A reflexão é de Mariana Aparecida Venâncio. Ela é doutoranda em Estudos Literários (UFJF) e em Teologia Sistemática (PUC-RS). Assessora da Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB.
1ª Leitura – Is 52,7-10
Salmo – 97,1-6
2ª Leitura – Heb 1,1-6
Evangelho – Jo 1,1-18
Hoje refletimos juntos sobre as leituras da missa do dia do Natal do Senhor. A beleza dessa celebração é coroada pela proclamação do Prólogo Joanino, Jo 1,1-18. Iluminados pela proposição do início do quarto Evangelho, considero que podemos, nesse Natal, percorrer um caminho de reflexão e interiorização da Palavra a partir de três passos: 1) a salvação; 2) o anúncio; 3) a contemplação.
“A Palavra se fez carne e habitou entre nós”: nisto consiste a salvação que Deus nos concede, em Jesus, seu Filho cuja Encarnação celebramos. João não narra a cena do presépio, mas recorda a encarnação do logos, uma palavra grega que, segundo os comentadores Juan Mateos e Juan Barreto, “significa ao mesmo tempo palavra e projeto: é palavra que tem conteúdo, o projeto divino, e que o executa. A Palavra é, portanto, o projeto criador enquanto formulado e, consequentemente, executado”. Em Jesus, portanto, está a plenitude do projeto criador de Deus. Por isso, o princípio do Gênesis ficou para trás e João pode narrar um novo princípio, aquele que acontece em Jesus. Mas esse projeto não é apenas formulado ou proposto, mas já realizado. Por isso, ao celebrar o Natal, celebramos também a integralidade da vida, do ensinamento, do testemunho de Jesus, que são já a realização do projeto do Pai, plenamente concluído no mistério Pascal.
O logos, projeto e realização da salvação do Pai, arma sua tenda entre nós: não faz uma morada fixa, mas se faz peregrino com os peregrinos, estrangeiro com os estrangeiros, experimenta o deserto com aqueles que o habitam, a privação com aqueles que são pobres; não porque lhe falte a plenitude da vida, como faltou à nossa humanidade, mas para que fosse possível comunicar a nós a plenitude que ele trazia. E nisso consiste a salvação em Jesus: o Pai nos salva ao conduzir-nos ao conhecimento dele e isso o faz por meio de Jesus. Não um conhecimento exclusivamente intelectual (como muitos no tempo de Jesus interpretaram, e como muitos hoje continuam a interpretar), mas um conhecimento de companhia, de relacionamento, de escuta, de comunhão, de encontro. No v.17 do Prólogo Joanino: “Por meio de Moisés foi dada a Lei, mas a graça e a verdade nos chegaram através de Jesus Cristo”. A proclamação natalina da salvação de Deus que se encarna é convite ao encontro: somente no encontro autêntico com Jesus, na experiência da busca constante de seu caminho, no discernimento das direções contemporâneas que nos conduzem ao presépio, é que seremos capazes de experimentar da graça e da verdade que sua encarnação comunica à nossa humanidade.
Uma vez feito esse encontro – um encontro que transforma a vida e que escancara as trevas de um caminho solitário que recusa a Deus – não há outra atitude possível a não ser o anúncio desse encontro, que convida os irmãos à mesma experiência.
As leituras desse Natal e a figura do presépio que recordamos destacam, também, o anúncio de Deus que é conosco. Todo o mundo criado proclama sua presença – uma estrela indica seu caminho; os anjos cantam sua presença nos céus; mas mais importante que todas essas manifestações extraordinárias é a generosidade do testemunho daqueles que já contemplaram a salvação: Isaías proclama a beleza da profecia que anuncia a salvação a um mundo solitário e estéril; o quarto evangelho recorda a figura de João Batista; nós podemos recordar tantos que nos anunciaram a fé e podemos também ouvir o convite da Palavra de Deus para que também sejamos tais anunciadores.
Tendo feito o caminho até o presépio, é importante que sejamos também capazes de fazer o mesmo que João: tomamos consciência de que não somos a luz deste mundo – eis uma atitude profética, em um mundo marcado pelo autorreferencialidade e pelo individualismo, em que somos, a todo o tempo, estimulados a compreender a nós mesmos como o centro do mundo à nossa volta. Não somos a luz, mas nós damos testemunho dessa luz, que ilumina as trevas de nossa solidão e de nossa confusão e nos concede discernir os caminhos que conduzirão à salvação.
É sob a luz que no Natal que irrompe em meio às trevas de uma humanidade distante de Deus que nos tornamos capazes da contemplação da salvação do nosso Deus.
O Salmo 97 canta a certeza de que mesmo os confins da Terra são capazes de perceber a salvação de Deus quando ela se manifesta. Enquanto o salmo enfatiza a grandeza da manifestação da salvação ao demonstrar que ela alcança a imensidão do mundo criado, poderíamos também compreender que a grandeza da salvação se mostra ainda mais ao alcançar os lugares e as pessoas menos prováveis. Assim, a contemplação da salvação não se condiciona mais proximidade histórica, temporal ou geográfica ao presépio. Pelo contrário, ela se torna tão mais possível quanto mais aberto estiver o coração a buscar o caminho do presépio. Assim, não o contemplaram aqueles em cuja porta esteve Maria, quase dando à luz Jesus, mas o contemplaram os pastores na noite escura. Não o contemplou Herodes, há poucas horas daquela transformadora cena, mas o contemplaram os Magos do Oriente que vieram de longe orientados por uma estrela, uma simples estrela diferente. Não o contemplam aqueles que hoje o buscam em livros, na frieza das normas, em um simulado anúncio que se apoia em vestes ou em um culto de aparências. Mas contempla a salvação de Deus aquele que, encantado pela cena do presépio ou pelo Prólogo de João, desejou sinceramente ouvir e guardar o restante do Evangelho, compreendendo que o mistério da encarnação não ficou naquele noite que neste dia celebramos, mas se fez em cada passo de Jesus – passos de encontro, de misericórdia, de bondade, de justiça e de acolhimento.
Que a celebração deste Natal nos motive ao esforço da contemplação, porque ela não é uma atitude passiva, mas que depende de grande disposição, de abertura do coração e, sobretudo, de conformação de vida. Pensemos naqueles que primeiro encontraram o caminho do presépio, o caminho de Jesus, e em suas qualidades: o e o abandono dos pastores na noite escura; a coragem e a liberdade dos Magos que vieram do Oriente; a fidelidade profética e a humildade de João Batista; o encantamento e o livre seguimento dos primeiros discípulos que, em João, perguntaram: Mestre, onde moras? Mais que um caminho geográfico, é a abertura a essas disposições que hoje, em cada encontro, em cada circunstância, em cada acontecimento, tornará possível que contemplemos o mistério do Senhor que vem.
Que a escuta da Palavra de Deus faça crescer em nós essas disposições. Um feliz e abençoado Natal para todas nós, para aqueles que trazemos em nosso coração e para aqueles que estão sozinhos, desamparados pelo bem querer de alguém, mas alcançados pela bondade do Senhor que, enfim, é Deus Conosco.