05 Agosto 2014
No momento em que o Congresso pondera sobre a maneira mais rápida para a deportação das crianças vindas da América Central e que tentam cruzar a fronteira dos EUA para fugir da pobreza e da violência, a Igreja Católica surge como a primeira na linha de defesa delas. A semana passada trouxe não só uma rara intervenção papal na política americana, mas também uma iniciativa inédita dos jesuítas americanos.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada pelo jornal The Boston Globe, 02-08-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quaisquer que sejam os resultados destes esforços, a grande questão da Igreja é que a imigração vem recebendo lugar nos círculos católicos como um assunto totalmente “pró-vida”.
Uma crescente onda de crianças desacompanhadas vindas da América Central se dirige para o Norte, impulsionada pela violência de grupos (gangues) que atingem vítimas cada vez mais jovens. Segundo a Agência de Fiscalização de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA, mais de 52 mil menores vindos desta região foram registrados – e este número inclui apenas aqueles que foram pegos. Supõe-se que o número real seja muito maior.
Na última sexta-feira à noite, a Câmara americana, de maioria republicana, aprovou duas medidas que visam lidar com o surto, incluindo disposições para acelerar as deportações e atingir a autoridade de Obama sobre estas questões. Os projetos provavelmente não irão se tornar lei e o jornal Washington Post informou que Obama está considerando uma ação executiva que permita que milhões de imigrantes fiquem no país.
Em geral, os papas relutam a se pronunciar sobre disputas políticas internas, mas este papa não é apenas mais um. Não só é o primeiro pontífice latino-americano, mas também é o filho de imigrantes italianos que foram para a Argentina e cuja afeição pelos imigrantes é clara.
Na segunda-feira, Francisco enviou uma mensagem para uma reunião na Cidade do México convocada para abordar a crise. Ainda que o ambiente fosse internacional, a linguagem do papa se dirigiu, sobretudo, aos formuladores de políticas dos Estados Unidos.
“Uma tal emergência humanitária exige, como uma primeira intervenção urgente, que estes menores sejam recebidos e protegidos”, disse o papa, insistindo que estes jovens “cruzam as fronteiras sob condições extremas, em busca de uma esperança que a maior parte das vezes é vã”.
A defesa dos imigrantes tem sido um dos pilares do papado de Francisco.
A sua primeira viagem para fora de Roma foi na ilha no sul da Itália chamada Lampedusa, onde o religioso lançou uma coroa de flores no mar para celebrar as 20 mil pessoas que, acredita-se, morreram na tentativa de fazer a travessia do norte da África para a Europa durante as duas últimas décadas, e falou sobre aquilo que chamou de a “globalização da indiferença”.
Os bispos americanos seguiram este exemplo ao realizar, entre outras coisas, uma celebração na fronteira dos EUA com o México em abril. Aí distribuíram a comunhão para pessoas no lado mexicano da fronteira através das barras do muro de segurança que separa os dois países. Os religiosos citaram Lampedusa como sendo sua fonte de inspiração.
Nesta semana os bispos enviaram mais de mil e duzentas Bíblias em espanhol para cerca de mil jovens da Guatemala, Honduras e El Salvador detidos pela Patrulha de Fronteira americana próximo de Nogales, no Arizona. Os bispos divulgaram amplamente estas doações, obviamente querendo fazer com que a situação dos imigrantes se mantenha no centro das atenções.
A semana passada também trouxe novas provas de que outros na Igreja receberam o recado.
Na quarta-feira, a Conferência Jesuíta, que representa cerca de 2500 padres e irmãos jesuítas nos EUA, fez um apelo aos 43 membros do Congresso – republicanos e democratas – que foram alunos de escolas e/ou universidades jesuítas para não ignorarem a lei de 2008, que exige audiências com as crianças da América Central antes que sejam deportadas.
O Pe. Thomas Smolich, presidente da Conferência, considerou “inumana e um insulto aos valores americanos” tal a prática de deportação como vem sendo feita.
Um dos ex-alunos jesuítas é John Boehner, formado na Universidade Xavier, em Cincinnati (Ohio). Smolich se dirigiu a Boehner diretamente, insistindo que encurtar o devido processo de audiências não irá fazer com que a situação se resolva. “Não se trata de uma crise nova”, escreveu Smolich.
“Ela tem crescido ao longo das últimas décadas (...) 90 crianças morrem ou desaparecem em Honduras todo mês”, disse, acrescentando que “este número equivale a oito crianças sendo executadas em sua zona eleitoral a cada 30 dias”.
É de se notar que a Conferência Jesuíta nunca antes havia apelado para ex-alunos no Congresso sobre algum assunto. Sob o primeiro papa jesuíta, que claramente fez deste tema uma prioridade, os coirmãos americanos quebraram o tabu.
Eis aqui o significado católico de tudo isso:
De modo especial nos Estados Unidos, a agenda social da Igreja nos últimos anos tem se identificado, em grande parte, com as questões relativas ao aborto, casamento gay e uso de métodos contraceptivos, e não há nenhum indício de que estes irão receber menos atenção no futuro.
Desde o começo, no entanto, Francisco vem sendo um papa do evangelho social, tornando equivalentes prioridades como a diminuição da pobreza, a resolução de conflitos, o tráfico humano e o meio ambiente, bem como os direitos dos imigrantes. O seu objetivo parece ser expandir a noção do que vale como uma questão “pró-vida”, ou seja, uma questão em que a dignidade humana está em jogo e onde a Igreja se obriga a responder.
Em termos práticos, chamar de pró-vida significa, para a Igreja significa, tratar-se de algo muito importante, algo que justifica o investimento de tempo e dinheiro, além de um simples comunicado à imprensa ou de um sermão piedoso de vez em quando.
Esta semana sugere que o plano está dando certo. Na era Francisco, ser pró-vida ainda significa se opor ao aborto, mas agora não irá se limitar a isso apenas. Se houver uma ameaça aos direitos dos imigrantes, então a Igreja se põe em defesa deles.
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Resposta muçulmana contra ISIS
Na semana passada falei sobre a desolação da comunidade cristã em Mosul no norte do Iraque, cidade onde a presença dos cristãos remontam a 1200 anos e que, hoje, basicamente é um região sem nenhum destes depois que as forças do Estado Islâmico do Iraque e Levante tomou o poder. (Às vezes, o mesmo grupo tem seu nome traduzido como “Estado Islâmico do Iraque e Síria” ou ainda “Estado Islâmico do Iraque e al-Sham”.)
Uma notícia boa poderá vir de uma fundação lançada pelo cardeal Angelo Scola, de Milão, ainda quando ele era o Patriarca de Veneza dedicado ao diálogo entre cristãos e muçulmanos e a dar voz à minoria cristã no Oriente Médio.
Uma reportagem de Michele Brignone diz que a reação que houve em grande parte do mundo islâmico à proclamação de um califado no norte do Iraque pelo ISIS foi bastante negativa.
Por exemplo, Brignone observa que a Associação Mundial dos Ulamâ Muçulmanos (“Ulamâ” significa estudiosos, eruditos, intelectuais), cujo presidente é o xeique Yûsif al-Qaradâwî, pensador influente ligado à Irmandade Muçulmana no Egito, declarou que o califado é legalmente nulo.
“Todos nós sonhamos com o califado islâmico e esperamos, profundamente, que em nossos corações ele se estabelecerá o mais breve possível”, diz, referindo-se à ideia de todos os muçulmanos vivendo juntos em um Estado governado pelo direito islâmico. No entanto, diz que o estabelecimento do califado deve vir a partir de uma “consulta”, e não de decisões unilaterais.
Segundo Brignone, o destacado jurista islâmico marroquino Ahmed Raysûnî igualmente condenou a proclamação do ISIS, insistindo que o uso da espada justifica-se contra alguma agressão, mas não para “propósitos hegemônicos ou de abuso de poder”.
Brignone escreve que até mesmo Abû Muhammad al-Maqdisî, ideólogo jordaniano-palestino, famoso pelos seus laços estreitos com a al-Qaeda, condenou o ISIS, ao escrever que “o califado deve ser um refúgio e uma garantia para todos os muçulmanos, e não uma ameaça ou intimidação”.
Para Brignone, a reação contrária ao ISIS ilustra as divisões crônicas no mundo islâmico. Poder-se-ia perguntar se, depois de terem recuado no último exemplo do que seria um califado na prática, alguns destes pensadores islâmicos podem se abrir para uma conversa sobre como moldar uma sociedade islâmica que também promova a proteção das minorias.
Líderes cristãos desesperados no Iraque com certeza estarão desejosos em se juntar a eles neste momento.
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Uma turnê na Roma do Papa Francisco
Roma é um destino turístico de primeira, atraindo de 7 a 10 milhões de visitantes todos os anos. O mês de agosto é quando os visitantes tomam conta da cidade, já que muitos dos moradores saem para fugir do calor. Os romanos dizem que apenas duas coisas se movem neste mês: “cani e americani”, cães e americanos.
Nestes meses de verão, é uma boa fazer uma turnê na Roma do Papa Francisco, ou seja, ir a lugares hoje associados com este papa nada ortodoxo. Para entender o que faz dele assim, visitar estes lugares vai ser muito mais útil do que permanecer em fila na Basílica de São Pedro ou nos museus do Vaticano.
Vocês não encontrarão nenhum destes destinos nos guias turísticos impressos, porque passam longe dos trajetos tradicionais. Como o papa disse quando foi para o lado norte da cidade para a sua primeira visita paroquial em maio: “A gente entende a realidade melhor a partir da periferia do que do centro”.
1. Casa del Marmo
A 10 quilômetros do Vaticano, no nordeste de Roma, está o maior instituto penal juvenil da cidade, chamada Casa del Marmo. Este centro abriga cerca de 50 internos, meninos e meninas, com idades que vão de 14 a 21 anos, a maioria do norte da África e eslavos, grupos que normalmente não têm uma recepção acalorada dos moradores locais.
Francisco escolheu este local para ser a sua primeira missa de Quinta-Feira Santa, realizada no último mês de março, quando lavou os pés de 12 jovens infratores, incluindo duas mulheres, uma católica italiana e uma sérvia muçulmana, tecnicamente uma violação das regras da Igreja que restringem o rito a homens apenas.
“Lavar seus pés significa que estou ao seu serviço”, disse Francisco. Quando lhe perguntarem por que tinha vindo, disse que “as coisas do coração não têm uma explicação”.
2. Magliana
Em abril, Francisco visitou o bairro Magliana, em Roma, tão icônico para os italianos por causa se sua associação com o crime organizado quanto o Bronx o é para os americanos. O papa fez da batalha contra a máfia uma prioridade ao declarar, em junho, que seus membros estão “excomungados”.
Segundo a forma como Francisco enxerga a máfia, esta explora os pobres sob uma aparência de uma piedade católica.
Magliana é um bairro bastante simples, e o descontraído papa se sentiu bem aí. Uma placa escrita a mão assim diz: “Come butta France?” que, numa tradução livre, quer dizer “Tudo em cima, meu?” O dizer tirou do papa uma bela risada.
Francisco disse que embora o cristianismo seja uma comunidade de pecadores, não é um paraíso para os corruptos. Também denunciou a “cultura do desperdício”, incluindo os pobres e as vítimas do crime.
3. Termini
O terminal de ônibus e trem de Roma é um ímã para os imigrantes e romanos que não têm muitas condições, pois aí encontram abrigo e ganham sanduíches e cuidados médicos dados por grupos de caridade. Por si só isso já seria um belo símbolo para o Papa Francisco, mas é Andrea Quintero que dá um significado mais especial ainda.
Quintero, que tinha 29 anos na época de sua morte, era uma imigrante colombiana transexual e viciada em drogas que vivia nas ruas ao redor do Termini. No dia 29 de julho de 2013 foi espancada até a morte por bandidos desconhecidos que fugiram pelos trilhos do trem.
Um padre local propôs realizar o funeral de Quintero na Igreja de Gesù, centro espiritual da Companhia de Jesus, ordem dos jesuítas. Foi uma ideia ousada, pois ele sabia que alguns poderiam se incomodar com relação aos ensinos morais da Igreja, e os líderes da ordem não iriam querer constranger a história do primeiro papa jesuíta.
No entanto, visto que o papa era Francisco, não houve nenhum problema. O funeral aconteceu no dia 27 de dezembro de 2013, reforçando a ideia de que as pessoas marginalizadas tais como Quintero constituem uma de suas prioridades.
4. Bambino Gesù
O dia 21 de dezembro capturou precisamente as prioridades do papa. Pela manhã, Francisco fez um discurso chamado “Estado da União”, fala feita aos manda-chuvas do Vaticano. Foi breve e perfunctório, fazendo poucos mais do que uma exortação sobre a humildade.
À tarde, no entanto, Francisco passou quase três horas em visita a crianças enfermas e suas famílias no hospital Bambino Gesù, de Roma, dedicando mais tempo para esta saída do que para qualquer outra atividade durante a sua primeira temporada de Natal.
Francisco parece querer mudar as percepções quanto à autoridade na Igreja, afastando-a do poder e privilégio e indo em direção ao serviço. Vê-lo no hospital Bambino Gesù fez lembrar esta opção do pontífice.
5. Don Gnocchi Center
Localizado próximo ao presídio juvenil, o centro de saúde “Santa Maria da Providência” é gerido por uma fundação criada pelo falecido reverendo Carlo Gnocchi para servir a idosos e deficientes. É onde Francisco celebrou a missa de Quinta-feira Santa em abril.
O pontífice chegou em seu Ford Focus a fim de lavar e beijar os pés de 12 pacientes, com idades entre 16 e 86 anos, vários dos quais estavam em cadeiras de rodas e cujos pés se encontravam terrivelmente inchados e desfigurados.
Um médico do centro de saúde, Dr. Furio Grammatica, disse aos jornalistas que até mesmo os residentes severamente debilitados têm um sexto sentido para quando alguém os trata e cuida, dizendo que este dia foi marcante nesse sentido.
O Papa João Paulo II costumava pedir aos seminaristas que “imparare Roma”, literalmente “aprenderem Roma”, ou seja, o religioso queria dizer que apenas o mover-se ao redor da cidade já oferecia uma educação no catolicismo. Caso queiramos entender o tipo de catolicismo que o atual papa está buscando, estes cinco lugares deverão ajudar e muito.
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Estreia do Crux
Quando me mudei para o The Boston Globe no mês de fevereiro, a cobertura católica do jornal fazia parte de um plano mais amplo expandir, com o que pensávamos em criar um novo website dedicado aos assuntos da Igreja. Feliz estou ao anunciar que o site tem nome agora: “Crux” e uma página no Facebook.
O lançamento do sítio acontecerá no começo de setembro. Entre outras características, o Crux será totalmente gratuito, sem seções para assinantes portanto.
Na sequência de palestras e conversas ao longo dos últimos meses, por vezes me pediram que descrevesse a proposta do site. Honestamente, a melhor pessoa para responder a esta pergunta é mesmo Teresa Hanafin, ex-editora da comunidade do The Boston Globe para casamentos e noivados e ex-editora local, hoje responsável pelo Crux. Sou apenas um colaborador, e ela é a chefe.
A meu ver, abaixo estão os aspectos mais interessantes.
Estou envolvido na cena católica por quase 20 anos, e algo que para mim está bem claro é que o truque não é outra coisa senão estar próximo o suficiente da história para compreendê-la de forma correta, mas distante o suficiente para permanecer objetivo. Muitas vezes, nós da mídia erramos num ou noutro lado desta equação.
Nestes tempos seculares, grande parte dos comentários sobre assuntos de igreja vem de pessoas que nunca tiveram a oportunidade de desenvolver uma compreensão profunda do catolicismo. Na imprensa católica especializada, as pessoas tendem a ter uma forte investida sobre quem está vencendo os debates internos da Igreja, o que às vezes colore a forma como produzem as notícias.
Em tese, o Crux pode encontrar o equilíbrio desejado. Ficaremos próximos o suficiente para saber o que está acontecendo, em condições de situar as notícias de última hora no contexto adequado e trazer à tona suas possíveis implicações. No entanto, iremos manter nossa distância dos vários campos da Igreja, tentando ser, antes de tudo, um meio de comunicação justo para todos e não a voz de um.
Em poucas palavras, o objetivo é ser a praça da cidade da Igreja Católica, um lugar onde todos podem se sentir em casa. A mistura vai incluir não apenas assuntos sérios, mas também histórias pouco convencionais, destaques, quizzes para testar o conhecimento das pessoas sobre o catolicismo e outros.
Tudo isso é, evidentemente, apenas uma ideia, e falta ver ainda como iremos pô-la em prática. Posso dizer, no entanto, que mal posso esperar para começar.
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A imigração se tornou assunto “pró-vida” para líderes católicos americanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU