Origens do RS: da tradição bélica romantizada ao romance social crítico. Entrevista especial com Luciana Murari

A literatura regionalista no Rio Grande do Sul está no cerne das construções identitárias em torno da imagem do gaúcho, ainda hoje objeto de profundas revisões e transformações

Arte: Alexandre Francisco | Fonte: Wikimedia Commons/Guilherme Litran

20 Setembro 2025

Se a história da literatura fosse contada como uma linha de sucessivas mudanças, o realismo é a corrente posterior ao romantismo e se caracteriza no Brasil como oposição a um certo culto da fantasia, da idealização, que são marcas do romantismo. Em nosso país, o movimento passa ter relevância a partir do fim do século XIX, em um período em que o naturalismo da biologia também dava as caras por aqui, de tal modo que parte da corrente realista da literatura gaúcha ficou conhecida como “realismo-naturalismo”.

“Esteticamente podemos definir a literatura regionalista gaúcha como um conjunto heterogêneo em termos estéticos, tendo assumido diversas linguagens: o convencionalismo romântico de Apolinário Porto Alegre, a inovação narrativa de Simões Lopes Neto, a prosa rebuscada de Alcides Maya, o realismo angustiante de Cyro Martins, o épico moderno de Érico Veríssimo”, descreve a professora e pesquisadora Luciana Murari em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Não à toa, a literatura ficcional está na base de uma imagem um tanto idealizada sobre a origem do Rio Grande do Sul, o que não é uma exclusividade do sul do Brasil. “Em linhas gerais, a literatura idealiza o passado, e adota um tom nostálgico ao evocar um paraíso perdido em que não existiam cercas que dividissem as estâncias e o trabalho era feito em comum, consistindo sobretudo no aprisionamento do gado sem dono disperso pelos campos, em uma sociedade igualitária em que patrões e peões participavam igualmente do trabalho coletivo. Essa seria a origem do espírito de liberdade e democracia que seriam atributos essenciais do gaúcho”, ressalta.

Talvez a principal característica da literatura seja a de que ele nunca conta uma história única, sendo também um terreno fértil para visões de todas as ordens. Foi nesse contexto que o romance Ruínas Vivas, de Alcides Maya, encontrou espaço para oferecer uma crítica social profunda e necessária no contexto da literatura regionalista. “Essa obra é não apenas uma forma de prenúncio do romance social no Rio Grande do Sul, mas também uma crítica amarga à tradição bélica do estado e à idealização do militarismo daí advinda. Ao interpretar o passado de guerras do estado como uma espécie de obsessão coletiva de defesa de sua honra e de sua superioridade em relação a outras sociedades, Maya acaba por esvaziar o sentido tradicional do orgulho gauchesco, associado à bravura militar, ao denunciar a violência como obstáculo à modernização e ao enfrentamento das questões sociais”, explica a entrevistada.

“A pobreza e a paralisia das forças produtivas eram a mais perfeita ilustração do quanto a pacificação do estado – em um contexto em que persistiam os embates políticos entre Republicanos e Maragatos – era fundamental para que a marginalização social, as precárias condições de vida e a falta de perspectiva entre os jovens pudessem ser em algum momento enfrentadas”, complementa.

Luciana Murari (Foto: PUCRS)

Luciana Murari é professora da Escola de Humanidades e do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Realizou sua formação acadêmica na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com doutorado em História Social na Universidade de São Paulo (USP). Autora dos livros Brasil: ficção geográfica: ciência e nacionalidade no país de Os sertões (2007) e Natureza e cultura no Brasil, 1870-1922 (2009), além de diversos artigos em revistas brasileiras e internacionais.

Confira a entrevista.

IHU – Como se caracteriza, do ponto de vista da literatura, o realismo e, mais especificamente o realismo regionalista gaúcho?

Luciana Murari – O realismo foi uma tendência literária que se difundiu para o Brasil sobretudo a partir da França, em oposição à idealização do mundo, ao culto da fantasia e da espiritualidade pela literatura romântica da primeira metade do século XIX. No Brasil, o realismo se difundiu a partir das últimas décadas daquele século, paralelamente ao naturalismo, de inclinações mais científicas e deterministas. Por isso, o movimento literário de reversão das tendências românticas ficou conhecido no país como realismo-naturalismo. Esse movimento assumiu, no Rio Grande do Sul, uma importância decisiva na criação de uma mitologia da identidade regional que, apesar de nunca ter renunciado inteiramente a uma certa idealização, inclinou-se também à busca de uma representação fidedigna da realidade social do pampa e ao desenvolvimento de relações de causa e efeito entre sociedade e natureza, tal como no modelo naturalista.

IHU – Em 1870, José de Alencar publicou o livro O gaúcho. Três anos mais tarde Apolinário Porto Alegre publica O vaqueano. Do que tratam essas obras e como elas retratam o gaúcho?

Luciana Murari – No caso do Rio Grande do Sul, o livro de José de Alencar foi o marco da formação de uma literatura regional inclinada à afirmação da identidade gauchesca, ainda que o autor não fosse sul-rio-grandense e não tivesse conhecimento in loco da realidade regional. O modelo que se consolida a partir de O Gaúcho acabará por se difundir dentro do estado nas décadas que se seguiram, inclusive sob a influência do realismo-naturalismo. O Vaqueano foi escrito com a intenção explícita de apresentar uma narrativa mais fidedigna à realidade local. Entretanto, o resultado não foi muito diferente daquele obtido por Alencar, em sua idealização da figura do gaúcho: um homem forte, em comunhão com a natureza do pampa, defensor da honra, da justiça e da liberdade, igualitário (e democrata) em sua essência, trabalhador incansável e guerreiro dotado de força física, resistência, heroísmo e patriotismo acima de tudo – em defesa do Rio Grande do Sul, mas também do Brasil. Esses temas já estavam presentes no romance de José de Alencar e tiveram continuidade daí em diante.

IHU – Como se caracteriza estética e ideologicamente o regionalismo gaúcho? Que obras e autores são exemplares neste sentido?

Luciana Murari – Esteticamente podemos definir a literatura regionalista gaúcha como um conjunto heterogêneo em termos estéticos, tendo assumido diversas linguagens: o convencionalismo romântico de Apolinário Porto Alegre, a inovação narrativa de Simões Lopes Neto, a prosa rebuscada de Alcides Maya, o realismo angustiante de Cyro Martins, o épico moderno de Érico Veríssimo.

O regionalismo gaúcho passa por diversas fases: as primeiras tentativas românticas, a afirmação do gênero na fase realista-naturalista, a expressão moderna e a visão contemporânea. É difícil escolher algumas poucas obras, mas cito: do romantismo, além de O Vaqueano, O Tropeiro, de Apolinário Porto Alegre. Da fase realista-naturalista, o autor mais importante é João Simões Lopes Neto, com seus Contos gauchescos e suas Lendas do Sul. Outro autor decisivo nesse contexto é Alcides Maya, sobretudo com seu romance Ruínas Vivas. Nos moldes do chamado “romance de 30”, Cyro Martins dá início a sua “Trilogia do gaúcho a pé” em 1934. Nessa linha deve também ser destacada a chamada “Trilogia da Campanha”, de Ivan Pedro de Martins, publicada a partir de 1944. O primeiro volume de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, publicado em 1949, retoma diversos temas regionais, em narrativas de elevado sentido histórico. Esses continuam a ser explorados contemporaneamente por autores como Luiz Antônio de Assis Brasil (A prole do corvo), Tabajara Ruas (Netto perde sua alma), José Antônio Severo (Os senhores da guerra), Mozart Pereira Soares (Alecrim e manjerona).

IHU – Como a paisagem e o tema da paisagem do Sul são elementos estéticos e descritivos importantes no contexto do que seria uma paisagem verbal da literatura regionalista gaúcha?

Luciana Murari – O tema da paisagem do pampa é um dos mais característicos da literatura regionalista do Rio Grande do Sul, em particular por causa da originalidade do ambiente de campos e coxilhas em relação ao restante do país, e das variadas metáforas que foram criadas a partir daí. Uma das principais é a que associa o campo à liberdade, à inexistência de obstáculos geográficos que teria acostumado o gaúcho à cavalgada sem freio. Outra ideia recorrente é a da paisagem como expressão visual capaz de induzir o sentimento de familiaridade com a terra natal. E, ainda, é importante observar que a paisagem gauchesca é descrita frequentemente como correlata à personalidade aberta, à honestidade, à espontaneidade do gaúcho, em sua ligação direta com a terra.

A paisagem está presente em vários momentos da literatura gauchesca, e tem diversas funções: criar uma atmosfera sentimental; induzir sentidos de pertencimento; estabelecer ideias de condicionamento do humano ao natural; demonstrar a indiferença da natureza em relação aos sentimentos humanos, no sentido naturalista; representar a memória e a longa duração histórica. Esses exemplos estão presentes em toda a prosa regionalista, havendo mesmo um livro, intitulado No pago – manchas pampeanas, de Clemenciano Barnasque, especialmente dedicado a descrever cenas gauchescas no cenário da Campanha.

IHU – Um dos relatos etnográficos mais antigos sobre o gaúcho data de 1883, precisamente no Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul, de João Cezimbra Jacques. O texto seria atualizado em 1912 com o título Assuntos do Rio Grande do Sul. Pode nos falar sobre as transformações na imagem do gaúcho do fim do século XIX às primeiras décadas do século XX?

Luciana Murari – Nesse livro, Cezimbra Jacques declara-se preocupado que, com a modernização produtiva e institucional do Rio Grande do Sul observada nas décadas anteriores, as tradições culturais criadas ao longo da história das estâncias de gado fossem perdidas. Caberia aos intelectuais regionais o papel de coletar esses costumes e instituir centros para sua manutenção e valorização entre as novas gerações, sobretudo entre os moradores das cidades. Esse foi o espírito da fundação, por ele, do Grêmio Gaúcho, instituição precursora dos atuais Centros de Tradições Gaúchas.

Na verdade, ao longo de todo século XIX são adotadas transformações tecnológicas que darão fim ao modelo tradicional das estâncias. Trata-se de uma busca por maior produtividade na produção de gado por meio da adoção de novos métodos de criação, assim como da busca de regularização da propriedade de terras, principalmente a partir de 1850. A introdução de novas raças de gado tem como marco a década de 1870, quando essas mudanças produtivas se aceleram. Em linhas gerais, a literatura idealiza o passado, e adota um tom nostálgico ao evocar um paraíso perdido em que não existiam cercas que dividissem as estâncias e o trabalho era feito em comum, consistindo sobretudo no aprisionamento do gado sem dono disperso pelos campos, em uma sociedade igualitária em que patrões e peões participavam igualmente do trabalho coletivo. Essa seria a origem do espírito de liberdade e democracia que seriam atributos essenciais do gaúcho.

IHU – Em que obras de literatura ficcional regionalista e em que temas essas marcas etnográficas aparecem?

Luciana Murari – A literatura regionalista, em diversos momentos, disputou espaços com a etnografia e o folclorismo, não apenas no Rio Grande do Sul e no Brasil. Esse aspecto etnográfico encontrou várias formas de manifestação, assumindo uma função de registro, por exemplo, de costumes e tradições, de práticas e modos de fazer, de criações culturais como a música e a dança, de aspectos linguísticos e dialetais, de tipos humanos supostamente representativos, de atividades como a prática de jogos e a narração de histórias nos espaços de sociabilidade. A literatura regionalista traz muitos exemplos da incorporação dessa forma de “observação social” mesclada à ficção e ao lirismo, com a reprodução de contos populares, versos, canções e glossários de termos regionais no interior dos textos ficcionais.

IHU – Como eventos bélicos passados estão no cerne de um certo “mito do gaúcho” ou “mito farroupilha”, como um aspecto essencial de nossa literatura regionalista? Até que ponto episódios históricos justificam essa imagem?

Luciana Murari – O fundo histórico é decisivo para a literatura regionalista, como o é para todos os produtos culturais voltados para a valorização de identidades sociais, também em âmbito nacional e local. A narrativa histórica tradicional é convertida em um relato das origens, muitas vezes míticas, de uma dada sociedade, tendendo a alimentar a promoção de eventos significativos, heróis a serem cultuados, produtos culturais representativos – como canções, poemas, hinos, bandeiras... A perspectiva bélica tem se mostrado decisiva para as narrativas nacionais e regionais, à medida que expressa o poder de unificação ou de conquista de territórios, na forma de discursos de autocelebração e, não raramente, da construção da imagem de inimigos tradicionais. Como um estado fronteiriço caracterizado por uma história de conflitos territoriais, e como o estado mais militarizado do país, o Rio Grande do Sul atrelou sua identidade a seu ciclo histórico de guerras, construindo um longo repertório narrativo em torno de eventos, personagens, lugares, símbolos. Certamente, isso abriu uma perspectiva original nos discursos sobre o estado no contexto nacional. Não é o caso de considerar esses mitos históricos como justificáveis ou não, porque a história assume um papel identitário essencial nas sociedades modernas, e isso se estende tanto às nações quanto às regiões (como o Rio Grande do Sul). A forma de narrar essa história e interpretá-la é que alimentará esses mitos.

IHU – Ruínas vivas, de Alcides Maya, parece romper com essa tradição bélica e coloca em pauta o romance social, jogando luz sobre aspectos sombrios da imagem do gaúcho. Faz sentido essa relação? Como esta obra se insere no contexto regionalista do RS?

Luciana Murari – Essa obra é não apenas uma forma de prenúncio do romance social no Rio Grande do Sul, mas também uma crítica amarga à tradição bélica do estado e à idealização do militarismo daí advinda. Ao interpretar o passado de guerras do estado como uma espécie de obsessão coletiva de defesa de sua honra e de sua superioridade em relação a outras sociedades, Maya acaba por esvaziar o sentido tradicional do orgulho gauchesco, associado à bravura militar, ao denunciar a violência como obstáculo à modernização e ao enfrentamento das questões sociais. A pobreza e a paralisia das forças produtivas eram a mais perfeita ilustração do quanto a pacificação do estado – em um contexto em que persistiam os embates políticos entre Republicanos e Maragatos – era fundamental para que a marginalização social, as precárias condições de vida e a falta de perspectiva entre os jovens pudessem ser em algum momento enfrentadas.

IHU – Que obras e autores rio-grandenses merecem destaque no contexto da literatura regionalista com engajamento político na virada do século XIX para o XX, período que coincide com a República Velha?

Luciana Murari – É uma questão de gosto pessoal, mas admiro sobretudo os livros de João Simões Lopes Neto, por sua inventividade e dinamismo no uso da linguagem e, entre os livros de Alcides Maya, Ruínas Vivas, citado acima, embora esse último tenha uma linguagem mais datada. Há diversos outros livros que são de interesse para o historiador à medida que participaram da criação da mitologia gauchesca ainda hoje presente na cultura do estado, dentre os quais eu destaco Recordações gaúchas, de Luiz Araújo Filho, No pago, de Clemenciano Barnasque, os vários livros regionais de Roque Callage, Querência, de Vieira Pires, Umbu, de João Fontoura... É todo um movimento de autores que trabalham coletivamente temas comuns e que, apesar de suas diferenças, consagram temas que ainda hoje povoam a criação cultural do estado, sobretudo por meio da lírica e da música regionais.

IHU – Em que medida e como a literatura regionalista gaúcha dialoga com o modernismo literário e com os valores que surgem nas primeiras décadas do século XX?

Luciana Murari – Esse ponto é de muito difícil avaliação, porque o modernismo literário não era, em geral, simpático aos regionalismos, porque o viam pelo viés dos particularismos e de abordagens que poderiam acabar assumindo uma força desagregadora em um momento de criação cultural nacionalista. Veja-se o modernista gaúcho Raul Bopp, por exemplo, que escreveu um poema antropófago com tema amazônico, Cobra Norato (era o que Mário de Andrade chamava de “desgeograficar”, ou seja, o contrário de “regionalizar”). Ao mesmo tempo, alguns regionalistas do Rio Grande do Sul, como Roque Callage, expressaram abertamente sua oposição ao programa modernista, ou à sua parte mais vanguardista. No entanto, a questão é bem mais complexa, porque o romance social de 1930, que pode ser lido como uma segunda fase do modernismo, retomou o regionalismo e teve bastante expressividade no Rio Grande do Sul.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Luciana Murari – Gostaria de agradecer pelo convite e falar da minha condição peculiar de ser uma não gaúcha que se dedicou durante anos a uma reflexão sobre uma cultura que, originalmente, não conhecia, mas que aos poucos foi se revelando muito rica e peculiar. Hoje vejo que essas pesquisas tiveram aceitação e retorno muito positivo, e me permitiram estabelecer um diálogo muito fértil com meus alunos e com outros pesquisadores do estado.

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