Por: Caroline | 22 Abril 2014
Três novos volumes pertencentes a monumental edição das obras completas de Martin Heidegger (1889-1976) (foto, assinalado com um "x") foram apresentadas em março, na Alemanha, e chamaram a atenção para a personalidade e a obra do polêmico autor de “Ser e tempo”, para muitos o “protagonista supremo da filosofia do século XX” e, para outros, apenas um astucioso “filosofo nazista”. Os tais volumes constituem as primeiras entregas dos chamados “cadernos pretos”, os livretos de capa-dura de borracha preta que Heidegger utilizava para fazer anotações relacionadas a seus pensamentos. Começou a usar este tipo de caderno em 1931 e continuou utilizando-os até pouco antes de sua morte. Por vontade própria, os cadernos pretos deveriam ser publicados apenas como uma culminação de suas obras completas. Guardados no Arquivo Alemão de Literatura em Marbach, ninguém poderia lê-los até então. O filho não biológico de Heidegger, Hermann, dono do legado de seu pai, manteve um zeloso silêncio sobre o mistério de seu conteúdo; porém também insistiu que, entre os pensamentos muito valiosos para a interpretação da obra de Heidegger, os cadernos continham “respostas” que esclarecem seu envolvimento e ruptura com o nacional-socialismo. Todavia, poderiam eles revelar algo mais que estaria, até agora, escondido? E poderiam responder a uma pergunta audaciosa: seria Heidegger um antissemita? Por isso os estudiosos, e não somente eles, esperavam com expectativa a aparição destes volumes. Contudo, haverá respostas para tantas expectativas?
A reportagem é de Luis Fernando Moreno Claros, publicada por El País, 12-04-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/7GlHUJ |
Estes três volumes contém a minuciosa transcrição de 14 cadernos pretos intitulados “Reflexões”. Foram conservados 34, mais ainda restam publicar outros 20 cadernos com títulos como “Anotações”, “Sinais” ou “Noturno”, entre outros. Virão mais 06 volumes que irão completar os 102 planejados para culminar a grande “obra completa” de Heidegger.
As mais de 1.600 reflexões heideggerianas, enumeradas em sua maioria, que a agora vem à luz pela primeira vez, datam do período compreendido entre 1931 e 1941; uma década maldita para os alemães e pouco agradável para Heidegger. Hitler subiu ao poder em 1933; neste mesmo ano, “o filósofo do ser”, e “rei secreto do pensamento” – como seus alunos denominavam o professor Heidegger – foi nomeado reitor da Universidade de Friburgo. Em 1939 eclode a Segunda Guerra Mundial e, de fundo, a humilhação dos judeus, o premonitório de seu extermínio.
De maneira surpreendente para muitos de seus conhecidos que não o viam como um “nazista”, Heidegger comungou com os novos ostentadores do poder na Alemanha, não sentiu o perigo, muito pelo contrário. Enquanto o filósofo Karl Jaspers, amigo de Heidegger, e tantos outros jovens “heideggerianos” seguidores de seus seminários - Karl Löwith, Hans Jonas, Günther Anders, Herbert Marcuse ou Hannah Arendt – ficavam chocados por esse retrocesso político, o novo reitor desfilava por todos os cantos trazendo a águia alemã sobre a lapela; ou posando para a foto oficial da Universidade com o bigodinho chaplinesco-hitleriano, gesto sombrio de führer, com um olhar perspicaz. Em conversas com Jaspers, que expressou que Hitler não era um homem de cultura e que pouco poderia ser esperado dele, Heidegger contestou: “Isso não importa, apenas olhe você mesmo para suas lindas mãos”. O “filósofo do começar” se emocionou com Hitler, acreditou que seu advento simbolizava o início de uma nova era que encaminharia os alemães a verdade e ao orgulho de sua existência.
Heidegger, pretensioso e vazio em sua seriedade política, atuou como um pequeno ditador durante o ano em que trabalhou como reitor: deu uma reviravolta na universidade. Acreditando ser o novo Heráclito, um filósofo fundador e único, chamou aos estudantes a pensar tudo de novo, e “decidiu” estabelecer a sabedoria e cultura como valores absolutos que deveriam consagrar-se com fanatismo. Os demais professores e as autoridades nacional-socialistas não compartilhavam de tão temerário afã da renovação e isolaram Heidegger. Seus anseios de führer universitário, talvez de um nazista iludido, chocavam com a verdade do que acontecia em todos os lugares, o que não tardou em advertir, tal e como o confiou a seus cadernos pretos. Na verdade o triunfo era do partidarismo e a cultura brutal que imposta pelos vencedores – uma “cultura” de corte “popular” -; triunfou o “ruído” e a “propaganda” (“arte da mentira”), anotou. A Universidade se encontrava tomada por estudantes em uniformes da AS (um dos braços armados do Nacional Socialismo durante a Segunda Guerra Mundial); era necessário medir as palavras naquela instituição transformada em “escola técnica”. Em suma, Heidegger se desiludiu.
Em 28 de abril de 1934 declarou: “Meu cargo está à disposição, já não é possível ter uma responsabilidade. Que viva a mediocridade e o ruído!”. Heidegger se irritou com os nazistas, mesmo que de maneira particular. Logo viu que o grande perigo que espreitava a Universidade e, em consequência, a Alemanha era “essa mediocridade e essa nivelação que domina sobre todas as coisas”. Tornou-se insuportável para ele que “truculentos professores de escolas, técnicos desempregados e pequenos burgueses complexados se erguessem como guardiões do povo”. Em outras anotações posteriores – críticas, como são todas as suas – interrogava-se sobre a valentia de fazer a pergunta tão cara a sua filosofia: “Por que, atualmente no mundo, falta a disposição de saber que não temos a verdade e que devemos questionar novamente?”. Na época em que vivo, anota novamente, as ciências do espírito se veem submetidas a “uma visão política do mundo”, a medicina se torna uma “técnica biologicista”, o direito é “supérfluo” e a teologia “carece de sentido”.
Após o fracasso como reitor, distante da política (“a realpolitik, uma prostituta”), Heidegger continuou com suas aulas e seminários. Em 1936 iniciou suas palestras sobre Nietzsche e começou a interpretar a poesia de Hölderlin. Nos cadernos de pretos de 1938 e 1939 ambos os autores estão onipresentes; o filósofo os via como os portadores de “verdades” que os alemães não entendiam. Incompreendidos e solitários, sentia-se semelhante a seus destinos: Alemanha, “povo de pensadores e poetas”, que não sabe como “povo” apreciar seus pensadores e poetas. Entretanto, eclode a guerra. Heidegger, confinado em sua cabana nos Alpes de Todtnau, concentrou-se em suas especulações sobre o “ser-aí” o Dasein imerso nos entes e no jejum do “Ser”. Em suas anotações jamais vemos um eu pessoal que expressa sentimentos; Heidegger mostra-se frio e dramático, sem um momento de humor, apenas abstração e torção das ideias que saiam de sua pluma.
Algumas entradas registradas em 1941, de eco antissemita, pode ter levantado polêmica na imprensa internacional. Heiddeger, que jamais se pronunciou sobre o Holocausto, rechaçava as teorias raciais taxando-as de “mero biologismo”, mas também escreveu que “... os judeus, dado seu acentuado dom calculador, vivem há muito tempo de acordo com o princípio racial; por isso agora se opõem com tanto afinco a sua aplicação”. Outras reflexões sustentam que o “judaísmo”, “bolchevismo”, “nacional-socialismo” e “americanismo” são estruturas supranacionais que formam parte do poder ilimitado de uma “maquinação” universal - “Machenschaft” -, as quais movem apenas “interesses” causados pela guerra mundial. A guerra é a consumação da “técnica”, seu último ato será “a explosão em pedaços da terra e o desaparecimento da humanidade. Tal resultado não seria uma “desgraça”, escreve o filósofo, “porque o Ser ficaria limpo de suas profundas deformidades causadas pela supremacia dos entes”. Em outra anotação, Heidegger sentencia: “Ao homem espiritual ativo restam hoje apenas duas possibilidades: estar na ponte de um campo minado ou voltar o barco do mais extremo e perguntar sobre a tormenta do Ser”. Ele optou pelo segundo.
Ao fim da guerra, em 1945, Heidegger é inscrito nas milícias populares para a defesa de Friburgo, mas o Reich o contratou antes de que pudesse entrar em combate, sua luta particular se deu posteriormente. Tachado de nazista, os aliados o proibiram de dar aulas. O que mais deu desgosto a comissão que julgou sua adesão ao nacional-socialismo foi a ausência de arrependimento por parte do afamado professor. Mostrou-se distante, mudo. Quando chegou novamente a fama, em vez de dizer algo contundente sobre seu passado ou sobre os crimes nazistas, continuou guardando silêncio. Hannah Arendt desculpou seu silêncio destacando sua falta de caráter e sua covardia. Entretanto, haveria algo realmente substancial por traz de tal calar? Poderia um filósofo tão abstrato dar respostas claras? (“Toda pergunta, um prazer; toda resposta, um desprazer”, poetizou). Será necessário um estudo profundo destes cadernos negros para determinar se as reflexões que contém indicam a luz nas trevas heideggerianas. Para começar, uma sentença luminosa do próprio Heidegger: “O errar é o presente mais escondido da verdade”.
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Lançadas obras inéditas de Martin Heidegger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU