30 Agosto 2016
Quarenta anos após sua morte, o Brasil abdicou da vitalidade, da confiança e da gargalhada que JK levou ao poder.
Outubro de 1956, Planalto Central: ele era capaz de enxergar maravilhas no vazio
O artigo é de Nirlando Beirão, jornalista, publicado por CartaCapital, 26-08-2016.
Eis o artigo.
Juscelino Kubitschek de Oliveira foi presidente de um Brasil que ele imaginou ser possível. Um Brasil que não existe mais, ou que talvez nunca tenha existido, a não ser na fantasia transbordante dele, Juscelino.
Era uma fantasia na qual, porém, Juscelino verdadeiramente acreditou e com a qual chegou a intoxicar de esperança e de otimismo toda a nação brasileira, até mesmo adversários impenitentes subitamente subjugados por seu carisma fatal e seu charme desbragado.
Ao longo do período republicano, um verdadeiro “regime de exceção”: democracia com uma pitada de sonho, triunfando contra os golpistas até hoje de plantão.
Ao morrer, 40 anos atrás, a 22 de agosto de 1976, num acidente de automóvel enevoado por suspeitas e assombrado por perguntas jamais respondidas, foi-se com ele a ilusão de um Brasil cordial, tolerante, vibrante, que acreditava em si mesmo, que se deixava impulsar pela mola propulsora da autoestima, e que, no altar de uma utopia tropical e calorosa, convertia ódio em concórdia; lamúria, em propósito; queixa, em entusiasmo. Aquele a quem a mídia mal-intencionada – alimentada por aquela UDN moralista só de fachada – atribuíra “a sétima maior fortuna do mundo”, em irresponsabilidade que se tornaria uma praxe entre os falastrões do comentário político, operosos fabricantes de tríplex e pedalinhos – faleceu a bordo de um velho Opala, na Via Dutra, a caminho do Rio.
Algumas sinistras coincidências andaram acontecendo naquele período que se seguiu ao golpe no Uruguai (em 1973), no Chile (no mesmo ano) e na Argentina (em 1976) – coincidências que iriam posteriormente jogar luz na azeitada conspiração apelidada de Operação Condor. Tratava-se de, com a expertise dos arapongas americanos da CIA, tirar de circulação os líderes de oposição que incomodavam os ditadores do Cone Sul.
Despia os sapatos por baixo das mesas de banquete, dormia entre audiências, dava suas escapadelas (Foto: Odyr Amorim/AJB) Atentados sucederam-se. Rastreado no Uruguai, refugiado na Argentina, João Goulart morreu quatro meses depois de JK. Em maio de 1977, seria a vez de Carlos Lacerda, diagnosticado um “infarto do miocárdio”– Lacerda que, de pivô do golpe, se convertera em articulador de uma “frente ampla” de oposição a ele, tentava seduzir os dois, Jango e Juscelino.
Até mesmo uma estilista de moda inconveniente, genuína mãe-coragem, entrou na cota dos condores vingativos. Inconformada com a barbárie sofrida por seu filho, Stuart, torturado até a morte num quartel da Aeronáutica, Zuzu Angel fez um escarcéu junto às autoridades dos Estados Unidos (Stuart tinha dupla cidadania) e acabou vítima de um acidente encomendado na saída do túnel Lagoa-Barra, em abril de 1976.
No intervalo de tempo em que militou na política – de 1933, quando o médico relutante virou chefe de gabinete do interventor Benedito Valadares, em Minas, até 1964, cassados que foram seus direitos de cidadão pela ditadura no momento em que ele, a bordo da campanha JK-65, seduzia o País com um replay de euforia – Juscelino e o Brasil se trataram com a intimidade carinhosa do primeiro nome, do apelido – Nonô –, do acrônimo – JK – e da fama de “pé de valsa”, de festeiro, de brincalhão, de fidalgo da simpatia e de arauto da utopia. O presidente bossa nova, com jeitão de ídolo pop, irradiava confiança. “Juscelino trouxe a gargalhada para a Presidência”, observou o cronista Nelson Rodrigues – um jubiloso contraponto aos patéticos dignitários de um país condensado à caricatura, até hoje investidos da “rigidez de quem ouve o Hino Nacional, cada um se comportando como se fosse a estátua de si mesmo”.
Juscelino, ao contrário, era seriíssimo na decisão de não se levar nem um pouco a sério. Tirava os sapatos debaixo das mesas dos banquetes bem-postos e cochilava entre as audiências mais enfatiotadas.
Escondia-se para encontros clandestinos com a amante duradoura. O telegrafista de Diamantina, filho da professorinha Júlia, embalado no berço da modéstia e da dificuldade, nunca abandonou a índole do futuro mandachuva dos mais altos poderes.
No abismo traumático pós-54, esgueirando-se do rastro de sangue deixado pelo suicídio de Getúlio Vargas e esquivando-se da sanha histérica dos golpistas dos quartéis e da mídia, a figura de JK impôs-se naquilo que ele melhor sabia fazer. “Um articulador de consensos”, iria comentar o ex-sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
Mas JK só conseguiu ser, eleito presidente em 1955, a ponte por cima dos ódios dos derrotados porque nunca teve medo de afrontar quem vivia de semeá-los, ainda que o fizesse com a pelica da astúcia e a delicadeza da inteligência.
“Deus me poupou do sentimento do medo”, gostava de dizer. Enfrentou uma tentativa de deposição antes mesmo de assumir e duas sedições militares, em Aragarças (GO) e Jacareacanga (PA), quando no exercício do mandato. Anistiou os amotinados.
Passou a faixa da Presidência, noblesse oblige, para um descabelado que venceu a eleição apostrofando, com calúnias medonhas, o então presidente. Mais que um ato de elegância, a decisão de dar posse a Jânio Quadros foi a premonição de uma ironia.
Alguns meses depois, Jânio exagerou do Porto, tropeçou em suas mesóclises megalomaníacas e renunciou, tramando uma volta ao poder nos braços da ralé, felizmente frustrada.
O grande erro político de JK lhe custaria o futuro e sairia caro para o País. Convencido de que o combalido governo de João Goulart não resistiria, aceitou entabular conversas com o embaixador americano, Lincoln Gordon, envolvido até o pescoço no golpe. Acreditava que os Estados Unidos poderiam persuadir os militares a, vencida a fase inicial de expurgo, entregar o poder de volta aos civis.
Enevoado por uma ilusão que lhe era conveniente, de olho num retorno à Presidência em 1965, JK curvou-se ao fato consumado da queda de Jango e da eleição indireta no Congresso. Dez dias depois do golpe, estava presente numa reunião dos líderes do seu partido, o malemolente PSD, o qual bateu martelo a favor do general Humberto Castello Branco – a quem JK promovera quando no poder. Castello prometeu ao PSD que respeitaria o calendário eleitoral. Prometeu. Palavra de militar.
Dos 361 votos a favor, entre senadores e deputados, grande parte era do PSD. Juscelino, senador por Goiás, votou em Castello. Tancredo Neves, deputado por Minas, recusou-se a votar. O tigre estava solto – e quem é que haveria de convencê-lo a voltar para a jaula?
Dois meses depois, em junho, Castello Branco assinava a cassação de Juscelino e a suspensão por dez anos de seus direitos políticos. Humilhado, Juscelino partiu para o exílio.
Gentleman em meio às tempestades apopléticas de seus detratores, Juscelino cultivava uma distinção que começava na aparência, mas que acabava por definir toda uma atitude. Acossado pelo ódio e pela mentira, tornou lendária sua tolerância.
Ao final de seu governo, concedeu entrevista ao repórter Carlos Castello Branco, da revista O Cruzeiro, e comentou a comportamento da oposição: “Acredito no jogo democrático. A oposição constituiu-se em vigilante fiscalizadora dos meus atos. Agiu patrioticamente”.
No Parlatório do Palácio do Planalto, 21 de abril de 1960
“Juscelino tinha uma brasilidade que tangenciava a caricatura”, lembra o embaixador Marcos Azambuja, que foi seu chefe de gabinete em Brasília. “Eu nem diria otimista – ele simplesmente achava que tudo era possível, que o Brasil era irresistivelmente vitorioso.
Contagiou o País e, depois daquele intermezzo Jânio, pensava em voltar ao governo para nos brindar com um segundo ciclo de felicidade. Para JK, a função do governante é promover a felicidade do povo.”
“Transcendeu o bom senso, incluindo imprudências”, escreveu Claudio Bojunga, em O Artista do Impossível (Editora Objetiva, 2001). A maior de todas as imprudências, com certeza, nem foi erigir, no intervalo improvável de três anos e sete meses, uma Capital Federal em meio ao Cerrado, sob o bombardeio midiático da oposição e da elite melindrada da Velha Cap – uma cidade inteira, com suntuosidade de palácios, monumentos e superquadras, não uma simples Copa do Mundo, uma mera Olimpíada. Outros tempos, aqueles. Não, a maior imprudência de JK foi acreditar no Brasil.
Se até a administração pública era capaz de se sacudir por uma poética do sonho, não admira que as artes, por coincidência ou não, tenham se conectado à efervescência do ambiente. Os anos JK testemunham – vai listando Claudio Bojunga – a ficção mágica de Guimarães Rosa, os versos geométricos de João Cabral de Melo Neto, as epifanias de Clarice Lispector, os acordes de João Gilberto, os joelhos de Nara Leão, as curvas do Karmann Ghia.
Sobem ao proscênio Tom e Vinicius, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, Lygia Clark e Hélio Oiticica. Os desconcertantes Pelé e Garrincha nos vingam, na Suécia, do desastre do Maracanazo – e a Copa é finalmente nossa.
E já que o governante é obcecado por obras, a arquitetura do impossível – na definição que cabe ao próprio JK – vai se fincar, firme, concreta, com a tabelinha profícua entre Lucio Costa, que riscou o Plano Piloto, e Oscar Niemeyer, que o extrapolou.
Brasília nasceu à feição de JK – sob o signo da urgência. A lei que criou a nova Capital foi sancionada a 19 de setembro de 1956. A oposição protelou o quanto pôde. Depois resignou-se, numa aposta sarcástica: JK e seu governo iam acabar se atolando irremediavelmente naquele lodaçal sem sentido.
Miragem de um “janota delirante”, bradava o agourento Carlos Lacerda, frenética voz da UDN. Pelo menos reconhecia o feroz oponente, na debochada alusão ao “janota”, o apuro sartorial no qual o vaidoso JK assumidamente se esmerava. JK era, sim, um detalhista da finesse, chegava ao requinte de recusar, nos bolsos internos do paletó feito su misura pelo Aquino, seu alfaiate carioca, qualquer coisa que desfigurasse, o mínimo que fosse, sua silhueta empertigada.
Antes de Brasília, Juscelino, prefeito de Belo Horizonte, já experimentara com o jovem Oscar Niemeyer, na criação do complexo da Pampulha, a dobradinha que iria se repetir no Planalto Central. Não se conheciam.
Mas eram donos, os dois, daquele temperamento típico que faz as pessoas virarem melhores amigos em questão de horas. JK ia fazer 38 anos quando assumiu a prefeitura de uma cidade de 211 mil habitantes, que, em 1940, tinha de vida pouco mais do que ele: 43. Belo Horizonte seria o trampolim para a vocação que ele já se resignara a acatar. Constituinte em 1945, governador de Minas em 1950.
O Nonô da dona Júlia, agora aninhado no PSD, o partido das raposas manhosas, tem na alma a comichão do poder e se aventura por um caminho que os adversários, desconfiados de sua amizade com Getúlio Vargas, de seu vice João Goulart e do suposto apoio dos comunistas, querem lhe barrar – ele que, fiel ao oligárquico PSD, votara em 1948, na Câmara Federal, pela cassação do registro do Partido Comunista.
Insiste, disputa e vence a eleição presidencial de 3 de outubro de 1955. Eleição equilibrada, JK tem 36% dos votos. A UDN, ninho dos que tramaram contra Vargas, sucumbe com um general, Juarez Távora. Tenta, na voz estridente do deputado Carlos Lacerda, impedir a posse, alegando que faltou a JK maioria absoluta. O golpe falha pela ação de outro general, o legalista Henrique Teixeira Lott. Juscelino assume em 31 de janeiro de 1956 e dá curso àquela “conjuração de loucuras”, como definiu o amigo e também mineiro Otto Lara Resende.
Brasília, chamuscada em polêmica, seria seu cartão de visita, mas também seu calcanhar de aquiles. “Ele inventou a inflação no Brasil”, entoavam, em coro, os
derrotados de 1955. “Obras superfaturadas, corrupção sem freio”, insistiam os desafetos de sempre.
“Certamente houve algum tipo de corrupção”, admite Ronaldo Costa Couto (autor de Brasília Kubitschek de Oliveira, Editora Record, 2001). “Mas o que vale é que a construção de Brasília foi uma epopeia. Obra de sonho, improvisação, sacrifício, audácia e grandeza.”
Dormia quatro horas por dia e o desafio o consumiu até aquele 21 de abril de 1960 que o colunista social Jacinto de Thormes, na revista Manchete, considerou “o espetáculo mais chique” de sua vida. “Esse dinâmico encontro da rua sem calçada com o sapato de Dior, uma cinematográfica confraternização das cartolas de Bond Street com o andaime funcional.” A JK aquilo custara 5 mil horas de voo e viagens por terra que totalizaram 3 milhões de quilômetros, o suficiente para dar 75 voltas em torno da Terra.
Todo esse vigor teve de se recolher, depois de 1964, à sombra da ditadura nefanda. Uma fazenda em Goiás tratou de distraí-lo nos últimos anos de vida. Mas o Brasil não esqueceu aquele que os golpistas tanto queriam fazer olvidar.
Quatro décadas atrás, a comoção que a trágica morte de Juscelino provocou, numa unanimidade de choro e tristeza, constrangeu os usurpadores do poder e a JK não foram dispensadas as honras oficiais que o presidente e estadista que ele fora recomendavam. O governo Geisel preferiu ignorar sua morte. O povo, não.
Na Brasília que o visionário erigiu e que o acolheu para a eternidade, em solo sagrado sintomaticamente chamado de Campo da Esperança, uma multidão improvisou o féretro, emocionada, naquele 23 de agosto.
Ao pária proscrito pela teimosa ditadura a nação enlutada retribuía, ali, com fé profana e desassombro patriótico, o amor cândido e sincero que Juscelino devotara à sua gente. À beira do túmulo de JK, o Brasil vivia.
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JK: o futuro adiado. Juscelino faz falta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU