24 Janeiro 2011
O Brasil chegou a um dos momentos mais complexos da política de estabilização. O controle da inflação, este ano, será bem mais difícil do que em 2008, o último período de aceleração da inflação antes do atual. Há inflação de demanda e não haverá mais sobra de produtos para importação decorrente da crise global nem apreciação do câmbio para produzir a desinflação vinda do setor externo. A inflação de serviços (bens não comercializáveis) já passou da casa dos 6% para a dos 7% ao ano. Os preços administrados são indexados ao IGP, que foi alto em 2010. O mercado de trabalho encontra-se em pleno emprego, o que não ocorria em 2008, e a demanda continua crescendo.
"Estamos num momento rico e absolutamente inédito. Agora, é aquela história: eu abro um champanhe para comemorar, mas não bebo porque preciso estar lúcido para enfrentar os problemas que isso traz", diz Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das comunicações e hoje diretor da Quest Investimentos, nesta entrevista.
A entrevista é de Claudia Safatle e Cristiano Romero e publicada pelo jornal Valor, 25-01-2011.
São caminhos de uma armadilha clássica. Os investimentos para aumentar a oferta de bens na economia são bastante grandes, mas, enquanto eles não amadurecem, eles são demanda. "Se olharmos as hidrelétricas, a Petrobras, o próprio setor privado, vemos um incremento forte do investimento, mas sem que esse aumento represente neste ano nem no ano seguinte uma elevação da oferta. Então, ele pressiona preço."
Para enfrentar esse quadro, Mendonça de Barros sugere que o Banco Central reconheça que a situação é complicada e diga que vai tentar trazer a inflação para a meta em dois anos. "Isso já daria um espaço maior de trabalho", diz. Além disso, é preciso descomprimir um pouco a demanda interna, que está combinando um consumo muito elevado com um investimento também alto. Para isso, o governo teria que reduzir substancialmente os gastos correntes do governo.
Eis a entrevista.
Por que será mais difícil combater a inflação agora do que há três anos, quando a economia também estava acelerada?
A questão central é o mercado de trabalho. O conceito de pleno emprego é relativo, porque pleno emprego é quando não tem nenhum trabalhador disponível. Mas estamos caminhando para uma situação bastante complexa. Eu estava conversando com um pessoal de Caxias do Sul (RS) e lá me disseram que não há mais trabalhador qualificado. Caxias é uma cidade importante. Essa é uma característica que não tínhamos antes da crise americana [de 2008/2009]. Portanto, estamos voltando para uma dinâmica [de atividade econômica] parecida com aquela que havia antes da crise, mas com a taxa de desemprego muito menor.
Mas a redução da demanda não terá reflexo sobre o mercado de trabalho?
Não, porque estamos falando de aumento e não de queda de demanda. Estamos com pleno emprego em vários setores e regiões. Em Ribeirão Preto (SP), estão requalificando boia-fria para trabalhar na construção civil porque não há mais oferta de mão de obra. Nós criamos 2,5 milhões de empregos formais no ano passado. Esse é um muro que, quando se bate nele, é muito difícil superar.
Não há um exército de reserva para preencher?
O grande exército de reserva que o Brasil usou nos últimos 18 meses foi a importação.
Não tem espaço para continuar fazendo isso?
Tem, mas o limite dessa força é finito. Se a economia americana realmente crescer às taxas que os mais otimistas lá fora acham, esse canal mais barato começa a diminuir. Quando você vê o governo brasileiro lutando pelo menos para estabilizar a taxa de câmbio, esse canal das importações, embora vá ser sempre deflacionário, vai diminuir de importância do ponto de vista de controle da inflação. E se olharmos o canal interno, os 30% de non-tradables [na composição da inflação], já estão com 7,5% de inflação. Em algum momento do ano passado esse canal estava em seis e pouco e o canal externo era zero, e aí tínhamos 4%, 4,5% de inflação.
Não é provável que esse quadro se repita?
O problema, este ano, é que o que era 6% em 2010 já virou mais de 7% e o canal externo, que era zero, já está em 2%, talvez indo para 2,5%, 3%. E os preços administrados estão subindo. Essa composição, que foi extremamente favorável quando o canal externo era zero, hoje já perdeu um pouco da sua força. Estamos tendo uma aceleração muito forte dos preços dos non-tradables.
O Ministério da Fazenda alega que o país está enfrentando um choque de preços de alimentos e commodities e que, portanto, é algo passageiro. O sr. concorda?
Não é verdade. As commodities, de fato, têm um efeito na inflação. Aparentemente, vão subir ainda mais este ano. Este é um canal de pressão nos preços aqui dentro, que fica mais sério ainda com a taxa de câmbio estabilizada. Acho que hoje nem o [Guido] Mantega quer desvalorizar o real. O máximo que eles [o governo] estão querendo é estabilizar a cotação do dólar em R$ 1,70. Suponhamos que o câmbio se estabilize nesse patamar. Tudo bem, mas há um outro canal de inflação aqui dentro, puxado pelos non-tradables.
E por que esse canal está tão forte?
Primeiro, há um efeito de renda no Brasil. Sabemos que, à medida que sobe a renda de uma sociedade, a demanda por serviços aumenta mais que a de outros itens. Além disso, temos essa rigidez da oferta. Nos últimos três ou quatro anos, a inflação vem subindo no país de forma monotônica. É mais complicado reduzir a inflação agora porque, de 2008 para cá, aumentou o número de consumidores e a renda, e a parte de oferta está ali, no pleno emprego. É uma situação de tensão. A inflação de non-tradables nunca caiu abaixo de 5%, 5,5% nos últimos anos. Fazer uma média com os preços de tradables, que estavam até negativos, dava uma ilusão de que não tínhamos um problema de inflação no Brasil. Na hora em que começou a diminuir a margem de manobra dos tradables, a inflação média só sobe.
Na reunião ministerial, o ministro Mantega disse que a taxa de investimento vai saltar de 19% para 24% do PIB em quatro anos. Isso é factível?
Mesmo que seja, são quatro anos com pressão inflacionária. O Mantega talvez tivesse que rever um pouco os seus livros de economia. Nós estamos numa armadilha clássica.
Qual?
Os investimentos são bastante grandes, mas, enquanto eles não amadurecem, eles são demanda, como é a demanda de consumo das famílias. Isso é muito característico da esquerda.
O quê?
Não olhar as coisas no tempo. O investimento durante muito tempo é demanda, isto é, nós temos pressão sobre a capacidade produtiva instalada antes de agregar qualquer coisa. Se olharmos as hidrelétricas, a Petrobras, o próprio setor privado, vemos um aumento forte do investimento, mas sem que esse incremento represente neste ano ou mesmo no ano seguinte uma elevação da oferta. Então, o investimento pressiona preço.
Com a melhora da economia mundial, a tendência é ter contribuição adversa do câmbio no segundo semestre?
A economia americana, que responde por 35% da economia do mundo, ainda está contraída. Está começando a se expandir, mas há segmentos com atividade muito baixa. O que estamos vendo agora é que isso está começando a mudar. Os muitos otimistas acreditam que os EUA crescem 3,5% e 4% este ano, 4,5% no ano que vem. Com isso, eles vão começar a ocupar um espaço da demanda do mundo que estava solto e se refletia em preços cadentes numa série de produtos. Para o mundo emergente, que saiu da crise de 2008/2009 crescendo de forma muito mais rápida, isso foi extremamente favorável do ponto de vista de oferta e controle da inflação. Ocorre que isso vai reverter e o problema chegará ao Brasil.
Em que setores?
Na siderurgia, por exemplo. O preço do aço é formado hoje no Brasil pela importação do produto. As empresas aqui tiveram que se adaptar, baixar preços, para poder competir. Esse processo ajudou a segurar os preços internamente. Essa folga de oferta mundial vai diminuir se a economia americana realmente caminhar na direção da recuperação. E a regra de hoje da economia mundial é cada um cuidar da sua casa. A Índia, por exemplo, adotou uma restrição para a exportação de minério de ferro. Por enquanto, essa restrição é favorável ao Brasil porque aumenta o preço do minério, do qual somos os maiores produtores. Mas já está havendo um certo combate individualizado de cada país para proteger a produção interna. Isso, claramente, vai reduzindo essa massa de exportações que, durante muito tempo, ficou aí pelo mundo. O petróleo, por exemplo, já está recompondo o nível de preço.
Se esse cenário de recuperação mundial se confirmar, de que forma ele prejudica o Brasil?
O Brasil deve ser apanhado numa situação muito difícil, em que há uma inflação de demanda. As importações, junto com a valorização do câmbio, somavam um efeito contrário, de maneira que, na média, a inflação ficava nos 4,5%, 5%. De dois anos para cá, há um aumento da pressão inflacionária no segmento interno porque a demanda continua aumentando e a oferta está restrita, e você deixa de ter o efeito deflacionário da parte externa, porque lá fora a sobra de produtos tradables está diminuindo. Como ainda temos uma série de preços indexados, você compõe um cenário de inflação complicado.
E como enfrentar esse quadro?
O Banco Central teria que dizer que a coisa está complicada e que vai tentar trazer a inflação de novo para a meta em dois anos. Isso já daria um espaço maior de trabalho. Além disso, é preciso descomprimir um pouco a demanda interna, porque ela está combinando um consumo muito elevado com um investimento também muito alto.
E como o governo ajudaria a reduzir a demanda interna?
Reduzindo os gastos correntes.
O corte de despesa, estimado entre R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões, seria suficiente?
Não. É brincadeira... Vejam os restos a pagar [cerca de R$ 137 bilhões] que o Lula deixou. Não haverá corte algum na demanda do governo.
O sr. diria, então, que este é o momento da história do real mais dramático, do ponto de vista da inflação?
Não. Eu diria que é um dos momentos mais ricos. É o de menor desemprego que já tivemos, e esse é o melhor indicador de sucesso de um plano econômico. O desemprego baixo combina, talvez da forma mais harmônica, a questão econômica com a social, de bem-estar da sociedade. Então, estamos num momento absolutamente inédito. Agora, é aquela história: eu abro um champanhe para comemorar, mas não bebo porque preciso estar lúcido para enfrentar, a partir daí, os problemas que isso traz. Sabemos que um país que está praticamente a pleno emprego vai ter que superar alguns problemas. É uma questão complexa porque, se você fizer a hierarquização do emprego por qualificação, verá que, onde há maior demanda hoje por trabalhadores, o desemprego é zero. O desemprego é maior onde não há qualificação, e essa é uma mão de obra que não está sendo demandada. O que mais me assusta é que, no governo, vem um ministro e faz a elegia do baixo desemprego e vem um outro e diz que vamos crescer 5,5% por ano nos próximos quatro anos. Essas duas previsões não cabem juntas.
O sr. não acredita que o governo vá fazer um ajuste fiscal para diminuir a demanda. Então, que riscos o país corre?
É preciso reconhecer que estamos vivendo uma situação que é muita rica, mas é complexa. É rica porque tudo parece que dá certo. Nessa explosão de preços de commodities, o Brasil é um dos países que mais se beneficiam. Por outro lado, estamos vivendo a armadilha, porque não temos um sistema de oferta capaz de lidar com a continuidade desse crescimento. Essa estrutura de oferta vai ser corrigida, pelo menos na parte de oferta de produtos, porque está tendo investimento. Tem investimento necessário sendo feito em algumas áreas importantes para que a gente tenha, em três ou quatro anos, uma oferta capaz de acomodar uma demanda crescente, como a gente vem tendo e vai continuar tendo. Mas há uma defasagem entre investimento com aumento da demanda e investimento com aumento da oferta.
Uma alternativa seria aceitar uma inflação mais alta nesse período?
Uma alternativa é reduzir o gasto do governo. Além disso, há restrições físicas em áreas importantes que poderiam ser tratadas de uma forma mais eficiente se o setor privado pudesse fazer esses investimentos.
Por exemplo?
Energia elétrica, aeroportos, portos. Temos hoje uma situação interessante porque há uma racionalidade econômica grande no país, um volume significativo de investimentos. Temos o capital privado com vontade de entrar, mas tem o governo que não deixa que isso aconteça.
O setor elétrico não é diferente?
Não. Estão fazendo lá uma coisa meio torta. Há dinheiro do BNDES e a presença de estatais nos investimentos. Esses investimentos anunciados não são o estado da arte, são ainda o governo querendo manter o controle dessa área.
O sr. vê alguma mudança com a posse do novo governo?
Vejo. A primeira é que ela [a presidente Dilma] fala muito menos que o Lula. Isso, em termos de qualidade de vida dos brasileiros, é um avanço tremendo... O governo do Lula, na média, não foi ruim, não. O problema é que a Dilma herdou uma situação que o Lula nunca teve. É uma situação de pressão sobre a capacidade produtiva, a infraestrutura, o mercado de trabalho. É uma realidade nova. Era hora de sentar e falar "olha aqui, nós estamos num quadro diferente daquele que aconteceu até agora. O que precisamos fazer? Ganhar um pouco de tempo".
Fazendo o quê?
Reduzindo alguns estímulos, o governo se retirando de alguns programas, para fazer essa acomodação. Precisa tornar as regras de concessão [de estradas e de outros setores] mais realistas. A concessão da Fernão Dias [que liga Belo Horizonte a São Paulo], por exemplo, é um modelo soviético. É um custo tão baixo para os usuários que a empresa concessionária até consegue sobreviver com isso, mas a qualidade da estrada é baixa, compatível com a tarifa cobrada.
Para reverter esse quadro inflacionário, o sr. estima que o BC precisará aumentar em quanto a taxa de juros?
Se o governo não descomprimir a demanda do lado do gasto público, 400 pontos [4 pontos percentuais] no mínimo. Tipicamente, um governo que sabe o que faz, especialmente se está no começo do mandato, segura o gasto agora para permitir que o setor privado não seja tão agredido pela inflação como vai ser. Não me parece que é isso que vai acontecer. O ministro da Fazenda não tem capacidade de entender, no espaço de tempo, as restrições existentes, o que, aliás, não é culpa dele, mas da esquerda no mundo todo. Os problemas aparecem da incapacidade de moderar no tempo as demandas, que são legítimas, mas não podem ser atendidas de uma vez só. O governo não tem uma cabeça pensante capaz de projetar para quatro anos uma política econômica eficiente. Essa política ainda é uma colcha de retalhos. Isso funcionou no governo Lula porque havia espaço para tudo. Hoje, não tem mais. Eu tenho medo de que cheguemos daqui a quatro, cinco meses com um quadro de inflação muito mais difícil que o atual. Tenho simpatia pela presidente pela forma como ela está se comportando, mas ela está herdando um rabo de foguete.
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"Pleno emprego dificulta controle da inflação". Entrevista com Luiz Carlos Mendonça de Barros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU