A Assistência Social não pode ficar à mercê do “primeiro-damismo”

Fonte: Wallpaperflare

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Por: Isabelle Bastos Ferreira | 27 Abril 2023

“Ao olhar para a fome, é importante lembrar que cada número absoluto representa a vida de uma pessoa. E que mudanças em percentuais de insegurança alimentar – ainda que pareçam pequenas – significam milhões de pessoas convivendo cotidianamente com a fome (Rede PENSSAN, 2022).

“Práticas assistencialistas, feitas com dinheiro público, por agentes públicos, são preocupantes e impactam diretamente a Política de Assistência Social, que já traz o ranço do “primeiro-damismo” com a ideia de doação/caridade. Não existe doação, quando se fala de direito público. O que existe é garantia de direitos”. Essa foi uma das considerações de Neiva Silvana Hack, no dia 18 de abril, ao abordar o tema Análise de conjuntura do Brasil com ênfase nas desigualdades, no primeiro encontro da série de debates [presencial] Questões SUAS no enfrentamento das vulnerabilidades sociais.

Participantes da Atividade: Análise de conjuntura do Brasil com ênfase nas desigualdades

Neiva Silvana Hack é assistente social, possui especialização em Gestão Social e em Formação Docente para EaD e é mestra em Tecnologia em Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do ParanáPUCPR. Atualmente, é professora do curso de Serviço Social da UNINTER e coordena a Linha de Pesquisa Políticas Sociais e Direitos Humanos. É autora dos livros Política Pública de saúde no Brasil: história, gestão e relação com a profissão do serviço social e Direito à renda e à alimentação: programas, serviços e benefícios existentes no Brasil nas décadas de 2000 e 2010, dentre outras produções nas áreas de políticas públicas e projetos sociais.

A iniciativa do CEPAT contou com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas UnisinosIHU, Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de AlmeidaOLMA, Departamento de Ciências Sociais da UEM, Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR e Curso de Serviço Social da PUCPR.

Neiva Silvana Hack organizou a exposição sobre a temática em dois momentos: (1) apresentação de indicadores oficiais e (2) análise de cenário e reflexões sobre a Política de Assistência Social.

1. Apresentação de indicadores oficiais

Em 2022, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e NutricionalRede PENSSAN publicou o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil – II VIGISAN, apontando que atualmente a fome atinge 33,1 milhões de pessoas.

O II VIGISAN demonstra que 58,7% da população brasileira convive com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave), o que significa que o país está com os níveis de insegurança alimentar equivalente ao dos anos 1990. A pesquisa aprofunda os impactos nas regiões Norte e Nordeste, abordando a realidade das áreas rurais e a relação entre insegurança alimentar e raça, gênero, emprego e educação, ampliando assim a discussão sobre o direito à renda.

Além dos dados do II VIGISAN, Neiva Silvana Hack também trabalhou com os indicadores sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e EstatísticaIBGE e com os dados do segundo relatório A distância que nos une da OXFAM Brasil.

Sobre os indicadores sociais do IBGE, Hack apresentou os dados referentes à estimativa da população (213.317.639 de pessoas), desemprego (7,9%), escolarização (99,7%), analfabetismo (6,6,%), fecundidade (1,76 filhos por mulher) e mortalidade infantil (11,20 óbitos a cada mil nascidos vivos) e fez uma reflexão sobre os dados oficiais e a realidade brasileira como, por exemplo, os dados referente ao desemprego, em que ao mesmo tempo em que se tem um dado de somente 7,9% de desemprego, tem-se também o processo de uberização, sucateamento da legislação trabalhista e aumento da precarização e exploração do trabalho. Isto demonstra a necessidade de refletir e questionar a maneira como se dá a produção de dados no Brasil, tanto na metodologia, como na intencionalidade e construção de narrativa.

Em relação aos dados do segundo relatório A distância que nos une da OXFAM Brasil, Hack trabalhou com os dados referentes à renda, demonstrando que o Brasil piorou no enfrentamento das desigualdades:

Dados do segundo relatório "A distância que nos une" da OXFAM Brasil

A partir da análise crítica dos dados e indicadores, Hack demonstrou que já é possível enxergar as desigualdades e as lacunas nas informações oficiais sobre a temática, apontando para a necessidade de “olhar para um Brasil que não é pequeno” e que possui diversas especificidades.

2. Análise de cenário e reflexões sobre a Política de Assistência Social

Para fazer a análise de cenário e reflexões sobre a Política de Assistência Social, Hack utilizou uma metodologia de planejamento estratégico, apontando oportunidades, ameaças, forças e fraquezas, sendo que as oportunidades e ameaças se referem a elementos externos à Política de Assistência Social e as forças e fraquezas a elementos internos.

Em relação às oportunidades (elemento externo), Hack destacou

(i) a Gestão Federal 2023-2026, alinhada com a defesa de direitos e políticas públicas; e

(ii) a retomada econômica e das diversas interações “pós-pandemia”.

Para Hack, o cenário da Gestão Federal e da composição dos ministérios trazem várias possibilidades para a ampliação das políticas sociais públicas e ainda que se tenha muitas considerações a serem feitas sobre o atual Governo, a construção de narrativas em prol da defesa de direitos tem sido fundamental para a reconstrução e ampliação das políticas públicas e da defesa da democracia. Além disso, Hack reforçou que a pandemia ainda não acabou, mas que a retomada das interações sociais de maneira presencial tem ampliado as possibilidades de organização coletiva.

Em relação às ameaças (elemento externo), Hack elencou:

(i) o cenário econômico mundial, com o avanço do neoliberalismo;

(ii) o avanço da extrema-direita, com a legitimação de lideranças que promovem desigualdades;

(iii) o avanço tecnológico, com bruscas mudanças nas relações sociais e trabalhistas;

(iv) e a reprodução de culturas assistencialistas e políticas “economicistas”.

Mesmo com uma Gestão Federal à esquerda, a extrema-direita tem avançado cada vez mais em suas pautas econômicas, políticas, sociais e ambientais, no âmbito Federal, Estadual e Municipal, disseminando Fake News, implementando políticas de austeridade e reforçando discursos de ódio, a exemplo da fala transfóbica de Nikolas Ferreira, deputado federal (PL-MG), no Congresso Nacional, no dia Internacional das Mulheres.

Outro ponto de destaque é a permanência de práticas assistencialistas. A Assistência Social está prevista na Constituição Federal de 1988 como um direito social e de responsabilidade do Estado, inserida dentro do tripé da Seguridade Social e precisa ser gerida, operacionalizada e avaliada como tal, não podendo estar à mercê do chamado “primeiro-damismo”.

Quanto aos elementos internos, Hack identificou as seguintes forças:

(i) a capilaridade das redes socioassistenciais;

(ii) as estruturas e equipes presentes em todo território brasileiro;

(iii) a capacidade de articulação de rede intersetorial;

(iv) o posicionamento em defesa dos direitos;

(v) o Sistema Único de Assistência SocialSUAS legitimado na Lei Orgânica de Assistência SocialLOAS (Lei n. 8.742/93); e

(vi) o acúmulo de capacitações, experiências e reflexões nas equipes técnicas e de gestores do SUAS.

Ainda que a Política de Assistência Social ao longo dos anos tenha sido precarizada e que as estruturas e a quantidade de profissionais do SUAS ainda sejam insuficientes para atender todo o território, Hack relembra que assim como as políticas de saúde e educação, o SUAS está em todo território brasileiro e que a sua legitimação por meio da LOAS é o que tem garantido a sua permanência. É a partir da LOAS que se compreende a assistência social não como assistencialismo, mas como política pública que tem como objetivos a proteção social, a vigilância socioassistencial e a defesa de direitos.

Para Hack, a Política de Assistência Social é a política social que mais tem capacidade de articulação com outras políticas públicas e que entende como deve ser feito um trabalho em rede, justamente por atuar no âmbito da proteção social. Essa capacidade de articulação se dá principalmente pelo acúmulo técnico, teórico e político das/os profissionais que atuam no SUAS. A área da assistência social é uma das que mais possui espaços de formação e capacitação continuada para profissionais, o que demonstra que ainda que se identifique nos últimos anos uma tentativa de desmonte por parte da extrema-direita, existe também luta e organização política em prol da defesa do SUAS.

Em relação às fraquezas (elemento interno), Hack apontou:

(i) a insuficiência nas metodologias de promoção da autonomia;

(ii) a baixa participação política autônoma dos usuários;

(iii) a fragilidade nas estratégias de emancipação dos usuários;

(iv) a reprodução de práticas assistencialistas; e a

(v) pouca articulação com as políticas do trabalho, emprego e previdência social. As fraquezas identificadas por Hack estão muito relacionadas com a estrutura das políticas sociais no Brasil e com a conjuntura atual.

Ainda que se tenha uma construção histórica de defesa do SUAS enquanto política pública, são identificadas muitas práticas assistencialistas relacionadas ao “primeiro-damismo”, em que os equipamentos da política de assistência se limitam a atendimentos pontuais e emergenciais, deixando de lado as ações voltadas para a promoção da autonomia do usuário. Hack destacou que é fundamental construir um trabalho com o usuário que ao mesmo tempo em que se atenda as demandas emergenciais como, por exemplo, a alimentação, por meio de entrega de cesta básica, seja realizada também um trabalho de formação político-cidadã, compreendendo o momento do atendimento a partir da perspectiva da garantia de direitos e da educação popular.

Por fim, a partir dessas fraquezas, Hack finalizou sua fala fazendo algumas reflexões em favor das alternativas e estratégias de atuação no SUAS, destacando cinco possibilidades:

(i) capacitação, metodologias e estratégias de promoção da autonomia;

(ii) fomento da participação das/os profissionais e dos usuários do SUAS no âmbito das políticas públicas;

(iii) revisão de metodologias de atendimento e promoção de projetos que objetivem a emancipação; e

(iv) avanço na legislação de proteção social.

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