04 Junho 2014
Um dos mais influentes intelectuais marxistas deste início de século, o filósofo italiano Antonio Negri, 80, diz que o Brasil errou ao apostar na realização da Copa e da Olimpíada. Ele vê na "política dos grandes eventos" uma negação dos valores locais e da cultura das favelas.
A entrevista é de Bernardo Mello Franco, publicada pelo jornal Folha de S.Paulo, 03-06-2014.
Em visita ao país às vésperas do Mundial, Negri critica as exigências da Fifa e diz que a entidade age como um instrumento do "novo capitalismo" globalizado. "A Fifa e o Comitê Olímpico Internacional atuam como grandes ONGs capitalistas. Mas não vão aos países para ajudar ou distribuir esmolas, e sim para buscar lucros", afirma.
Para Negri, a cultura popular foi negada pela política dos grandes eventos, "a política de Dilma". "Os revoltados estão certos ao avaliar a política dos grande eventos como um erro político."
Negri fala em São Paulo nesta quinta (5), às 19h, no evento "Multitude", no Sesc Pompeia. Ele recebeu a Folha no Rio. Estava acompanhado por Giuseppe Cocco, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com quem publicou "GlobAL: Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada" (Record, 2005).
Eis a entrevista.
Quando o sr. escreveu "Império", em 1999, Bill Clinton presidia os EUA e as torres gêmeas estavam de pé. As transformações do mundo mudaram as teses do livro?
Há um fenômeno irreversível: a globalização dos mercados e a falta de uma ordem global. Os EUA tentaram impor uma nova ordem, no que chamamos de golpe de Estado contra o Império, mas essa tentativa de impor a soberania americana fracassou.
Os ataques em Nova York foram apenas um episódio do fracasso. Mais importante foram as derrotas no Iraque e no Afeganistão, o nascimento dos Brics e de outros poderes na esfera global.
O mundo não é mais unificado sob uma única potência. Tornou-se fragmentado, fundamentalmente por poderes continentais. A crise do poder americano é extremamente forte. O soft power dos EUA ainda resiste, mas com dificuldades cada vez maiores. O último capítulo foi a reaproximação de China e Rússia na crise da Ucrânia.
A direita nacionalista voltou a ganhar força na Europa. Como avalia este fenômeno?
O nacionalismo europeu sempre existiu como força minoritária. Não ameaça a unidade europeia. Quem a ameaça é a forma rígida de neoliberalismo imposta às populações, que protestam contra a miséria crescente, a destruição do Estado de bem-estar social, a redução dos direitos de educação e saúde.
No entanto, o crescimento da direita nacionalista, fascista, é extremamente perigoso. Não é um problema só para a Europa, mas para todos os povos. É o mesmo problema do extremismo religioso.
O sr. demonstra interesse crescente pelo Brasil desde a eleição de Lula. Como vê a evolução do país no período?
Lula representou um momento de transformação profunda no país, em que a cidadania se alargou a novos segmentos da população. Não simplesmente do ponto de vista da liberdade, mas da igualdade econômica e social. O Bolsa Família é uma representação forte disso, como é o pleno emprego. Foi um processo profundo e em parte revolucionário, com características revolucionárias.
Em que sentido?
No sentido de um conceito de igualdade muito forte. Veja as cotas raciais, por exemplo. A experiência de Lula se juntou à sua intuição profunda sobre a modificação das relações globais. A ligação sul-sul, o fato de o país ter quebrado as relações de dependência, fundamentalmente ideológicas. Nenhum governo brasileiro, de direita ou de centro, havia feito isso. Deste ponto de vista, Lula é uma referência para toda a esquerda mundial. Para o pouco que resta da esquerda... (risos).
O Brasil acaba de viver uma onda de manifestações contra o governo e o poder em geral. Nasceu algo novo no país?
Agora não se fala mais de Lula, e sim da sucessão dele. É evidente que Lula foi mais longe do que podíamos esperar, como fazem os que estão em contato próximo com as multidões. Hoje me parece haver uma grande incompreensão da elite dirigente, em geral. Não somente do PT, mas também, e sobretudo, da opinião pública representada pela imprensa, que sempre fez oposição a Lula.
A elite do governo e a elite da imprensa não viram que a aliança construída em torno de um grande projeto de desenvolvimento, que devia ser coroado com o sucesso e a exposição internacional do país, esquecia as novas gerações que querem se expressar, querem ser protagonistas com sua cultura. A cultura formidável que vem das favelas foi negada pela política dos grandes eventos, a política de Dilma. Essa política não reconheceu a prioridade das transformações revolucionárias iniciadas por Lula.
Mas foi Lula quem lutou pelos grandes eventos, aceitando as condições da Fifa e do COI.
Então isso significa que Lula errou no último período. Dilma era ministra da Casa Civil. Mas isso não é tão importante. Quando falamos de Lula, na realidade estamos falando de uma consciência generalizada, um movimento que não é mais de um chefe, de um líder.
O Brasil viveu transformações fundamentais no povo, nas pessoas. Havia uma energia reprimida que explodiu, vinda de sindicatos e das favelas. Isso tinha que ser respeitado. Os revoltados [manifestantes] estão certos ao avaliar a política de grande eventos como um erro político. Quando os jovens das cidades dizem "Não!", não são "foras da lei". São pessoas que nasceram e foram produzidas pela nova lei.
A atuação da Fifa e do COI e suas exigências ao Brasil têm relação com o novo capitalismo que o sr. estuda?
Sem dúvidas, com as novas formas do capitalismo. Com certeza, muitos capitais brasileiros já foram empenhados, porque as novas formas de capitalismo não são externas aos países.
Quando se fala de Fifa ou do COI, fala-se de plataformas de agenciamento de capitais financeiros em nível mundial, que atravessam as bolsas dos países com um alvo, que neste caso é o Brasil.
O Brasil aceitou participar com suas próprias forças, negociando diretamente a entrada de capitais. Fifa e COI são como grandes ONGs capitalistas. Mas não vão aos países para ajudar ou dar esmola, e sim para fazer lucros.
As manifestações no Brasil e em outros países não são mais comandadas por sindicatos, entidades tradicionais. Qual a consequência disso?
As formas de luta agora são multitudinárias. Correspondem à nova composição do proletariado, que reúne os pobres e parte da classe média empobrecida. Os antigos sindicatos tinham uma relação fixa e contínua com camadas de população operária, industrial. Hoje o trabalho é fundamentalmente imaterial, móvel, precário.
Isso determina novas formas em que as lutas populares se expressam e recompõem novos valores. Não só salariais, mas ligados aos modos de vida, à defesa da cidade em que se vive.
Nessas novas formas de luta, o trabalhador ganha ou perde força para buscar direitos?
É uma pergunta importante, mas ainda estamos no início do processo. Até agora, os poderes não reconheceram essas lutas. Estou convencido de que os trabalhadores têm capacidade de ampliar sua força na luta por melhores salários, transporte, cultura, por tudo que está ligado à sua vida. Mas esta nova subjetividade ainda não é reconhecida, é reprimida. A polícia atira contra essas lutas. Essa repressão é um ataque aos direitos humanos. Não estão reprimindo a desordem, mas assassinando os novos direitos que nascem da multidão.
O que é ser marxista hoje?
É o que sempre foi. Os marxistas sempre estudaram as lutas das populações e usaram esses elementos para transformar a sociedade. Hoje, isso significa pôr os resultados a serviço da multidão. O dilema hoje é que o Estado cresce junto com a multidão ou se destroi contra ela.
O sr. já escreveu que deve haver um modo de reconhecer a derrota sem ser derrotado. Encontrou esta forma?
Ninguém esperava que a vitória do capitalismo sobre os movimentos dos anos 60 e 70 e sobre a União Soviética fosse uma vitória de Pirro. Hoje o mundo é mais difícil para o capitalismo do que naquelas épocas. A derrocada do comunismo abriu espaço para novos movimentos que vão para além do socialismo.
É estranho falar dessas coisas, porque parece que falamos de utopias ou de desejos vazios. O que sinto é que a luta hoje não é mais produto apenas da necessidade e da miséria, mas também do desejo, do afeto, da alegria de conquistar coisas novas. Isso é ir além da derrota.
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"Os novos direitos que nascem da multidão são assassinados", diz Negri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU