Por: Jonas Jorge da Silva | 30 Março 2021
“A crise da saúde desencadeou uma engrenagem de crises que se concatenaram. Essa policrise ou megacrise se estende do existencial ao político, passando pela economia, do individual ao planetário, passando pelas famílias, regiões, Estados. Em suma, um minúsculo vírus em um vilarejo ignorado na China desencadeou a perturbação de um mundo”, avaliou Edgar Morin, em entrevista ao jornal Le Monde, em 20 de abril de 2020.
A marcha desta policrise atravessa os nossos modos de ser, de conviver, de produzir, de consumir, enfim, de estar no mundo, desafiando todos a repensar os paradigmas que nortearam a modernidade, que mais separou, compartimentou e fragmentou, que relacionou, incluiu e integrou.
“Nossa civilização separa mais do que liga. Estamos em déficit de religação e esta se tornou uma necessidade vital”, já havia nos alertado o pensador francês, em O Método VI: Ética.
Para perscrutar algumas das dimensões desta crise estrutural e sistêmica, no último sábado, dia 27 de março, o CEPAT iniciou uma série de debates intitulada Crise sistêmica, complexidade e desafios planetários, com o objetivo de aprofundar e debater problemáticas cruciais para o planeta, em um esforço de evidenciá-las, relacioná-las e repensá-las e, na medida do possível, descortinar novos sentidos, novos modos de estar e ser no mundo.
A iniciativa desta série de debates conta com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB, Comunidades de Vida Cristã - CVX, Observatório Nacional Luciano Mendes de Almeida – OLMA e Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá.
Pensamento complexo: a vida da vida foi o tema de abertura. Izabel Cristina Petraglia, da Universidade Metodista de São Paulo, com longa trajetória dedicada ao estudo do pensamento complexo, apresentou as ideias centrais de O Método II: A vida da Vida, em diálogo com outras obras da trajetória intelectual de Edgar Morin.
“É um tema que tenho trabalhado ao longo de minha vida como pesquisadora. É um tema muito caro, especialmente neste momento que estamos vivendo”, destacou no início de sua exposição. E fazendo menção às vítimas da atual crise sanitária, questionou: “Qual é a relevância de se falar em pensamento complexo, de se falar em educação, em um momento em que contamos os nossos mortos?”.
De fato, o coronavírus escancarou nossas incertezas e nada melhor do que buscar nas contribuições de Edgar Morin, um humanista planetário, chaves de possíveis leituras acerca dessa realidade, já que sempre buscou acompanhar o desenvolvimento do que conforma a vida, com suas problemáticas, imprevisibilidades e possibilidades.
Professora Izabel Cristina Petraglia, da Universidade Metodista de São Paulo e Professor Cesar Bueno, do Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR.
Para exemplificar o comprometimento do pensador francês com o humanismo, Petraglia recordou uma de suas inferências: “É preciso, ainda que seja um pouco tarde, pensar a vida, pensando em nossas vidas”.
O Método II: a vida da Vida, publicado em francês em 1980, teve a sua redação entre os anos 1974 e 1975. Nesta obra, o pensador francês faz um gigantesco esforço para sistematizar e refletir sobre as contribuições das ciências, especialmente da biologia, na interface com a filosofia, para um melhor entendimento da vida em seus diversos aspectos. Nas palavras de Petraglia, “Morin voa e pousa sobre diversas áreas do conhecimento”. Entre essas pousadas, faz uma grande parada na biologia.
Como agente do pensamento complexo, o pensador francês é um intelectual transdisciplinar e indisciplinado, que se rebela diante das falsas pretensões de verdades acabadas e esquemas prontos. Para ele, “a vida é um oceano à deriva” e as reflexões que dela procedem não estão fechadas em verdades eternas, sequer produzem caminhos seguros.
É preciso aprender a conviver com as incertezas, já que falsas certezas excluem o erro e a ilusão e não parece conveniente construir o conhecimento sobre “uma rocha de certeza”. “A minha pesquisa de Método parte, não da terra firme, mas do solo que desmorona”, constata Edgar Morin.
Petraglia ressaltou que Morin se dedica a buscar alternativas ao paradigma científico em crise. O Método II não almeja abarcar a vida e nem fazer uma síntese dela, mas alcançar um princípio do conhecimento que possa abarcar a vida e o conhecimento do conhecimento da vida. Resiste-se à tentação de encarcerar o real em algum sistema de pensamento e de classificação.
O pensamento complexo não separa, mas une e integra as relações necessárias e interdependentes entre todos os aspectos da vida, destacou Petraglia, recordando que a palavra complexus, em latim, significa o que é tecido junto. Portanto, busca respeitar a riqueza, o mistério e o caráter multidimensional do real.
Nesse sentido, para Morin a ecologia é a ciência das interações combinatórias-organizadoras entre os componentes dos ecossistemas. É a primeira ciência nova que rompe com os princípios do paradigma científico clássico, que isola os objetos de estudo de seus contextos, conforme destacou Izabel Petraglia.
Os operadores da complexidade mencionados por Morin são:
a) o dialógico, que considera a união de termos opostos e contraditórios como complementares (por exemplo, a vida e a morte);
b) o recursivo ou recorrente, com processos em circuitos: causa/efeito/causa;
c) o hologramático, que destaca o aparente paradoxo dos sistemas. A parte está no todo, assim como o todo está na parte. A figura do caleidoscópio ilustra bem esta forma de conceber o real.
Petraglia também citou algumas perspectivas chaves no pensamento de Morin, como a da ecologia da ação, ressaltando que por vezes a ação humana foge da sua vontade e entendimento, adquirindo um sentido diferente do que tinha inicialmente. Assim como, também, a ecologia das ideias, enfatizando que o ser humano possui ideias, mas que também as ideias possuem o ser humano (teorias, ideologias, mitos, deuses, etc.). Um livro é passível de muitas interpretações, de sentidos diferentes daquele que o autor pensou inicialmente, o que pode ser chamado de ecologia das obras.
Além de reconhecer que o ser vivo possui o instinto de salvaguardar a vida, Morin também recorda que ninguém se produz sem o meio, como também não é totalmente dependente dele. Só é possível a autonomia porque também existe a dependência.
Sendo assim, o indivíduo vivo é concebido a partir da junção de termos antagônicos. Sem perceber as relações mútuas e as influências recíprocas e complementares entre as partes e o todo complexo, a vida se torna ainda mais indecifrável.
É na relação de alteridade que o sujeito se percebe como tal, ou seja, quando é capaz de enxergar e reconhecer o outro e formar o nós. Neste ponto, Petraglia destacou o papel da consciência, do autoexame e da autocrítica. O sujeito, uno e múltiplo na compreensão de si, exercita a auto-eco-organização consciente.
Somente o ser humano, em sua subjetividade, pode pensar a si próprio, bem como suas ações e o modo como existe e é no mundo. Além disso, para Morin, indivíduo, sociedade e espécie são a trindade inseparável que forma a natureza humana.
Igor Borck, do CEPAT, Professora Izabel Cristina Petraglia, da Universidade Metodista de São Paulo e Jonas Jorge da Silva, do CEPAT.
Morin faz uma crítica ao pensamento hegemônico da sociedade moderna e, ao mesmo tempo, apresenta uma visão dialógica do desenvolvimento social e do progresso global. Segundo Petraglia, entre as polaridades presentes é possível destacar pontos positivos: maior distribuição de renda, ampliação do consumo, conforto, direitos humanos, da mulher, cura de doenças, geração de empregos, intercâmbios internacionais, etc., como também negativos: armas nucleares, diversos problemas ambientais, individualismo, conflitos étnico-religiosos, disjunção entre ciência e humanidades, fragmentação do conhecimento, etc.
Ao se ater ao prefixo “re”, Morin evidencia a capacidade do ser vivo em se renovar, regenerar, religar, etc. Chama a atenção para a importância da reforma do pensamento, da religação do pensamento racional-lógico-dedutivo e mítico-mágico-imaginário, em uma concepção transdisciplinar.
Para Morin, “tudo o que é novo deve incessantemente recomeçar-se, reconstruir-se, regenerar-se, e só pode fazê-lo inscrevendo-se no antigo, sem, no entanto, ser reabsorvido pela repetição do antigo”.
Fiel ao pensamento complexo, o pensador francês considera que a “a vida se apresenta sob caracteres tão diversos que nenhuma definição consegue abarcá-los e articulá-los em conjunto. Logo que queremos aprender a sua unidade, faz surgir noções que deveriam excluir-se umas às outras. É unidade física, e é diferente de todos os outros fenômenos físicos. É espécie e é indivíduo. É descontinuidade (nascimentos/existências/mortes) e é continuidade (ciclos, anéis, processos). É reprodução e é trocas”, escreveu em O Método II.
De pensamento aberto e interrogante, Morin não é um pensador de conclusões, mas de inconclusões, no sentido de que não temos e nem devemos nos arrogar ter a palavra final, ainda mais quando estamos refletindo a respeito da vida.
Segundo Petraglia, o pensador francês considera que a noção de vida deve ser reconhecida e refletida em sua realidade, complexidade, unidade e multiplicidade. Ela possui uma dimensão genética e outra fenomênica, uma dimensão individual e outra sociológica, e sempre uma dimensão ecológica.
Petraglia reconheceu o esforço de Edgar Morin em promover a conjugação da cultura científica com a cultura humanística, defendendo o cultivo de dois princípios éticos fundamentais: responsabilidade e solidariedade. E encerrou sua exposição com uma mensagem de esperança, citando o pensador francês: “Esperança não significa uma promessa. Esperança significa um caminho, uma possibilidade, um perigo”.
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Edgar Morin: “Pensar a vida, pensando em nossas vidas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU