18 Outubro 2016
Lieber Fritz, "Caro Fritz, parece que a Alemanha despertou, compreendeu seu destino. Gostaria que lesses o livro de Hitler, fraco nos capítulos iniciais autobiográficos. Já ninguém mais pode negar que este homem possui, e sempre possuiu, um seguro instinto político, quando todos nós ainda estávamos obnubilados. O movimento nacional-socialista crescerá no futuro, com novas forças adicionais. Já não se trata da mesquinha política de partido – trata-se antes a salvação ou do ocaso da Europa e da cultura ocidental".
O comentário é de Donatella Di Cesare, filósofa italiana e professora da Universidade de Roma "La Sapienza", publicado por Corriere della Sera, 13-10-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Esta carta, de 18 de dezembro de 1931, faz parte da correspondência entre Martin Heidegger e seu irmão menor, Fritz, que sai em 17 de outubro, na Alemanha, pela editora Herder. O volume, editado por Walter Homolka e Arnulf Heidegger, contém também uma grande coleção de discursos assinados por filósofos, escritores, intelectuais sobre o tema do antissemitismo. A correspondência, que ocupa mais de uma centena de páginas, é a maior novidade, que certamente vai agitar.
As cartas vão de 1930 a 1949 - período decisivo para a Alemanha, para Heidegger, e para o seu pensamento. Mesmo que a correspondência não esteja completa (pode-se ler o resto no Arquivo de Marbach), a publicação é grande importância, porque, após os Cadernos negros, torna-se acessível outra fonte significativa, que pode esclarecer sobre o compromisso político de Heidegger .
Além da visão da vida privada, as cartas revelam a estreita relação entre os dois irmãos, sua forte parceria intelectual. Surpreende a figura de Fritz, de quem pouco se sabia: somente que tinha sempre ficado em Messkirch, a aldeia nativa, que a gagueira o impedira de continuar seus estudos, que isso paradoxalmente teria aguçado sua afinidade para a linguagem, a tal ponto que adquirira certa fama pelos trocadilhos e ditos espirituosos. O retrato de bobo da corte, que trabalhava profissionalmente, a contragosto, como funcionário de um banco, é corrigida pela correspondência.
Fritz Heidegger aparece como personagem proeminente. A ele, Martin confia os manuscritos de suas obras, de modo que sejam relidos, revisados, recopiados e guardados com segurança. Fritz admira seu irmão, segue com orgulho seu sucesso, defende-o. É o seu melhor amigo. Mesmo Hannah Arendt escrevera: "A única pessoa que ele realmente tinha era o seu irmão". Mas Fritz é também um interlocutor nos temas filosóficos e políticos.
Uma ulterior grande surpresa da correspondência está na importância de Hitler. Até agora não se sabia se Heidegger o tivesse lido, o que muitos negavam. Agora está claro que, de 1931 a 1933, Hitler tornara-se tema de debate entre os dois irmãos. Fritz mostrava-se pouco convencido. Ficou perplexo quando Martin enviou como presente Mein Kampf; mas promete que o leria. Confessa-lhe, no entanto, seu "desgosto" pela política vulgar, a exigência de julgar de forma independente os eventos. Os irmãos concordam, no entanto, em considerar o inevitável fim da República de Weimar e da socialdemocracia. Somente que Fritz vê na crise financeira da Alemanha, sobrecarregada de dívidas, a oportunidade aproveitada pelo nacionalismo de Hitler. Sua análise política é mais cautelosa. Martin, ao contrário, insiste; envia-lhe o escrito propagandístico de Beumenburg, Alemanha em cadeias, e recomenda a leitura do romance de Hans Grimm Volk ohne Raum (Um povo sem espaço). E comenta: "Quem não o sabe, pode aprender aqui o que significa pátria para nosso povo". Diante das "inibições" do irmão em relação ao nazismo, Martin toma posição clara. Em 1932, ele afirma que, apesar de todos os erros, "é preciso estar do lado dos nazistas e de Hitler. Vou enviar-te seu novo discurso".
A novidade das cartas está exatamente na firmeza que Heidegger demonstra. Sua adesão parece incondicional. Tornou-se Reitor de Freiburg, dizendo, numa carta de 04 de maio de 1933: "Entrei ontem no partido, não só por convicção pessoal (...). Neste momento é preciso pensar não tanto em si mesmo, quanto no destino do povo alemão". E voltando-se para o irmão: "Se ainda não te decidiste, gostaria que te preparasses interiormente para fazer tua entrada".
Nos anos seguintes emergem as decepções e amarguras de Heidegger. Mais cauteloso, mais pacato, Fritz olha para os eventos com certa distância. Em julho de 1941, julga "problemática" a vitória alemã, enquanto alguns meses mais tarde, Martin calcula a distância do exército de Moscou: "apenas 30 quilômetros". Quando o isolamento político, filosófico, e sobretudo humano, atormenta e angustia o filósofo, Fritz fica do seu lado. Apoia-o; lê seus escritos. "Comecei a estudar a História do ser, frase por frase". Compreende-se porque Heidegger vai frequentemente a Messkirch e, quando longe, envia para o irmão uma carta depois da outra. Recorda sua infância, aprecia aquele forte vínculo fraterno, fala das suas caminhadas ao longo das trilhas nos campos.
Dirige-se a ele em fevereiro de 1946, de Badenweiler, perto de Freiburg, onde foi internado numa clínica psiquiátrica. Não está claro o que o "espírito do mundo" tem intenção de fazer com os alemães, nem por que queira usar, para seus projetos, os norte-americanos. Lieber Fritz - ele escreve - "na era do despatrio", em que ninguém mais está em casa, na hora do "nivelamento planetário", permanece a possibilidade de uma habitação”. Para ele, é a relação com o seu irmão. "A habitação continua, Fritz; somos nós a refundá-la".
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O Nazismo segundo Heidegger: “Hitler desperta nosso povo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU