estimam que 300 caminhões lotados com toras de madeira deixem a Sete de Setembro todos os meses - avaliação endossada pelo Ministério Público Federal, que acompanha o conflito na região.
As árvores mais procuradas hoje são cerejeira, cedro, ipê, caixeta, garapa e castanheira. O ipê é considerado o novo mogno, muito explorado nas décadas de 1980 e 1990 e hoje praticamente extinto na floresta.
"A situação é frágil e delicada. Madeireiros assediam índios com coisas que o Estado não consegue suprir, como saúde e educação, e com outras que o Estado nem supriria, como dinheiro para carros e motos. Algumas lideranças se acostumaram com essa renda, o que torna o problema histórico", afirma o procurador da República Henrique Heck.
De fato, a relação dos suruís com a exploração ilegal de madeira não é nova.
Contatada pela primeira vez em 1969, essa tribo amazônica chegou a perder 90% da população para a tuberculose e o sarampo antes mesmo do nascimento de Almir, em 1974.
A terra indígena foi homologada em 1983, mas sofreu impacto, nos anos seguintes, de projetos de colonização e também invasões de pequenos agricultores.
Os suruís passaram então a ser conhecidos pela venda de madeira a extratores ilegais - situação que motivou divisões internas e desagregação social.
Aos 15 anos, ainda com pouco conhecimento de português, Almir aceitou convite da Universidade Católica de Goiás para estudar Biologia Aplicada. Formou-se em 1992 e foi eleito chefe dos Gameb (marimbondos pretos), um dos quatro clãs paiter-suruís.
Casou-se, teve filhos (três, hoje com 22, 21 e 19 anos) e passou a planejar programas de agricultura sustentável em sua aldeia.
"Mas líderes tribais mais velhos - a maioria com menos de 40 anos, como efeito das pragas devastadoras dos anos 1970 - tinham outros planos", afirma, em referência aos interesses dos índios madeireiros, o jornalista americano Steve Zwick, que trabalha em uma biografia de Almir.
Ao final dos anos 1990 Almir Suruí já era um líder indígena conhecido em Rondônia. Gradativamente, começou a trabalhar em um plano para uso das terras suruís nos 50 anos seguintes.
O acordo com o Google trouxe novas perspectivas para a tribo, e em 2009 Almir costurou um pacto entre os quatro clãs para encerrar o histórico ciclo histórico de exploração ilegal de madeira dentro do território.
Em 2012, a redução acumulada de desmatamento somava 511 hectares, o que permitiu as parcerias de venda de créditos de carbono.
Foi o primeiro projeto em área indígena a explorar o chamado Redd (Redução de Emissões por Desmatamento), instrumento de compensação financeira pela manutenção de florestas tropicais e redução do gás carbônico responsável pelo aquecimento global.
A promessa de solução, contudo, começou a incentivar velhas (e novas) divisões. Alguns líderes suruís reclamaram da gestão, por Almir, do chamado Fundo Paiter, criado para administrar o dinheiro desses projetos. Apontavam demora na liberação, centralização de decisões e ausência de benefícios para as comunidades.
O chefe suruí nega as acusações. "O dinheiro foi repassado corretamente para as associações (dos clãs suruís) de acordo com os projetos, conforme foram apresentados para nós. Nossa prestação de contas é clara e transparente", afirma.
Em julho deste ano, a pedido do Ministério Público Federal, que atendeu a reclamações dos setores insatisfeitos, a Justiça chegou a bloquear a movimentação do fundo (que ainda tinha R$ 500 mil em caixa). Os recursos acabaram liberados após uma reunião entre os clãs.
A indisposição com o projeto levou parte dos suruís a retomar a exploração ilegal de madeira, ouro e diamante, bem como o arrendamento de terras para fazendeiros.
Segundo relatos coletados pela reportagem, índios madeireiros esperavam obter mais renda ao interromper o ciclo de desmatamento, o que não ocorreu.
Resultado, segundo Almir: além de madeireiros e fazendeiros, há também garimpo na terra indígena. Com apoio dos índios, aliciados com armas e pagamentos mensais de até R$ 5 mil, os grupos estariam atuando em ao menos 20 pontos da área.
A suposta omissão dos órgãos públicos agrava a situação, afirma o líder. "Já fizemos várias denúncias e nada acontece. Dizem que não podem prender índio e os índios sabem disso."
Em razão desse quadro, a Procuradoria entrou na Justiça na semana passada contra Funai (Fundação Nacional do Índio), Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e os Estados de Rondônia e Mato Grosso.
A ação pede que os órgãos e governos sejam obrigados a realizar uma série de ações de fiscalização e apoio a atividades sustentáveis pelos índios, como coleta de castanhas.
Diz ainda que a "criminalidade recrudesceu" dentro da terra indígena em razão da "fiscalização acanhada dos órgãos públicos".
Aponta que "muitos indígenas foram cooptados pelas madeireiras" e que a "sensação de impunidade prepondera" no local, o que faz aumentar a adesão de índios à atividade ilegal.
"Se a situação continuar assim, há possibilidade de descaracterização total do território em médio prazo", afirma Henrique Heck.
A reportagem entrou em contato com os governos de Rondônia e Mato Grosso para comentários sobre a ação da Procuradoria, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Em nota, a Funai disse ter conhecimento do cenário na Sete de Setembro e que tem feito fiscalizações na região. Reconheceu, contudo, que o "grande desafio" hoje é integrar esferas de poder e complementar monitoramento com políticas de sustentabilidade para índios e cidades do entorno.
"Sem alternativas de renda no entorno para as populações não indígenas, a pressão sobre as terras indígenas cresce cada vez mais, ameaçando os recursos naturais e a segurança dessas comunidades", informou o órgão.
Enquanto isso, hoje o "cacique tecnológico" Almir Suruí está praticamente sitiado em sua própria região - mora com a família em Cacoal, cidade de 78 mil habitantes a 480 km de Porto Velho, vizinha da terra indígena Sete de Setembro.
Vive escoltado pelos irmãos, nunca viaja sozinho e evita ir ao supermercado ou sacar dinheiro sem estar acompanhado.
"Não gostamos que o Almir vá a nenhum lugar sozinho, nem dentro da nossa própria terra, porque há uma parte grande do nosso povo contra o trabalho dele. A gente também vive com medo de branco matar o Almir. Branco madeireiro, fazendeiro, garimpeiro.
É muita preocupação", diz o irmão Mopiri Suruí, de 56 anos.
Almir chegou a contar com proteção de agentes da Força Nacional de Segurança entre 2012 e 2013, mas desistiu. "Era uma proteção e não uma solução. A solução é acabar com a exploração ilegal."
Com 98 quilos distribuídos em 1,68 m, fã de Raul Seixas e tubaína, torcedor do Flamengo, apreciador de camionetes e membro de 23 grupos do WhatsApp, ele diz ter desenvolvido gastrite ao conviver com ameaças de morte.
E às vezes ameaça desistir de tudo e se dedicar somente à família. "Se é explorar madeira o que o meu povo quer, tudo bem."
Por força da deterioração da situação na terra indígena que um dia foi modelo de recuperação sustentável, organizações internacionais articulam uma campanha, com abaixo-assinado e pedido de doações online, em que alertam para uma "situação de emergência" na terra dos paiter-suruís.
"Minha maior preocupação é que assassinem o meu filho. É muito difícil para mim como mãe. Ele vem trabalhando, defendendo a floresta para trabalhar de forma sustentável, mas nosso próprio povo prefere o dinheiro fácil da madeira e do garimpo. Meu medo é porque sei que há pessoas contra ele e o trabalho dele. Só Deus para me aliviar. Só Deus", diz Weytanb, 88 anos, mãe de Almir.
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'Tenho medo de morrer na própria aldeia': como 'cacique-modelo' da Amazônia se tornou alvo de índios madeireiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU