“Os moradores das periferias de São Paulo sempre foram protagonistas na construção da cidade”. Entrevista especial com Adriano José de Sousa

Para o doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo, as periferias paulistanas são espaços de resistência, produção cultural e reinvenção urbana

Foto: Rodrigo Vilar/Wikimedia Commons

Por: André Cardoso e Patricia Fachin | 14 Janeiro 2025

Engana-se quem pensa que as periferias de São Paulo são espaços coadjuvantes da cidade: segundo o doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo Adriano José de Sousa, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, elas foram e são “protagonistas na construção da cidade”, desde a ocupação até a atuação nas discussões atuais sobre o plano diretor da capital paulista.

Adriano reforça que as periferias paulistanas têm origem na migração de trabalhadores vindos do Nordeste e Minas Gerais a partir dos anos 1930. “Nas décadas de 1940 e 1950, o entorno da cidade, predominantemente rural, passou a ser ocupado por loteamentos provenientes de fazendas como as do Oratório e Caaguaçu por exemplo, onde hoje temos bairros dos distritos de Itaquera e São Mateus”, comenta.

São Mateus que, hoje, tem se destacado pela “organização cultural, com coletivos que promovem atividades artísticas e reforçam a identidade local”. A periferia, antes com predominância de trabalhadores das indústrias metalúrgicas, tem na Casa de Cultura São Rafael e na Casa de Cultura de São Mateus frutos de uma mobilização articulada por coletivos culturais. “Projetos como a Galeria de Grafitti a Céu Aberto da Vila Flávia, articulado pelo espaço São Mateus em Movimento e pela Favela Galeria celebram a cultura do hip-hop, que tem raízes na região desde os anos 1990”, afirma.

Adriano José de Sousa | Foto: Lattes

Adriano José de Sousa é historiador e educador, mestre em História Social (FFLCH-USP) e doutorando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU-USP, estudando as narrativas históricas dos coletivos culturais periféricos da cidade de São Paulo. É integrante do coletivo de pesquisadores periféricos Centro de Pesquisa e Documentação Histórica (CPDOC) Guaianás, coordenador e educador popular no movimento negro Uneafro-Brasil e professor da rede municipal de ensino de São Paulo-SP (SME-SP). Leciona História das Periferias de São Paulo no curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola da Cidade (EC). É formador no Encontro USP-Escola e em cursos de difusão científica na Universidade de São Paulo (USP). Faz parte do conselho consultivo do Arquivo Municipal de São Paulo e integra o Laboratório de Material Didático e Ensino de História (LEMAD/FFLCH-USP) bem como o grupo de pesquisa Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina (CACAL/FAUUSP).

Confira a entrevista.

IHU – Segundo os dados do IBGE, atualmente o Brasil tem quase 16,4 milhões de pessoas morando em áreas de favela, o que representa 8,1% da população do país. Como você interpreta esse dado? O que esse percentual significa e representa na atual conjuntura?

Adriano José de Sousa – Interpreto esse dado como uma evidência de que a população urbana continua crescendo, considerando que as favelas geralmente surgem devido à insuficiência de oferta de moradia nos conjuntos habitacionais promovidos por políticas públicas. Além disso, o mercado imobiliário na maioria das vezes não oferta unidades habitacionais acessíveis para a população mais pobre, que migra para as cidades em busca de trabalho e renda nos grandes centros urbanos. Frequentemente, essa população acaba recorrendo a moradias precárias em terrenos que, em geral, necessitam de regularização fundiária ao longo do tempo. Por isso, essas pessoas permanecem nas favelas, onde constroem seus modos de vida, buscam serviços públicos, criam suas atividades culturais e sociabilidades. Assim, surgem espaços urbanos dotados de identidades e dinâmicas próprias, vistos com estranheza e estigma por muitos dos que não vivem nelas (mesmo entre as classes trabalhadoras em seu entorno) cuja contribuição para a renovação dos modos de vida nas cidades ainda precisa ser mais valorizada pelo conjunto de seus moradores e poder público.

Este caso é uma evidência do processo pós-reforma trabalhista já que os moradores das favelas, em sua maioria, recorrem a empregos precarizados, terceirizados e uberizados, estando entre eles desempregados, população com baixa escolaridade e provenientes de áreas rurais, ou de outras regiões não contempladas ou cujas políticas públicas de acesso à terra e à renda são insuficientes e, por isso, continuam a se estabelecer em cidades onde o custo da moradia é inflacionado.

IHU – Qual é a origem das periferias paulistanas? Como elas foram estruturadas urbanisticamente?

Adriano José de Sousa – As periferias paulistanas têm origem no desatendimento, tanto pelo mercado quanto pelo Estado, às demandas habitacionais das classes trabalhadoras que migraram, principalmente de estados do Nordeste e de Minas Gerais para a cidade, especialmente a partir dos anos 1930, para suprir a crescente demanda industrial por mão de obra barata. São Paulo já apresentava, à época, um espaço urbano estruturado em torno das ferrovias, inicialmente utilizadas, no fim do século XIX, para o transporte do café do interior do estado e do Vale do Paraíba para os portos de Santos e do Rio de Janeiro. A convergência dessas ferrovias em São Paulo dinamizou a área central, que recebeu investimentos em moradias, loteamentos e palacetes para as classes proprietárias do café, comércio e indústrias, sobretudo alimentícias e têxteis. Assim surgiram bairros operários como a Mooca, Brás, Bom Retiro e Ipiranga.

Nas décadas de 1940 e 1950, o entorno da cidade, predominantemente rural, passou a ser ocupado por loteamentos provenientes de fazendas como as do Oratório e Caaguaçu por exemplo, onde hoje temos bairros dos distritos de Itaquera e São Mateus. Essas terras, relativamente baratas, eram adquiridas por trabalhadores da indústria com baixa remuneração. Esse fenômeno foi estudado por autores como Nabil Bonduki, que destaca a escassez de moradias acessíveis nas áreas urbanizadas, mesmo para os aluguéis. Os loteamentos periféricos que surgiam careciam de infraestrutura básica, como saneamento, transporte público, educação, saúde e pavimentação, desencadeando um longo processo de luta por serviços básicos liderado por associações de moradores e movimentos sociais ligados à Igreja Católica progressista, organizados em pastorais e comunidades eclesiais de base (CEBs).

IHU – Qual é a peculiaridade do território São Mateus? Como ocorreu a urbanização do território?

Adriano José de Sousa – Até os anos 1980, São Mateus foi predominantemente habitado por trabalhadores das indústrias metalúrgicas. Esse bairro se expandiu durante o período desenvolvimentista iniciado no Estado Novo e intensificado nos governos de Juscelino Kubitschek que, no que diz respeito a São Paulo, promoveram a industrialização, especialmente no ABC Paulista. A urbanização de São Mateus refletiu a necessidade de mão de obra das indústrias automobilísticas, químicas e eletroeletrônicas, localizadas, respectivamente no ABC Paulista, polo Petroquímico Mauá-Capuava e no eixo Mooca-Ipiranga.

São Mateus passou por um rápido adensamento nos anos 1970 e 1980, período marcado pela atuação de movimentos sociais, como a Pastoral Operária e o Movimento de Saúde. Esses grupos conquistaram avanços significativos, como a implementação do Projeto São Mateus, reivindicado em praça pública com a presença do secretário de saúde do governo estadual biônico de Paulo Maluf, Adib Jatene, em plena Ditadura Civil-Militar. Esse processo resultou na construção do Hospital São Mateus em 1991 e da rede de Unidades Básicas de Saúde que atende à Subprefeitura de São Mateus atualmente. Este hospital tornou-se um marco no atendimento à população do extremo leste, incluindo mesmo moradores de bairros como Cidade Tiradentes, Itaquera e Sapopemba.

Na mesma época, surgiram lutas pela preservação ambiental, como a criação da Área de Preservação Ambiental (APA) do Parque do Carmo e a proteção dos entornos do Morro do Cruzeiro, um patrimônio ambiental tombado pelo do Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo (DPH) em 2016. Esses territórios, no entanto, seguem ameaçados pela expansão de aterros sanitários, em pauta atualmente na câmara dos vereadores – e combatida por parte dos moradores – que pretende burlar a previsão dos parques do Morro do Cruzeiro e Cabeceiras do Aricanduva no Plano Diretor da cidade, desmatando remanescentes de Mata Atlântica e ameaçando as nascentes da bacia do rio Aricanduva, responsável por recursos hídricos e parques lineares no território. Prevê-se a permanência e expansão do Aterro São João por mais vinte anos, estrutura presente no sopé do Morro do Cruzeiro desde o início da década de 1990.

IHU – Qual é o perfil dos agentes que atuaram no processo de urbanização do território São Mateus? Qual é o perfil dos agentes/moradores da região?

Adriano José de Sousa – Nos últimos anos, São Mateus tem se destacado pela organização cultural, com coletivos que promovem atividades artísticas e reforçam a identidade local. A Casa de Cultura São Rafael e a Casa de Cultura de São Mateus, por exemplo, são frutos dessas mobilizações, articuladas pelo Fórum de Cultura de São Mateus, no contexto do Movimento Cultural das Periferias (articulação de coletivos culturais que conquistou na última década a última lei de iniciativa cultural de fomento público à cultura, “A Lei de Fomento à Cultura das Periferias”). A elaboração do livro “Memórias de Um São” por este Fórum, pesquisa histórica que teve como resultado uma obra organizada em verbetes sobre os grupos culturais do território, foi um importante elemento de legitimação do território enquanto potência cultural da cidade que provava a necessidade de espaços para difusão e fomento a este circuito.

Além disso, projetos como a Galeria de Grafitti a Céu Aberto da Vila Flávia, articulado pelo espaço São Mateus em Movimento e pela Favela Galeria celebram a cultura do hip-hop, que tem raízes na região desde os anos 1990 com posses como a Defensores do Ritmo de Rua (DRR) articuladora de grupos de rap de renome nacional como o De Menos Crime e Consciência Humana. Importa ressaltar que a cultura de São Mateus teve o samba como seu primeiro grande impulso, com os quintais das “tias” como Tia Cida que gestaram grupos e espaços como o Quinteto em Branco em Preto, Bar do Timaia, Berço do Samba de São Mateus, Samba da Maria Cursi, Escola de Samba Amizade Zona Leste e Instituto da Cultura e Tradição do Samba de São Mateus, também celebrados em obras da galeria de grafitti.

Transformações urbanísticas, sociais e ambientais no território

A chegada da Linha 15-Prata (monotrilho) articulou e intensificou as centralidades dos territórios (Avenidas Sapopemba, Ragueb Chohfi e Mateo Bei) atraindo empreendimentos voltados imobiliários voltados a setores da classe média. Entretanto, a maioria dos residentes continua trabalhando fora do bairro, enfrentando condições laborais precarizadas, embora haja a geração de empregos no comércio que se diversifica e recebe “redes globais” como Burguer King e McDonald's nos eixos viários no entorno do monotrilho. A dificuldade de acesso à moradia impulsiona ocupações em áreas de proteção ambiental, como nos bairros Nova Vitória e Nova Conquista e articulação de ocupações coordenadas por movimentos sociais como o MTST que já inaugurou o condomínio Dandara (2019) e que se organiza, desde a pandemia, na ocupação Carolina Maria de Jesus.

IHU – Quais as principais lutas sociais dos moradores das periferias da cidade de São Paulo hoje? As questões sociais ainda têm um peso significativo ou outras pautas surgiram?

Adriano José de Sousa – Os moradores das periferias de São Paulo sempre foram protagonistas na construção da cidade. Desde a ocupação inicial de territórios rurais até a atual participação nos debates sobre o plano diretor, suas lutas têm buscado conciliar o respeito ao meio ambiente com a melhoria da qualidade de vida. Coletivos culturais, como o São Mateus em Movimento, Bloco do Beco, Comunidade Cultural Quilombaque, CPDOC Guaianás (do qual faço parte), Nos Trilhos, Centro de Memória Queixadas, Rosas Periféricas, Estopô Balaio, entre outros, continuam a promover ideias inovadoras de ocupação urbana e a resistência contra a exclusão social.

Os nomes citados promovem, além de pesquisa e produção artística em seus territórios, e fomentam iniciativas vinculadas à memória social, museologia, turismo de base social e projetos urbanísticos e de futuro para seus bairros, como o Território de Interesse da Cultura e Paisagem Jaraguá-Perus-Anhanguera, artigo do Plano Diretor da cidade, mobilizado na zona noroeste com importante articulação do grupo Quilombaque, ou o Escadão Galeria, intervenção expositiva e de revitalização de escadões do bairro do Jardim Ibirapuera, localizado na zona sul da cidade e promovido pela Associação Cultural Bloco do Beco.

Os desafios à implementação de políticas públicas permanecem em nossos territórios, mas as periferias não podem ser vistas apenas como bairros dormitórios e seus moradores somente como agentes que reagem a condições de pobreza e segregação urbana. Elas são, e sempre foram desde sua incipiente ocupação urbana, espaços de produção cultural, reivindicação por direitos e de formulação de soluções urbanas para uma cidade com diversas centralidades que possam ser usufruídas pelas classes trabalhadoras, populações negras e indígenas conforme suas necessidades e ideais de cidade.

Leia mais