09 Novembro 2016
"Existe um subsolo católico opaco e apreensivo, feito de sentimentos reacionários: na era-Francisco, ele é muitas vezes antipapal, desde sempre teologicamente aproximativo. Volta o refrão do intransigentismo dos séculos XIX-XX: para o qual a modernidade produz rebeliões contra as quais um Deus cruel, irreconhecível para a fé bíblica, reage mandando flagelos pedagógicos."
A opinião é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha. O artigo foi publicado por La Repubblica, 08-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A vulgaridade de um frade dominicano [o padre Giovanni Cavalcoli] – que, aos microfones da Radio Maria, leu o terremoto [na região central da Itália] como uma punição e foi demitido depois de uma tomada de posição vaticana – abriu uma pequena fresta sobre uma religiosidade integrista, geralmente invisível. É um subsolo católico opaco e apreensivo, feito de sentimentos reacionários: na era-Francisco, ele é muitas vezes antipapal, desde sempre teologicamente aproximativo. Volta o refrão do intransigentismo dos séculos XIX-XX: para o qual a modernidade produz rebeliões contra as quais um Deus cruel, irreconhecível para a fé bíblica, reage mandando flagelos pedagógicos.
Esse pensamento antimoderno sempre se dotou de mídias "modernas", como os jornais, os movimentos, o rádio, a TV. No mundo da hipercomunicação, essa poeirama integrista tornou-se mais visível. Sites e antenas, blogs e mídias sociais administram medos sob medida: os medos sobre aquilo que é ensinado na escola para os movimentos pró-vida, os dos padres tradicionalistas que dão à xenofobia leguista [da Liga Norte] perfumes de incenso, os do radicalismo "familista" que se manifestam ao amor homossexual o ressentimento dos não resolvidos.
Basta ouvir a Radio Maria: que inculca em doses cotidianas suspeitas e inimizades, com o seu líder, o padre Livio Fanzaga, que, todos os dias, explica, lendo os jornais, onde estão os perigos são, quem são os adversários e, principalmente, "desmascara" os traidores.
Tudo isso intercalado com momentos espirituais – para aqueles que dirigem à noite ou esperam o amanhecer no hospital, o terço ou o ofício divino são melhores do que a rádio das estradas – por trás dos quais se traduz a pretensão de serem os únicos combativos em uma Igreja mole, os únicos fiéis em uma Igreja de covardes, os únicos católicos em uma Igreja de apóstatas.
Os devaneios antibergoglianos de Antonio Socci [jornalista e apresentador italiano], lá, não despertam compaixão, mas admiração: a tese do jornalista, nas horas do terremoto, era de que um verdadeiro pontífice consagraria a Itália à Virgem Maria; e que Francisco não tinha feito isso porque era um gesto "católico demais" para um papa que ele considera, grosso modo, como um usurpador.
É um mundo nos antípodas da autêntica piedade popular: esta é o modo pelo qual uma comunidade expropriada da liturgia pelo protagonismo clerical encontra espaços e linguagens que nascem daquela intuição crente que a doutrina cristã chama de "sensus fidei".
Neste mundo do meio, em vez disso, o jogo é muito político. Embora ainda não se tornaram a variante católica das Igrejas televisivas estadunidenses – cujo peso eleitoral na eleição estadunidense dessa terça-feira foi bem estimado pelo Pew Center – os fãs dos blogs e das rádio integristas são um potencial político, porque, no mundo dos desafetos políticos, eles representam uma fidelização.
A ameaça contra Renzi pelo encontro "familista" de Adinolfi – que jurava vingança da lei sobre as uniões nas urnas do referendo – era apenas uma dessas possíveis variações. Mas que, amanhã, poderia encontrar convergências inesperadas no "grillismo" [de Beppe Grillo, do Movimento 5 Stelle], cuja cultura, apenas e totalmente de direita, não ignora que sempre há um catolicismo oportunista, pronto para "dialogar" com todo poder disposto a ser seu patrono.
O fato de que, a uma voz honestamente menor como a do padre Cavalcoli, a Santa Sé em pessoa reagiu (não é habitual que o diretor da política italiana, o Sostituto, tome a palavra de modo tão claro e categórico), diz que a Igreja de Bergoglio não subestima aquilo que havia de "político" naquelas palavras. O fato de que o desastre natural possa dar origem a questões filosóficas já é sabido pela Europa desde 1755, quando o terremoto de Lisboa permitiu que Voltaire polemizasse com os virtuosismos da "teodiceia", que justificava Deus perante as catástrofes do mundo: mas, honestamente, o padre Cavalcoli não está nesse grupo... Ele pertence à deriva que, agitando temas reacionários, fez com que as Igrejas deslizassem para posições perigosas: como as da homônima Radio Maria polonesa, que alertou até mesmo Bento XVI em 2006, quando os delírios antissemitas dessa emitente foram penalizados, embora sem muito sucesso.
Hoje, com a casa natal de São Bento, padroeiro da Europa, desmoronando enquanto a Europa desmorona, a Santa Sé deu um sinal muito cristão e muito político. Onde desaparece o bom senso humano e o bom coração católico, aninha-se uma necessidade de ódio: que é o ar que se respira neste país dilacerado e vulnerável. Que pensou por muito tempo que podia escolher os seus grandes problemas – o desemprego, a desnatalidade, as migrações, o terrorismo, a crise econômica – e a ordem para enfrentá-los. Em vez de se perguntar quanta humildade e quanta coesão são necessárias para se estar pronto quando o que paira acontece, apresentando ao amanhã a conta de um ontem que já passou.
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O Deus cruel dos católicos reacionários. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU