01 Junho 2006
Um forte sentimento de religiosidade e o fascínio pela morte e pela violência podem ser encontrados nas letras de rap, onde o cotidiano das periferias e favelas dos grandes centros é apresentado como um estado permanente de combate. O assunto foi abordado pela professora da Universidade Estadual de São Paulo, Eda Góes, durante o 1° Simpósio Dimensões do Urbano, no trabalho intitulado Rap, jovens marginais e elites enclausuradas: elementos para o debate acerca da cidade fragmentada.
No evento, que ocorreu de 15 a 18 de maio de 2006, foram apresentados vários trabalhos inseridos nas quatro áreas abordadas no simpósio: Dimensão Social: processos de remodelação urbana e resistência popular; Dimensão Cultural: identidade, memória e patrimônio urbano; Dimensão Física: processos de degradação e reocupação do ambiente urbano, e Dimensão Sensorial: sensibilidades, percepções e usos da cidade. O simpósio foi uma promoção do grupo de pesquisa Cidade: Espaço e Cultura, da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), que contou com a apresentação de mais de 60 trabalhos, reunindo pesquisadores de todo o Brasil.
IHU On-Line conversou por telefone na manhã de ontem com a professora Eda Góes sobre o tema de sua pesquisa. Graduada, mestre e doutora em História, Eda é professora na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Confira:
IHU On-Line - Que aspectos são mais presentes nas letras de rap que trazem o cotidiano das favelas e das periferias? Em que sentido eles nos auxiliam na compreensão da realidade?
Eda Góes - A principal característica seria essa representação da realidade cotidiana como um estado belicoso, de guerra. O rap é uma forma de representar, através da linguagem musical, justamente o que os compositores expressam em relação a sua realidade. E nós temos que encontrar mecanismos para compreender esse código que eles usam. É uma forma de se expressar e, ao mesmo tempo, ganhar visibilidade, já que o rap não é ouvido exclusivamente na periferia.
IHU On-Line - Como aparece no rap a questão da religiosidade, da morte e da violência?
Eda Góes - Aparece em uma combinação absolutamente contraditória, que é outra característica muito freqüente nessas letras. As referências a Deus e à religião de modo geral, aparecem ao lado de uma familiaridade muito preocupante com a morte, o que acaba significando também uma desvalorização da vida. A religiosidade não implica em uma maior valorização da vida. Ela é traduzida de outra maneira.
IHU On-Line - Qual o cenário descrito pelos compositores de rap?
Eda Góes - O cenário é referente aos territórios em que eles convivem. Isso se expressa em uma presença muito freqüente de referências à periferia, à favela. Aparecem muitas vezes palavras como viela, gueto, morro, cortiço e até Cohab, que é Conjunto Habitacional. Isso está muito presente e sempre associando esses espaços como espaços de guerra, de confronto.
IHU On-Line - Como se caracteriza a cidade fragmentada a que a senhora se refere?
Eda Góes - É uma cidade em que cada um busca defender seus interesses de forma separada e oposta aos outros. Nesse trabalho, focalizei esses jovens da periferia de São Paulo, que eu acredito que agem dessa maneira. Mas eu procuro mostrar que no outro extremo, sobretudo as elites, em particular as paulistanas, também estão identificando o espaço da cidade como um espaço de confronto e estão buscando alternativas que também apontam nessa direção da solução individual, que perde de vista a cidade como um conjunto, uma unidade, um espaço de convivência. E aí o exemplo mais radical é a opção pela moradia nos condomínios fechados, que se separa do tecido das cidades.
IHU On-Line - Qual o lugar da "elite enclausurada" que a senhora cita na sociedade violenta que temos hoje?
Eda Góes - Em geral, estou interpretando o comportando das elites como uma forma de retirada dos espaços públicos que são os mais característicos da cidade. Em termos de residência, aparece a opção pelos condomínios fechados, em termos de espaços de lazer e consumo optam por shoppings centers, que não deixam de ser espaços fechados. Outros espaços de lazer acabam sendo clubes exclusivos. É isso que eu procuro enfatizar, que eles também estão vendo a cidade como um espaço perigoso e, ao invés de explorar os mecanismos para reverter essa situação, que a elite tem muito mais do que a população pobre, a opção que ela está adotando é de se retirar desse espaço. É isso que eu acho que aponta na direção de uma fragmentação.
IHU On-Line - A sua dissertação de mestrado tratou das rebeliões nos presídios paulistas no período de 1982 a 1986. Quais as principais mudanças de lá para cá?
Eda Góes - A mudança é enorme. Nesse período, sobretudo nos anos 1980, ainda tínhamos os resultados do fim da ditadura militar, no sentido da desestruturação dos mecanismos de repressão, que eram próprios daquele período. Então, falava-se muito na humanização dos presídios, e isso dava uma especificidade naquele contexto que eu estava estudando. Hoje, a grande questão que se introduziu e que lá era quase ausente, é a presença do crime organizado dentro e fora dos presídios, através, sobretudo, da atuação do PCC. Acredito que isso deu um caráter muito mais complexo para a discussão e, sobretudo, inviabilizou as pesquisas, porque pesquisar o crime organizado é quase impossível. Ficou muito limitada a possibilidade de atuação dos pesquisadores. Sempre foi muito difícil pesquisar os presídios pela sua própria característica de instituição fechada, mas ficou muito menos viável agora.
A questão social nos presídios
E, além disso, durante os anos 1980 e mesmo nos anos 1990, o principal aspecto da questão da segurança em geral, e nos presídios em particular, o que me interessava era a questão social: por que têm tantos pobres presos, e por que os jovens pobres da periferia continuam tão atraídos por esse tipo de prática ilegal? E agora a presença tão forte e poderosa do crime organizado desviou um pouco o foco dessa questão. Não basta mais discutir a questão social. É preciso compreender como internamente eles conseguem agir e atingir um poder tão ampliado. Isso ficou quase impossível de ser pesquisado. O que podemos pesquisar é como a mídia tem trabalhado isso, que é um assunto que também me preocupa muito.
IHU On-Line - Por que a abordagem midiática desse tema é preocupante?
Eda Góes - A mídia hoje exerce sobre a sociedade um poder enorme. Traz em particular a sensação geral de insegurança associada à cidade. A mídia produz a realidade, já não vemos o crime acontecer. Ficamos sabendo que ele aconteceu e a partir de uma certa visão através da mídia. E isso é uma margem de influência importantíssima.
IHU On-Line - Já a sua tese de doutorado falou das relações entre cidadania e violência caracterizadas nas representações da polícia paulista. Qual a imagem da polícia perante à sociedade? O que a senhora pensa disso a partir do que ocorreu em São Paulo com a ação organizada do PCC?
Eda Góes - São contextos bastante diferenciados. Aqui também estou tratando dos anos 1980. Atualmente, isso se tornou uma questão muito mais complexa pela entrada em cena, com o poder tão grande do crime organizado. Uma primeira questão que está associada à polícia e à prisão é essa sensação que temos de uma incapacidade do Estado, através das suas agências de controle, de garantir a segurança da população e, portanto, o controle sobre a criminalidade. Isso gera a sensação de insegurança. Mas, ao mesmo tempo, e aí entra novamente o papel da mídia, que reforça muito essa sensação, há o perigo de apontarmos para a busca de soluções que não são próprias de uma sociedade democrática e civilizada. Por exemplo, achar que, já que a polícia foi atingida e teve vários policiais mortos, o que se espera que ela faça é que saia matando os bandidos.
Estamos em uma selva?
Isso significaria que estamos vivendo numa selva. Os criminosos cometem crimes e por isso são punidos e todos concordam com isso. A polícia deve ser o representante do lado oposto, ou seja, o representante da lei, dos nossos códigos e regras. O diferente disso seria um sistema em que cada um atua por si, usando os instrumentos que puder. Por exemplo, no Brasil não há pena de morte, então nada justificaria a polícia sair matando as pessoas. Embora que, sob pressão, sentindo-se insegura, a população tenda a apoiar esse tipo de atitude num primeiro momento. E isso é muito preocupante. O risco de se cometer erros é enorme. Os controles sobre a polícia e sobre todas as instituições de controle social continuam muito importantes. No entanto, é mais preocupante ainda quando estamos nos aproximando de períodos eleitorais e os políticos e seus partidos querem dar respostas imediatas a essas situações que não têm soluções imediatas. Em geral, elas acabam por tornar o problema ainda mais grave a médio prazo.
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Rap, jovens marginais e elites enclausuradas na cidade fragmentada. Uma entrevista especial com Eda Góes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU