Por: André | 04 Abril 2014
Em plena crise internacional ucraniana, o teólogo ortodoxo francês Antoine Arjakovsky, diretor de pesquisa no Colégio dos Bernardinos, especialista em ortodoxia, analisa os desafios para as Igrejas ortodoxas na Ucrânia e na região.
Fonte: http://bit.ly/1hnooAz |
A entrevista é de Marie-Lucile Kubacki e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 19-03-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Qual é o impacto da situação de crise na Ucrânia sobre a relação entre as Igrejas?
Por um lado, as Igrejas ortodoxas ucranianas (os Patriarcados de Moscou e de Kiev), que resistiram juntas durante três meses, queriam ir mais longe ao propor a questão da reunificação, separadas desde 1991. O Patriarca Filarete fez anúncios e houve um sínodo do Patriarcado de Kiev. Por outro lado, rapidamente, o Patriarca Cirilo de Moscou, que não quer que a Igreja ucraniana sob sua jurisdição se reconcilie com o Patriarcado de Kiev, trocou a liderança da Igreja ortodoxa ucraniana. Em dois de março, substituiu Vladimir Sobodam por Onufri de Tcharnivtsi. O metropolita Onufri é próximo de Cirilo, pró-moscovita. Alguns gostaram, embora seja um bispo ucraniano, ao invés de russo. Com efeito, em dezembro passado, o líder da Igreja ortodoxa na Bielorússia, o metropolita Filarete (que não deve ser confundido com o Filarete de Kiev) não foi substituído por um bispo ortodoxo da Bielorússia, mas por um próximo a Cirilo, um bispo russo. Os ucranianos temem que Cirilo faça a mesma coisa e nomes como o do metropolita Hilarion Alfeyev, número dois do Patriarcado de Moscou (PM), começam a circular.
Por que o Patriarca Cirilo escolheu nomear um bispo para a Ucrânia?
Ele entendeu que o que está acontecendo na Ucrânia é um momento de reafirmação do Estado Nação e, portanto, da identidade ucraniana. Ele teme perder sua autoridade sobre a parte da Igreja ortodoxa ucraniana que permaneceu fiel a Moscou em 1991. Isso teve o efeito de quebrar a dinâmica da reconciliação. De fato, quando houve a invasão da Crimeia pelos russos, uma declaração condenando a operação foi imediatamente assinada pelos responsáveis das Igrejas, como o Patriarca Filarete, do Patriarcado de Kiev, e Sviatoslav Schevchuk, arcebispo maior da Igreja greco-católica. Mas o novo chefe da Igreja ortodoxa ucraniana (PM) se absteve. Assistimos, pois, hoje, a uma retomada do controle por Patriarca Cirilo.
Esta retomada do controle é aceita pelos ortodoxos ucranianos?
Através de mensagens eletrônicas que eu recebi, observo que há cada vez mais pessoas chocadas e escandalizadas na Igreja ortodoxa ucraniana (PM) com todos os discursos do Patriarca de Moscou. Eles vivem isso como uma tentativa com vistas a anexar religiosamente a Ucrânia, na mesma medida que Putin procura anexar politicamente a Crimeia e inclusive a Ucrânia oriental. Mas, da mesma maneira que Putin está para perder a Ucrânia ao provocar a união de todos contra ele, o Patriarca Cirilo está prestes a perder a Igreja ortodoxa ucraniana, que congrega cerca de 12 a 13 milhões de fiéis. No futuro, isso poderá ter repercussões muito importantes sobre a legitimidade de Cirilo no Patriarcado de Moscou. Há cada vez mais padres, bispos, leigos mobilizados. Durante a invasão da Crimeia, os fiéis esperavam o apoio do Patriarca de Moscou. Em vez disso, ele os decepcionou apoiando Putin. Quando Cirilo assistiu às manobras militares em Sebastopol com o presidente Putin, em agosto passado, observei pela primeira vez na Ucrânia um aumento do anticlericalismo. Nos últimos 20 anos, os intelectuais viam com bons olhos o fato de que a Igreja gozava de uma confiança maior do que os partidos políticos e a mídia. Mas esta união da cruz com a espada provocou manifestações em Kiev. Com esse apoio à anexação da Crimeia, perdeu todo crédito entre uma grande parte da população cristã ortodoxa ucraniana.
Os ortodoxos da Igreja ucraniana dependentes do Patriarcado de Moscou poderão se aproximar do Patriarcado de Kiev?
Absolutamente, este é o risco que pode ocorrer. Quando o Patriarca Filarete propôs a reconciliação entre as duas Igrejas, criou uma comissão. Nessa comissão há representantes do Patriarcado de Kiev e da Igreja ortodoxa ucraniana. Certamente, a posição dos membros desta comissão será importante, mas o peso da conjuntura política também será. Além da posição do Patriarca Filarete, o anúncio do Concílio Pan-ortodoxo para 2016 traz para o primeiro plano um dos temas mais espinhosos nas Igrejas ortodoxas: a questão da autocefalia. Como pode a Igreja ortodoxa reconhecer o surgimento de uma nova Igreja capaz de escolher sua própria liderança? Se a questão é tão delicada a ponto de antecipar a agenda do futuro concílio em 2016, é porque a Igreja da Ucrânia deveria conseguir sua autocefalia.
Por quê?
As razões são múltiplas. Ela é muito antiga. Remonta a 988 e ela tem suficientemente santos, paróquias, bispos e maturidade para nomear seu próprio líder. Moscou simplesmente não quer. E é porque Moscou não quer reconhecer esta Igreja ortodoxa da Ucrânia como autocéfala que em 1991 criou-se uma Igreja dissidente, o Patriarcado de Kiev. Ora, após decisões da comissão pré-conciliar, para poder se proclamar autocéfala uma Igreja deve ser reconhecida pela Igreja mãe, pelo Patriarca de Constantinopla que tem a primazia, e por todas as outras Igrejas locais... O que é impossível. É ainda mais impossível na Ucrânia, que, quando se fala de Igreja mãe, os ucranianos pensam na Igreja de Constantinopla e não no Patriarcado de Moscou. A Rússia invadiu a Ucrânia oriental apenas no século XVII. E o Patriarcado de Constantinopla nunca voltou ao fato de que a jurisdição de Constantinopla se estende sobre a Ucrânia em suas fronteiras de 1660. Mas a regra que enquadra a proclamação da autocefalia foi recentemente amarrada em Constantinopla por ocasião da sinaxe, o que permite compreender porque Cirilo quis acelerar a convocação do Concílio.
Esta regra tem fundamentos eclesiológicos?
Não, mas ela é eclesiologicamente defensável. O Patriarca de Kiev refere-se justamente ao cânon 34 dos Apóstolos, do século IV, segundo o qual é preciso que cada bispo reconheça localmente quem, numa região, é o primeiro. Por outro lado, esse “primado”, o protos, não deve fazer nada sem antes consultar os outros membros do seu episcopado. Uma vez que o protos age de maneira sinodal, ele ganha progressivamente o reconhecimento das outras Igrejas ortodoxas. Às regras estabelecidas no século XIX, defendidas entre outros pelo Patriarcado de Moscou, o Patriarca Filarete de Kiev opõe o cânon dos Apóstolos.
O Patriarca Filarete gostaria de estar à frente da Igreja autocéfala, se fosse proclamada?
Não. Ele disse que não era o candidato e deu a entender que se o protos desta nova Igreja ucraniana autocéfala fosse o representante da Igreja ortodoxa ucraniana, atualmente sob o domínio do Patriarcado de Moscou, ele poderia aceitá-lo. É a razão pela qual a situação está extremamente complicada para Cirilo e o Patriarcado de Moscou. O Patriarca Filarete quer avançar sobre esta questão da unidade e não podemos acusá-lo de querer ser o chefe desta futura Igreja local.
Que consequências esta situação eclesial poderá ter sobre o Concílio?
Em primeiro lugar, penso que o Concílio vai acontecer. As Igrejas querem seguir em frente e as pessoas estão prontas para avançar. Mas o que mais me chocou na sinaxe de Istambul é que votaram por um regulamento de voto por unanimidade que amarra tudo. Os bispos não terão liberdade de voto quando o voto for por Igreja, e cada Igreja terá o direito de veto. O risco é que sejam aprovados apenas os consensos antigos e muitas vezes equivocados. A autocefalia e a data da Páscoa não estão resolvidos, por exemplo. O mesmo vale para as questões sociais. Continuamos a falar dos problemas do apartheid segundo o consenso de 1986... É datado. Espero que se produza o que aconteceu no Vaticano II, em outubro de 1962. Também era uma época muito grave, em plena crise dos foguetes de Cuba, e o Espírito soprou. A agenda foi rejeitada, apelou-se aos leigos, e um novo debate e uma nova regulamentação apareceram.
Qual é o impacto da ascensão dos nacionalismos e da radicalização do Patriarcado de Moscou sobre as relações ecumênicas entre católicos e ortodoxos russos?
Em 26 de dezembro, o Patriarca Cirilo condenou as manifestações da Maidan e fez o Santo Sínodo assinar um texto sobre a primazia na Igreja. Esse texto questiona o primado de Constantinopla no mundo ortodoxo e o primado de Roma na Igreja. Ele dá a entender ao mundo cristão que o poder do bispo é igual à autoridade de Deus, que a autoridade do bispo de Roma, sucessor de Pedro, não tem nenhum fundamento evangélico e que a autoridade de Constantinopla é apenas formal na Igreja ortodoxa. Isso anula 50 anos de ecumenismo.
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“O Patriarca Cirilo está prestes a perder a Igreja ortodoxa ucraniana”. Entrevista com Antoine Arjakovsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU