10 Outubro 2016
Sob o título “Artigo 48 | Do Golpe (e da PEC 241/2016) à Desconstrução da Nação”, José Celso Cardoso Jr., economista pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), com mestrado em Teoria Econômica e doutorado em Desenvolvimento (com especialização em Economia Social e do Trabalho), ambos pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP); desde 1996 é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea e Paulo Kliass, doutor em economia pela Université de Paris 10 (Nanterre/França) e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, publicam uma detalhada análise da PEC 241/2016, em artigo publicado por Plataforma Política Social, 08-10-2016.
Eis o artigo.
Histórias de construção e afirmação nacionais nunca foram nem serão lineares. Eivadas de avanços e retrocessos, todas elas estão marcadas por contradições inerentes a cada um dos processos particulares de desenvolvimento.
O caso brasileiro, portanto, não foge à regra. Linhas gerais, tal processo está marcado por fatos e fatores muito emblemáticos de nossa trajetória histórica. Sendo este um país construído sobre imensas heterogeneidades e desigualdades de vários tipos e dimensões, o seu processo civilizatório reflete a luta de classes e as diferentes formas pelas quais os grupos populares vêm lutando por igualdade, reconhecimento e pertencimento.
Do século XIX, pode-se destacar nada menos que a independência política formal em relação a Portugal, a abolição formal da escravatura como base do processo de acumulação capitalista no país, e a proclamação da República como coroamento do processo de independência política e início da disputa por um Estado verdadeiramente nacional, de pretensões universalistas, voltado à promoção do interesse geral e do desenvolvimento para o conjunto da população em toda sua extensão territorial.
Do século XX, deve-se dar destaque aos processos – ainda em curso – de autonomização industrial e tecnológica, de rápida e caótica urbanização, de intensa recomposição populacional no sentido campo-cidades, norte-nordeste ao centro-sul, e não menos importante, ao difícil e tortuoso processo de democratização do Estado, do (acesso amplo ao) mercado e da própria sociedade brasileira.
Como corolário desses 200 anos anteriores de construção nacional, o Brasil adentrou o século XXI de modo muito mais heterogêneo e complexo. No entanto, ao longo da década compreendida, sobretudo entre 2003 e 2013, delinearam-se as grandes tendências de seu processo histórico de desenvolvimento neste século. Grosso modo, a ideia de um desenvolvimento nacional soberano, includente, sustentável e ... democrático.
Portanto, o momento de contestação que se encontra em curso no instante em que este texto é escrito, representa muito mais que um episódio adverso da conjuntura política. Trata-se, a bem da verdade, de um movimento conservador e reacionário (além de ilegal e imoral, posto não haver razões jurídicas nem de outra espécie para tal), proveniente de segmentos atávicos da sociedade brasileira, no sentido de promover não apenas uma ruptura constitucional por si só de gravíssimas implicações político-institucionais a futuro, mas, sobretudo, uma ruptura do processo histórico de construção e afirmação da Nação que, duramente, sobretudo desde a Constituição de 1988, vinha buscando se afirmar no país, assentado nos valores supracitados da soberania, da sustentabilidade ambiental, produtiva e humana, da democracia como valor e método de governo, e da inclusão social e territorial com equidade, como objetivos maiores da sociedade brasileira.
É, portanto, contra essa trajetória histórica e tendências recentes de construção e afirmação nacionais que o golpe – e a PEC 241/2016, dentre outras medidas retrógradas já tomadas e em elaboração ou tramitação legislativa – se insurgem.
Não por outra razão, o processo político-jurídico-midiático vivido no Brasil no biênio 2015 e 2016 vai entrar para a memória do país (certamente não a memória oficial, mas a de milhares de cidadãs e cidadãos atônitos que têm vivido este processo!) como uma das maiores farsas e injustiças da história política das nações em todos os tempos.
No futuro, historiadores e cientistas sociais terão desvendado os mistérios e meandros desse que já é internacionalmente reconhecido como o processo mais fraudulento e antipopular da história política brasileira.
Fraudulento não apenas porque assentado em evidências pífias, fundamentos legais frágeis (senão inexistentes!) e condução processual enviesada, desde a origem, para a obtenção do resultado final desejado pelas lideranças do movimento pró-impeachment. Mas também porque revestido de atos milimetricamente calculados e movimentos intervenientes de parte importante dos poderes constituídos da República, tais como o Ministério Público da União (MPF), a Polícia Federal (PF), o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal de Contas da União (TCU), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, dentre outros. Além disso, foi a todo tempo instigado e manipulado por setores golpistas da grande mídia escrita, radiofônica e televisiva,[3] além de empresários direta e indiretamente ligados ao rentismo financeiro e à superexploração do trabalho, e por novos segmentos da sociedade criados e alimentados de forma artificial por meio das redes sociais, tais como o MBL (Movimento Brasil Livre), Revoltados On-Line, Vem pra Rua etc., contando inclusive com financiamento internacional para suas ações.[4]
Além de fraudulento, o golpe de 2016 no Brasil tem também um caráter destacadamente antipopular. Antipopular não só porque orquestrado e implementado por parte das lideranças partidárias, econômicas, sociais e sindicais das mais conservadoras e reacionárias, desde sempre presentes nas estruturas do Estado e do Poder no país, valendo-se há muito de seu peso e influência para enriquecimento pessoal ilícito e a construção e manutenção histórica de privilégios e benefícios particulares, mui distantes dos interesses verdadeiramente nacionais. Mas ainda porque declaradamente intencionado a redirecionar a ação do Estado e das políticas públicas, em construção desde a Constituição Federal (CF) de 1988, numa direção que foi eleitoralmente rejeitada pela maioria da população brasileira por quatro vezes seguidas desde 2002. Com isso, vem promovendo e propagandeando, deliberadamente, um desmonte das capacidades estatais e dos instrumentos governamentais necessários ao desenvolvimento nacional, bem como uma perseguição e combate a direitos sociais da cidadania contemporânea.
Este golpe, portanto, não finda apenas o ciclo recente de redemocratização posto em curso na Nova República (1985 a 2015). Ele interrompe, oxalá apenas temporariamente, o ciclo longo de construção do Brasil como Nação livre, soberana e democrática.
Embora a aliança golpista entre oligopólios privados da mídia e setores conservadores do governo e do empresariado venham tentando blindar as reais motivações por trás de medidas recentes como as da PEC 241 e outras, já começam a pipocar dúvidas e conflitos no interior do atual bloco político no poder. E a aprovar-se na íntegra ou em essência, muito em breve a maior parte da população enganada e instigada a apoiar o golpe e os candidatos conservadores no pleito eleitoral das prefeituras e vereanças de 2016, começarão a sentir os efeitos deletérios de tais medidas, dentre as quais deverão vir com destaque o desemprego de longa duração, a queda dos rendimentos reais, o reforço às discriminações de gênero, raça e idade no mercado de trabalho, dentre outras.
A PEC 241/2016 propõe a instituição de um Novo (porém não necessariamente melhor!) Regime Fiscal, que vigorará por vinte exercícios financeiros seguidos, fixando-se, em cada ano, limite individualizado para a despesa primária total do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, inclusive do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União.
Para o exercício de 2017, o limite será calculado pela aplicação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA-IBGE) à despesa primária realizada no exercício de 2016. Para os exercícios posteriores, o valor do limite referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do IPCA-IBGE. No caso de descumprimento do limite estabelecido, o Poder Executivo deverá ajustar-se já no exercício subsequente, fazendo com que: i) a despesa nominal com subsídios e subvenções econômicas não possa superar aquela realizada no exercício anterior; e ii) vedando a concessão ou a ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita.
A motivação fundamental da PEC está expressa no item 8 da Exposição de Motivos que acompanha o texto da lei (EMI nº 00083/2016 MF MPDG). Embora careça de comprovação teórica e empírica, explicita-se a ordem causal irreal de suas suposições da seguinte maneira:
“Com vistas a aprimorar as instituições fiscais brasileiras, propomos a criação de um limite para o crescimento das despesas primária total do governo central. Dentre outros benefícios, a implementação dessa medida: aumentará a previsibilidade da política macroeconômica e fortalecerá a confiança dos agentes; eliminará a tendência de crescimento real do gasto público, sem impedir que se altere a sua composição; e reduzirá o risco-país e, assim, abrirá espaço para redução estrutural das taxas de juros. Numa perspectiva social, a implementação dessa medida alavancará a capacidade da economia de gerar empregos e renda, bem como estimulará a aplicação mais eficiente dos recursos públicos. Contribuirá, portanto, para melhorar da qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs brasileiro. (grifos nossos).”[5]
Segundo o projeto golpista, a PEC resolverá – a um só golpe – o problema fiscal, que consideram estrutural e insolúvel nas condições vigentes, e com ele o que consideram problemas crônicos do Estado brasileiro, pois o chamam de grande, ineficiente e contrário aos interesses do rei-mercado! Em pequeno artigo anterior sobre o tema (Cardoso Jr., J. C.; Kliass, P. A PEC 241/2016 e as Três Teses Liberais Equivocadas sobre o Estado Brasileiro), os autores buscaram desconstruir tais argumentos.
Com relação ao mito do tamanho do Estado, cabe perguntar: grande em relação a quem? Grande em relação a quê? A resposta depende do tamanho da ambição, da ousadia, do escopo, do perfil do projeto de desenvolvimento nacional almejado. Significa que o problema não é o tamanho (em abstrato!) do Estado, mas sim qual o arranjo institucional necessário (Estado/Mercado/Sociedade) para levar a cabo o projeto de desenvolvimento pretendido. Em perspectiva desenvolvimentista: para um projeto includente, sustentável, soberano, democrático, o Estado brasileiro decididamente não é grande! Tanto se considerada a carga tributária brasileira, como o percentual dos trabalhadores empregados no serviço público, ambos em perspectiva internacional, os dados mostram claramente que o Estado brasileiro está aquém de suas necessidades mínimas de recursos e de pessoas.
Com relação ao mito da eficiência do Estado, para usar apenas um único parâmetro de avaliação, temos hoje no Brasil um Estado cujo contingente de servidores civis ativos é praticamente o mesmo de quando foi promulgada a CF-1988. No entanto, desde então, esse mesmo Estado ampliou em muito as suas competências e áreas institucionais de atuação, bem como o acesso da população e a cobertura social de todas as políticas públicas de âmbito federal. Significa que, em termos de eficiência, faz-se hoje muito mais que no passado, seja por unidade de pessoal, de TIC’s ou mesmo de orçamento per capita. Disso não se depreende que a agenda da eficiência não seja relevante! Pelo contrário, todos reconhecem ser necessário novos e permanentes ganhos de eficiência da máquina pública. Porém, de mais eficiência não se obtém, automaticamente, mais eficácia ou efetividade da ação governamental. E é exatamente neste pequeno detalhe que reside toda a ignorância, a insensatez, a arrogância e a má-fé do projeto golpista.
Por fim, com relação ao mito do Estado contra o mercado, a índole liberal (mais que social!) do Estado brasileiro faz com que ele seja, historicamente, mais perfilado a atender os interesses do Capital e do processo de acumulação capitalista que os interesses diretos e imediatos de sua população, a grande maioria, aliás, ainda hoje distante ou alijada da cidadania efetiva e do desenvolvimento integral. Por outra: o capitalismo brasileiro (como qualquer outro, aliás!) é altamente dependente da capacidade do Estado em mobilizar e canalizar seus recursos e instrumentos de políticas públicas em favor do processo de acumulação de capital, em bases privadas.
Não obstante, como demonstrado pela – curta, mas exitosa – experiência recente de desenvolvimento no Brasil (2003 a 2013), houve combinação virtuosa de decisões e políticas públicas que tornaram possível realizar, em simultâneo, aumento de renda per capita e redução das desigualdades de rendimentos no interior da renda do trabalho, cf. gráfico abaixo.
1: Fonte: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Elaboração dos autores.
Ocorre que tal combinação de fenômenos, tida como situação desejável, não é obra do acaso ou da atuação de livres forças do mercado. Requer, ao contrário, certa combinação virtuosa e longeva de decisões e políticas públicas, orientadas a objetivos complementares e compatíveis, propícias ao crescimento econômico, ao combate à pobreza e à redução das desigualdades.
O projeto golpista de desenvolvimento, se é que se pode chamar de desenvolvimento o ideário liberal-conservador ora em curso no Brasil, torna claro que a discussão não é tanto saber se a Constituição de 1988 cabe ou não cabe no orçamento nacional. Muito mais importante a constatar é que a própria sociedade brasileira, em sua heterogeneidade, diversidade, desigualdade, pluralidade e necessidades, enfim, é esta que definitivamente não cabe no projeto golpista.
Em outras palavras, como reduzir a plêiade de manifestações, interesses e necessidades políticas, econômicas, sociais, culturais, raciais, sexuais, etárias, artísticas, religiosas, intelectuais, internacionais etc. de uma nação como a brasileira a um ideário ideológico elitista e excludente? Simplesmente impossível!
Então, a questão não é ajustar e restringir artificialmente toda a grandeza e pujança da sociedade brasileira a leis fiscais e parâmetros orçamentários como se leis e parâmetros fossem imposições da natureza. A questão é justamente buscar os arranjos políticos, sociais, institucionais capazes de melhor compatibilizar – ao longo do tempo – capacidades estatais e societais, instrumentos governamentais e de mercado, no sentido da ampliação democrática da nação – ao invés da sua castração. Para tanto, torna-se imprescindível redefinir o papel do mercado e da acumulação capitalista em suas relações com o Estado e o poder público instituído.
Neste sentido, é necessária uma reflexão que vincule o tema da Administração Pública a um projeto de desenvolvimento e a outra concepção de Estado. Isso é especialmente importante para que a perspectiva de desempenho governamental retorne na direção de certa reativação do Estado para a construção de um projeto de desenvolvimento soberano, inclusivo e democrático. Neste caso, remontar o sistema político nacional e aperfeiçoar as estruturas de planejamento e gestão do Estado são tarefas essenciais para mobilizar capacidades estatais e instrumentos governamentais em prol do projeto político e social acima sugerido, que atenda aos interesses da maioria da população. Este é o cerne de uma reforma contemporânea do Estado e da Administração Pública no Brasil e por onde ela deveria começar.
Sem a pretensão de esgotar ou detalhar em demasia o assunto, é possível resumir – pelo quadro abaixo – alguns dos princípios gerais a orientar uma reforma do Estado brasileiro no século XXI, de natureza republicana, democrática e desenvolvimentista.
2: Fonte: Cardoso Jr. e Bercovici, 2013. Elaboração dos autores.
Há evidentemente uma agenda de reformas concretas inadiáveis, que aqui apenas se enunciam de modo não exaustivo, já que a concertação política necessária à sua viabilidade institucional e implementação no âmbito do Estado brasileiro, depende obviamente da restauração democrática de fato e de direito.
Notas e Referências:
[1] José Celso Cardoso Jr. é doutor em Economia pela Unicamp e Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea, carreira do governo federal.
[2] Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
[3] De autoria do jornalista Paulo Henrique Amorim, nunca antes o termo PIG (Partido da Imprensa Golpista) fez tanto sentido.
[4] Para mais informações ver a reportagem investigativa da Agência Pública: “Rede de think tanks conservadores dos EUA financia jovens latino-americanos para combater governos de esquerda da Venezuela ao Brasil e defender velhas bandeiras com uma nova linguagem”: http://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-direita. Esses grupos se aproveitaram das manifestações de junho de 2013, que se iniciaram com reivindicações por direitos (agenda do transporte coletivo em São Paulo até educação de qualidade), e acabaram criando um ambiente propício para cooptação desta energia política pela direita política acima mencionada.
[5] O máximo do escárnio está, contudo, no item 25 da Exposição de Motivos: “Trata-se, também, de medida democrática. Não partirá do Poder Executivo a determinação de quais gastos e programas deverão ser contidos no âmbito da elaboração orçamentária. O Executivo está propondo o limite total para cada Poder ou órgão autônomo, cabendo ao Congresso discutir esse limite. Uma vez aprovada a nova regra, caberá à sociedade, por meio de seus representantes no parlamento, alocar os recursos entre os diversos programas públicos, respeitado o teto de gastos. Vale lembrar que o descontrole fiscal a que chegamos não é problema de um único Poder, Ministério ou partido político. É um problema do país! E todos o país terá que colaborar para solucioná-lo.” (grifos nossos)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A PEC 241/2016 e o retrocesso civilizatório no Brasil contemporâneo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU