08 Dezembro 2012
No dia 25 de dezembro, quando boa parte das famílias do Ocidente estiverem reunidas para celebrar o Natal, a escritora britânica Karen Armstrong estará sozinha. Sem peru nem ceia, sem presentes nem árvore de Natal, ela pretende simplesmente confraternizar com seu trabalho, que inclui consultorias e conferências na área de religião comparada. Aos 68 anos, Karen é uma das mais prestigiadas autoras de livros sobre a fé. Entre seus mais de 20 títulos estão best-sellers como Uma História de Deus, A Bíblia, uma Biografia e Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões.
"Não tenho família. Estarei sozinha. Não me importo, porque posso ter tempo para trabalhar", conta Karen, que acaba de lançar no Brasil seu último livro, 12 Passos para uma Vida de Compaixão (Paralela), obra que pretende despertar um jeito de viver mais compassivo em seus leitores.
A entrevista é de Marília de Camargo Cesar e publicada no jornal Valor, 07-12-2012.
Para Karen, o Natal deveria nos levar de volta aos momentos mágicos da infância e a refletir mais sobre os sem-teto, uma vez que a história do nascimento de Jesus começa com um casal de refugiados que não encontra abrigo nas hospedarias de Belém. Mas o consumismo, marca de um mundo "dominado pelo mercado", tira o brilho natalino, o que não impede o Ocidente de parar por uma noite a fim de celebrar a chegada de Jesus. Para a escritora inglesa, que foi freira durante sete anos e formou-se em literatura pela Universidade de Oxford, a mensagem cristã reverbera ainda hoje porque Jesus foi um autêntico praticante da Regra de Ouro - "não faça ao outro aquilo que você detesta" - ensinando-a, na verdade, em sua versão positiva - "faça aos outros o que gostaria que eles lhe fizessem".
Os primeiros passos de Karen rumo ao mundo religioso foram dados aos 17 anos, quando entrou para um convento católico na Inglaterra. Viveu sete anos de conflito pessoal e espiritual e decidiu desistir da vida restritiva de sua ordem religiosa em 1969. Nunca havia ouvido falar de Beatles nem da guerra do Vietnã. Questionou sua fé, formou-se, lecionou literatura na Universidade de Londres e se reencontrou com a religião ao escrever seus livros. "Monoteísta freelancer", Karen também tem títulos sobre Maomé e Buda e defende o diálogo religioso.
Eis a entrevista.
Ao olharmos para nosso mundo, como a senhora sugere no segundo passo de seu livro mais recente, encontramos uma sociedade que realiza façanhas no campo da ciência e da tecnologia, mas com poucos gênios espirituais. O fascínio da ciência calou a voz dos pensadores da espiritualidade?
Sim, o desenvolvimento da ciência no fim do século XVII tornou o pensamento religioso difícil para as pessoas. Apesar do brilhantismo tecnológico, o pensar religioso é subdesenvolvido, primitivo. Lemos os textos sagrados, por exemplo, com uma literalidade que é sem paralelo na história da religião.
Por que a vida de Jesus teve o poder de marcar tão profundamente a humanidade?
Certas pessoas parecem simbolizar o que o ser humano pode ter de melhor. Jesus é uma dessas pessoas, para muita gente. Vemos nos Evangelhos alguém que é muito humano e corajoso, sempre pronto a desafiar o sistema e derrubar barreiras, alguém que sai de seu caminho para praticar a compaixão pelos outros, até para pessoas que não são tão boas ou merecedoras. Mas Jesus é apenas uma dessas figuras paradigmáticas. Confúcio, Buda e Sócrates, todos têm um efeito parecido nas pessoas.
No período do Natal as pessoas se predispõem mais a ter atitudes compassivas, a reconciliações e ao perdão?
Penso que é um período no qual as famílias se reúnem e nos lembramos dos Natais mágicos que tivemos na infância. Mas também é verdade que as pessoas podem fechar as portas para o resto do mundo nessa época. Não tenho família. Estarei sozinha neste Natal. Não me importo, porque posso ter tempo para trabalhar. Se há momentos nos quais somos inclinados ao perdão e à reconciliação, eles são superficiais, porque não sobrevivem à época do Natal. Penso que a fúria consumista do Natal é estressante. Não se trata de hipocrisia, apenas uma marca de nossa sociedade dominada pelo mercado. A história do Natal deveria nos fazer refletir sobre os proscritos. Ela fala dos refugiados da crueldade, da pobreza e da falta de um teto. Da falta de um lugar na hospedaria.
A Bíblia diz que Jesus se relacionou com pessoas consideradas impuras e odiosas pela sociedade da época, como os cobradores de impostos, as prostitutas e os leprosos. Se andasse pelas ruas de Jerusalém hoje, para quem ele olharia com maior compaixão?
Creio que gostaria de alcançar todos os judeus e palestinos em Jerusalém que perderam seus amados na luta, os que foram feridos, emocional e fisicamente por anos de guerra. Pediria aos extremistas dos dois lados que o coração deles não ficasse pesado pelo sofrimento, mas que vissem que o outro lado também está sofrendo. Pediria ao povo judeu que se lembrasse como se sentiu quando eles mesmos perderam sua terra, quando estiveram sem teto e privados de tudo - e que deixassem que essa lembrança conduzisse o seu jeito de lidar com os palestinos, que hoje passam por experiência semelhante. Que se lembrassem de Hilel, contemporâneo mais velho de Jesus, que resumiu toda a lei judaica desta forma: "Aquilo que detestas, não faça ao seu próximo. Esta é a Torá, o resto é comentário". Jesus pediria aos israelenses para aplicar esse ensinamento à situação política atual. Também lembraria aos palestinos os sofrimentos que os judeus experimentaram na Europa no século XX, trauma que está vivo. O sofrimento e o medo distorcem a maneira como respondemos a uma situação. Jesus pediria às pessoas que olhassem para toda a dor que já experimentaram e que se lembrassem de que seus "inimigos" também estão sofrendo.
Há relatos sobre muçulmanos na África que tiveram sonhos nos quais Jesus aparecia a eles, revelando-se como salvador da humanidade, sonhos esses que acabaram por levá-los a deixar o islamismo e se converterem ao cristianismo. Após essas experiências, famílias passaram a ser perseguidas e até mortas. A figura de Jesus promove mais a paz ou a dissensão entre os homens?
Podem ser as duas coisas. Podemos usar nossas tradições religiosas para o bem e para o mal. Temos a capacidade de estragar coisas que são inerentemente lindas. Cristãos e judeus também foram inspirados pelo profeta Maomé a abraçar o islã e se tornar muçulmanos. Na Idade Média, os Cruzados matavam cristãos e judeus em nome de Jesus.
Seu livro mostra como o sentimento de benevolência e de disposição de "sofrer com" o outro faz parte da humanidade, assim como os chamados quatro instintos básicos - comer, lutar, fugir e reproduzir-se. A senhora relata como a preocupação com o próximo é a marca mais importante das principais tradições religiosas. Se há tantos bons exemplos a esse respeito, e há tanto tempo, por que esse movimento por um mundo mais compassivo parece sempre uma utopia?
Somos biologicamente programados para a compaixão, bem como para a violência e o medo. Temos regiões em nosso cérebro e hormônios que nos inclinam ao altruísmo, o que permitiu à nossa espécie que sobrevivesse. Isso nos ajudou a viver juntos, em grupos, de maneira que os seres humanos, frágeis em tamanho, pudessem ser mais fortes do que se tentassem existir sozinhos. Os mamíferos tinham esses centros em seus cérebros, uma característica que os répteis, por exemplo, não tinham. Estes eram regidos apenas pelos quatro instintos básicos. Esses centros na região do sistema límbico do cérebro capacitam uma mãe, por exemplo, a acordar toda noite para cuidar de seu filho, a despeito de sua própria exaustão, enquanto os répteis simplesmente põem os ovos e vão embora.
Por que parece ser tão difícil às vezes?
É difícil. Os quatro instintos básicos dizem que "tudo é a meu respeito". Eles nos encorajam a dizer sempre e em todas as áreas: "Primeiro eu!". Nos negócios, nos relacionamentos, na política. Instintivamente, procuramos nossos interesses. A compaixão, entretanto, pede que não nos coloquemos numa categoria especial. Pede que nos retiremos do trono e ali coloquemos o outro. E as tradições religiosas também afirmam que não podemos limitar nossa benevolência àqueles de nosso grupo congenial - nossa nação, partido político ou igreja. Devemos ter o que os chineses chamam de "jian ai" - preocupação para com todos. Temos que amar o estrangeiro (Levítico), amar nossos inimigos (Novo Testamento) e alcançar todas as tribos e nações (Alcorão). Isso não é nada fácil de fazer, mesmo reconhecendo que a compaixão é importante e admirando-a quando a vemos manifesta nos outros, mesmo percebendo quanto ela é essencial em nosso mundo. Isso requer um esforço diário e não é todo mundo que está a fim de fazê-lo.
A senhora diz que os 12 passos podem ser seguidos por qualquer pessoa, inclusive as que não cultivam nenhum sentimento religioso. Que experiência ou fato seria capaz de despertar em nós esse desejo?
Precisamos olhar para o sofrimento do mundo. Somos confrontados com imagens de dor mais que qualquer outra geração anterior. Vemos vítimas da guerra, de enchentes, terremotos, terrorismo, fome. De vez em quando, nos atinge uma "fadiga de compaixão", que nos faz tentar bloquear tanto sofrimento e dizer que aquilo tudo não tem nada a ver conosco. Mas há um movimento instintivo em direção ao outro quando o vemos em apuros. Um dos princípios de Confúcio diz que deve haver algo errado com a pessoa que consegue passar calmamente por uma criança que está para cair da beira de um poço. Você, instintivamente, se lança em direção a ela para pegá-la. Há centros cerebrais que produzem essa empatia também. Diz a história que Buda viveu uma vida protegida e até os 29 anos nunca havia presenciado nenhum sofrimento humano. Fora mantido por seu pai no palácio e os guardas mantinham todo tipo de visão perturbadora longe de seu alcance. Até que os deuses o confrontaram com a presença de um velho, um doente e um cadáver. Ele ficou tão chocado que deixou sua casa na mesma noite, determinado a encontrar uma solução para o sofrimento humano.
Desse modo, Buda escolhe deixar a proteção do palácio.
A mensagem ensina aos budistas o que eles devem fazer para alcançar a iluminação: até que reconheça a onipresente dor no mundo, você jamais poderá começar sua busca espiritual. A imagem do palácio com esses guardas ao redor de seu perímetro é uma maravilhosa imagem da mente em negação. Todos queremos nos defender do sofrimento e não permitir que nos atinja. Mas vivemos no paraíso dos tolos, porque o sofrimento nos pressiona por todos os lados. Todos sofremos, mesmo os mais afortunados. Quando permitimos que a dor do outro invada nossa consciência, então acontece esse despertar.
No livro, a senhora ensina que a Regra de Ouro está na essência da maioria das tradições religiosas. Jesus tambem pregou a Regra de Ouro - mas colocando-a em sua forma positiva - "faça ao outro o que você gostaria que fizessem a você". Jesus ampliou o sentido da lei judaica em outras passagens - como quando diz que todo aquele que odiar alguém no coração, na verdade, para Deus, já cometeu assassinato. Essa expansão do significado da lei judaica teve um impacto naqueles dias. Os cristãos fundamentalistas arrancaram essas páginas de suas "Bíblias"?
Os rabinos da era Talmúdica também estavam ampliando o sentido da lei judaica naquela época, da mesma maneira que Jesus. Mateus apresenta Jesus no sermão da montanha como um fariseu, como [o rabino] Hilel [o nome pelo qual é conhecido um célebre líder cabalista, que viveu durante o reinado de Herodes, o Grande, na época do Segundo Templo], que também ensinou a Regra de Ouro. Precisamos tanto da forma positiva quanto da negativa da Regra de Ouro. Não adianta sair fazendo o bem aos outros se, ao mesmo tempo, você está dizendo coisas horríveis e equivocadas a respeito de outras pessoas, outras nações, outras religiões. Se não quer ouvir insultos à sua tradição, não insulte a tradição dos outros. Quanto aos fundamentalistas, infelizmente, é verdade - e não somente os fundamentalistas - que muitas pessoas preferem estar certas a ser compassivas. Isso é, na verdade, gratificar o ego, muito mais do que vestir "o dia todo, todos os dias" [Confúcio] os sapatos do outro.
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Hora da compaixão. Entrevista com Karen Armstrong - Instituto Humanitas Unisinos - IHU