18 Novembro 2016
"Entre Borges e Neruda, há uma semelhança que tem a ver com a atitude diante de Deus e de Jesus Cristo – por mais que possamos considerar ambos os escritores, em uma perspectiva conceitual, como agnósticos. Aqui, interessa-me compará-los a partir deste último ponto de vista."
Publicamos um trecho de um artigo de Dom Víctor Manuel Fernández, reitor da Pontifícia Universidade Católica Argentina de Buenos Aires, que será publicado na próxima edição da revista Vita e Pensiero.
O artigo foi publicado no jornal L’Osservatore Romano, 09-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Borges e Neruda se situavam nos antípodas, do ponto de vista político. Em 1971, Borges não quis receber Neruda porque ele era embaixador de um governo comunista. Neruda, por sua vez, diria em 1973 que "Borges pensa como um dinossauro". No entanto, eles se admiravam reciprocamente como escritores e declaravam isso publicamente. A conclusão sobre os seus "desencontros" é oferecida por Neruda: "Ele não entende o que está acontecendo no mundo moderno e acredita que nem eu entendo. Então, estamos de acordo".
Entre os dois, há outra semelhança: tem a ver com a atitude diante de Deus e de Jesus Cristo – por mais que possamos considerar ambos os escritores, em uma perspectiva conceitual, como agnósticos. Aqui, interessa-me compará-los a partir deste último ponto de vista.
O sentido do divino na obra de Neruda emerge especialmente no âmbito da sua relação com a mulher. É ela a mediação mais importante para que a sede de infinito aflore: "E ela saberá saciar a minha sede divina" (Laus Deo). Neruda não hesita em comparar a presença dela no próprio íntimo à de Deus que habita a água que corre: "Para te sentir nas minhas veias como Deus nos rios" (Amor).
Não é raro que a sua linguagem amorosa adquira tonalidades litúrgicas ou pareça se referir a um projeto transcendente, preexistente, que dá sentido às experiências mais profundas da vida. É maior, porém, o desejo da realização, e a "sede divina", não chega a se apagar na mulher. A primeira das Vinte Poesias de Amor... expressa isso talvez melhor do que qualquer outra: "Corpo de mulher minha, persistirá em tua graça. Minha sede, minha ânsia sem limites, meu caminho indeciso! Obscuros rios, onde a sede eterna segue, e a fadiga segue, e a dor infinita" (Corpo de Mulher).
Graça, ânsia sem limites, sede eterna, dor infinita. São expressões de sabor religioso. A transcendência prometida na mulher não chega a se cumprir nela. Em nível consciente, Neruda não pretende falar da transcendência divina, enquanto, em outro nível da consciência, brota de modo irrefreável o anseio de algo que ultrapasse o visível e não possua os limites daquilo que pode ser aferrado.
Neruda, assim, expressou como poucos outros a dramática sede de amor do coração humano, que se inflama diante do encanto de uma mulher e que, ao mesmo tempo, intui nela algo que, sem limites e além de todas as coisas, transcende a própria amada.
Além disso, Neruda presta um sincero reconhecimento à fé cristã quando ela se torna compromisso com o outro. Ao mesmo tempo, a dimensão marcadamente social que a sua poesia adquire tornou Deus em problema. Neruda não pode entender o silêncio de Deus diante da dor dos pobres, que também são crentes. Porém, embora a sua queixa permaneça inteira e sem possibilidade de iluminar o mistério, Deus continua aparecendo, nomeado aqui e ali pelo poeta, na sua obstinação para expressar algo maior, que transcenda a materialidade da beleza.
Se, em Neruda, agnóstico de esquerda, é possível rastrear permanências da fé popular, em Borges o caminho é outro. A força do não saber, que chamamos de "agnosticismo", se acentua e se reafirma, e a impressionante vastidão da sua cultura iluminista e da sua pessoal busca intelectual mantém à distância o patrimônio religioso tradicional.
"O outro, o mesmo", uma de suas obras que ele apreciava de modo particular, porque se via bem refletido nela, é rica em linguagem religiosa. São textos que remetem a uma busca de Deus que utiliza uma linguagem negativa, que rejeita qualquer tentativa de encerrar Deus em palavras banais, em expressões óbvias demais. A linguagem de Borges convida, em vez disso, a reconhecer o Deus ainda não alcançado, o do "invisível horizonte", aquele ao qual "não servem (...) teorias concêntricas".
O pensamento místico cristão mantém em aberto a possibilidade de se aproximar de Deus, de entrar contato com Ele, mas através de um caminho diferente do caminho do conhecimento explícito. Em outras palavras, a ausência de um conhecimento explícito não é necessariamente um obstáculo para se aproximar d’Ele. A fé traz dentro de si dinâmicas diferentes, que nem sempre se desenvolvem de maneira uniforme. Uma forte adesão interior pode coexistir com um baixo nível de conhecimento explícito ou de instrução religiosa; a fé pode ser muito desenvolvida como inclinação, tendência, movimento interior e, ao mesmo tempo, pouco iluminada do ponto de vista intelectual.
E mais. As experiências místicas mais profundas e intensas geralmente são descritas pelos mestres espirituais como um marcado anseio de busca e de união no meio da mais densa escuridão, onde aquilo que se nega é mais do que aquilo que se possa afirmar. É a chamada "teologia mística negativa".
São Tomás de Aquino ensinava que, na fé, agem tanto a vontade que consente quanto o intelecto que pensa. A fé que pensa (cogitatio fidei) é uma busca sempre cheia de perguntas. Ao lado do mais firme consenso da vontade, o pensamento permanece inquieto (De Veritate, 14, 1, ad 5: Motum cogitationis in ipso remanet inquietus).
É por isso que se pode ter uma fé muito intensa, com uma adesão muito firme da vontade e, simultaneamente, a inteligência agitada por muitas perguntas e escuridões. O Papa Bento XVI se referiu àqueles que "desejam o Puro e o Grande, mesmo se Deus permanece para eles o ‘Deus desconhecido’ (Atos 17, 23)". Ele acrescentou que estes, assim, podem "estar em relação com o Deus verdadeiro, embora no meio da escuridão", já que há modos de "agarrar-se a Deus, sem O conhecer", e de "aproximar-se d'Ele pelo menos como Desconhecido" (Discurso à Cúria Roman para a apresentação dos votos de Natal, 21 de dezembro de 2009).
Quem admira a honestidade e a sinceridade de Borges chega a entrever uma abertura à transcendência vivida no meio de densas trevas, que nada mais são do que a rejeição da pretensão de enjaular o infinito do desejo e da sua realização dentro de categorias e estruturas que expressam unicamente projeções da imanência e do limite humano.
O interessante é que o cultíssimo Borges estava perfeitamente a par da existência de uma "teologia negativa" na Igreja. Ele explicita isso em "Outras inquisições (De alguém a ninguém)", em que diz que o acúmulo de superlativos "parece limitar a divindade".
Quando ele fala dos Evangelhos, parece querer expressar algo de inapreensível, que não pode ser contido em nenhum comentário. Ao mesmo tempo, ele admite sutilmente uma busca própria desse Cristo inapreensível que se intui no texto dos Evangelhos, busca que se concentra no rosto do Crucificado. Na primeira poesia da coleção "Os conjurados", dedicada a Cristo na cruz, ele reconhece: "O rosto não é o rosto das lâminas. / É áspero e judeu. Não o vejo / e seguirei buscando=o até o dia / último dos meus passos pela terra". O fascínio por Cristo crucificado retorna repetidamente nas suas composições, mas, na coleção "O artífice" (Paradiso XXXI, 108), o Seu rosto se apresenta com uma chave de compreensão.
Borges também queria encontrar Deus, embora se considerasse incapaz de conhecê-Lo. Para Neruda, o limite era o mal, o sofrimento dos pobres, a injustiça social. Em Borges, o limite era a honestidade intelectual, que o levava a admitir que, com as suas categorias, ele não podia incorporar uma convicção crente, como se dissesse: "Desculpe, mas não o vejo". No entanto, poderia ser essa mesma obscura honestidade que lhe abriu, muito discretamente, o caminho do encontro com o verdadeiro Deus e com o autêntico Cristo, que ele chega a entrever no rosto do Crucificado.
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Na obra literária de dois agnósticos: Deus entre Borges e Neruda. Artigo de Víctor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU