18 Março 2013
Nessa terça-feira será publicado o primeiro livro sobre o novo pontífice. Intitula-se Francesco, un Papa dalla fine del mondo [Francisco, um papa do fim do mundo] (Ed. EMI), escrito por Gianni Valente.
Publicamos aqui um trecho do livro, uma entrevista com Bergoglio publicada por Valente em 2002. O trecho foi publicado no jornal La Repubblica, 18-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
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Em 2001, a crise econômica na Argentina chegou ao fundo do poço. Lembramo-nos bem disso na Itália, onde os poupadores que investiram nos tango bonds ficaram com as mãos abanando. A crise também provocou, naturalmente, agitação social e manifestações populares.
A imagem da crise que o cardeal Bergoglio, no entanto, daqueles dolorosos momentos, sempre tem diante dos olhos não é o barulho e a raiva do cacerolazo nas ruas, mas aquela imagem íntima e cheia de dignidade humilhada das mães e dos pais que choram de noite, quando as crianças dormem e ninguém os vê: "Eles choram como quando eram crianças, e a mãe os consolava". Diante de um povo estrangulado pelos mecanismos anônimos e perversos da economia especulativa, ele também, que é uma pessoa humilde e reservada, chega a usar palavras afiadas.
Eis a entrevista.
Eminência, o que aconteceu na Argentina neste início de milênio?
A Conferência Episcopal descreveu na carta ao povo de Deus publicada no dia 17 de novembro de 2001 os muitos aspectos dessa crise inédita: a dilapidação do dinheiro do povo, o liberalismo extremo mediante a tirania do mercado, a evasão fiscal, a falta de respeito pela lei, a perda do sentido do trabalho. Em uma palavra, uma corrupção generalizada que mina a coesão da nação.
A crise argentina também parece ser uma crise do modelo econômico que se havia imposto ao longo das últimas duas décadas.
Houve nesse tempo um verdadeiro terrorismo econômico-financeiro. Que produziu efeitos que são facilmente registráveis, como o aumento dos ricos, o aumento dos pobres e a drástica redução da classe média. E outros menos conjunturais como o desastre no campo da educação. Neste momento, em Buenos Aires e arredores, há 2 milhões de jovens que não estudam nem trabalham. Diante da forma bárbara em que a globalização ocorreu na Argentina, a Igreja deste país sempre se remeteu às indicações do Magistério. Os nossos pontos de referência são, por exemplo, os critérios expostos com clareza na exortação apostólica de João Paulo II Ecclesia in America.
O senhor citou o Magistério. Há 70 anos, na encíclica Quadragesimo anno, escrita pouco depois da crise da Bolsa de 1929, Pio XI havia definido como "imperialismo internacional do dinheiro" o modelo de economia especulativa capaz de empobrecer instantaneamente milhões de famílias. O senhor aplicaria essa definição à Argentina de hoje?
É uma fórmula que nunca perde atualidade e contém uma raiz bíblica. Quando Moisés sobe ao monte para receber a lei de Deus, o povo peca de idolatria fabricando o bezerro de ouro. O atual imperialismo do dinheiro também mostra um inequívoco rosto idolátrico. E onde há idolatria, apagam-se Deus e a dignidade do ser humano. A economia especulativa não precisa mais nem do trabalho, não sabe o que fazer do trabalho. Ela persegue o ídolo do dinheiro que se produz por si mesmo. Por isso, não se tem remorso em transformar milhões de trabalhadores em desempregados.
Como pastor, como o senhor considera o papel da comunidade internacional e dos órgãos financeiros centrais na crise argentina?
Não me parece que elas coloquem o ser humano no centro da sua reflexão, apesar das palavras bonitas. Elas sempre indicam aos governos as suas rígidas diretrizes, falam sempre de ética, de transparência, mas me parecem moralistas sem bondade.
A Igreja está interessada de diversos modos à crise argentina. Quais critérios guiam a sua ação?
Nessa tentativa comum para sair da crise, tem-se presente o que ensina a Tradição da Igreja, que reconhece a opressão do pobre e a fraude no salário aos operários como dois pecados que gritam por vingança diante de Deus. Essas duas fórmulas tradicionais têm uma atualidade total no Magistério do episcopado argentino. Estamos cansados de sistemas que produzem pobres para que depois a Igreja os mantenha.
O envolvimento da Igreja na crise se expressa principalmente em ajudas concretas, materiais.
Para as camadas mais necessitadas, chegam somente 40% dos recursos que lhes são destinados pelo Estado. O resto se perde pela estrada. Há subornos. A Igreja já abriu nas paróquias uma rede capilar de refeitórios para as crianças e para as pessoas cada vez mais numerosas que vivem nas ruas.
A hierarquia católica também aceitou se sentar à mesa da reconciliação. Mas se absteve de assumir um papel de entidade moralmente superior. "Todos pecamos", disse o presidente da Conferência Episcopal, Estanislao Esteban Karlic.
Fazemos parte do nosso povo. Participamos com ele do pecado e da graça. Só podemos anunciar a gratuidade do dom de Deus se tivermos experimentado tal gratuidade no perdão dos nossos pecados. Em 2000, a Igreja argentina fez, também publicamente, um período de penitência e de pedido de perdão à sociedade, até em referência aos anos da ditadura. Nenhum setor da sociedade argentina pediu perdão do mesmo modo.
Na ampla participação eclesial no diálogo nacional, não há risco de protagonismo ou de desnaturalizar a imagem da Igreja, fazendo dela uma agência de consenso que fornece a cola cultural da identidade nacional?
A Igreja só fez as declarações necessárias, convidando sempre a buscar um diálogo entre as partes da sociedade. Mas, como está escrito no documento da Conferência Episcopal do dia 14 de janeiro, "o diálogo entre os argentinos foi convocado pelo presidente da nação para reunir os setores representativos de todo o país [...]. A Igreja, como instituição, não participa como um membro a mais, mas como quem oferece um espaço de encontro". É bom que isso fique claro. O diálogo não é convocado pela Igreja, nem é conduzido pela Igreja. Ele foi convocado e é levado adiante pelo presidente, com o apoio técnico das Nações Unidas. A Igreja oferece o âmbito para o diálogo, como alguém que oferece a casa para que dois irmãos se encontrem para se conciliar. Mas não é um lobby que intervém no diálogo ao lado de outros grupos de pressão.
A classe dominante encontra-se em um descrédito total. Parece ter razão quem teoriza a eliminação da política e a desestruturação do Estado.
É preciso reivindicar a importância da política, mesmo que os políticos a tenham desacreditado, porque, como dizia Paulo VI, pode ser uma das formas mais altas da caridade.
Como isso vai acabar?
Eu acredito em milagres. E a Argentina tem um povo grande e bonito. Esses recursos espirituais que o nosso povo mantém já são um princípio de milagre. E eu concordo com Manzoni que diz: "Nunca achei que o Senhor tenha começado um milagre sem acabá-lo bem". Eu espero que acabe bem.
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''Especulação e idolatria do dinheiro: os pecados do nosso tempo'': o primeiro livro sobre o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU