11 Mai 2023
Wikifavelas explica: organizados de forma não-asséptica, os territórios periféricos penam para entrar no recenseamento. Os agentes do IBGE não os conhecem. As comunidades tentam auxiliá-los. Veja também quais as 20 maiores “quebradas” do país.
O artigo é de Caique Azael, publicado por Outras Palavras, 10-05-2023.
Quantas pessoas moram em favelas no Brasil? Qual estado possui as maiores favelas? Como são as realidades em cada território? Talvez, a gente esteja próximo de conseguir responder algumas perguntas sobre a realidade das favelas brasileiras com mais embasamento. Desde 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) está nas ruas coletando dados para a atualização do Censo, que devia ter sido realizado em 2020, mas, em função da pandemia de Covid-19 e do corte de verbas por parte do governo Bolsonaro, foi adiado. O Censo é um dos maiores e mais importantes esforços do Estado brasileiro para conhecer sua população na diversidade que a constitui e, a partir disso, produzir políticas públicas para a melhoria da qualidade de vida dos diferentes segmentos sociais.
Mas, o que isso tem a ver com as favelas no Brasil? E de que maneiras o Censo pode contribuir com a melhoria da qualidade de vida nestes territórios?
Primeiro é preciso ter em conta a definição de favelas pelo IBGE, como aglomerado subnormal [1]. “Aglomerado Subnormal é uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação”. Privilegia, pois, critérios negativos ligados à titularidade da propriedade, a irregularidade da ocupação, a irregularidade urbanística e a carência de serviços públicos. Em pesquisa realizada junto às prefeituras, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic-IBGE), voltada para levantar informações relativas aos instrumentos de gestão municipal, mostra que as prefeituras, apesar de seguirem a caracterização adotada pelo instituto, adicionam outros critérios relativos às características ambientais, como localização em áreas de risco e sócio-econômicas e rendimento familiar. Estes critérios se aproximam da definição dada pela ONU Habitat para assentamentos informais, que destaca a falta de direito ou certificado de posse do terreno, áreas inadequadas do ponto de vista de um conjunto de riscos, precariedade em pelo menos um dos serviços públicos essenciais, precariedade dos materiais de construção e discordância dos códigos urbanísticos, número de moradores por Cômodo (COSTA e NASCIMENTO, 2005; CATALÁ e do CARMO, 20212).
O que se constata é que não há isenção nas definições, cada uma delas se insere em um contexto que destaca elementos comuns como a informalidade e a precariedade dos serviços, mas também dão ênfases distintas em relação à ocupação irregular, ao direito, ao risco, à qualidade da moradia. Tanto lideranças de favelas quanto estudiosos da área urbana questionam o privilégio dado a critérios como irregularidade da ocupação e inadequação aos padrões urbanísticos, tendo em conta que são exatamente estes critérios que colocam as favelas e suas populações no âmbito da informalidade e dos ilegalismos (ROLNIK, 20153). Destacam, por outro lado, o processo de criação de espaços urbanos por meio da autoconstrução que, na maior parte das vezes se faz coletivamente, por meio dos mutirões.
A discussão sobre critérios é fundamental, pois, são eles que orientam a coleta das informações e dados que vão ser a base para formulação de políticas públicas. Depois de atravessarmos um período crítico no qual foram cortados recursos orçamentários e postergada a realização do Censo, estamos em vias de finalizar a coleta dos dados censitários.
O Estado brasileiro assume como uma das tarefas prioritárias no novo ciclo democrático que se abre após a eleição de Lula o enfrentamento das graves desigualdades sociais e a construção de políticas públicas para a efetivação da dignidade humana. Um dos pontos centrais que mobiliza o governo desde a campanha eleitoral é a discussão sobre acesso à alimentação, educação, saúde, emprego e renda. Em todos estes casos, a intervenção política do pode se dar a partir da criação ou fomento a políticas públicas, como o Fome Zero, o Bolsa Família, o programa Mais Médicos e a melhoria e ampliação de creches e escolas. Mas nenhuma política pública nasce sem um conhecimento profundo dos grupos sociais que ela pretende atingir, ou estará fadada ao fracasso. O processo de elaboração de políticas públicas deve sempre partir de um qualificado diagnóstico da realidade concreta sobre a qual intervirá e, nesse sentido, o Censo é um esforço precioso, que não responde à totalidade das perguntas sobre a vida social, mas pode ajudar a formular as perguntas complementares corretas para instigar a ação de Estado. É olhando o Censo que podemos entender como está distribuída a escolarização formal pelo país, como a renda varia de acordo com aspectos de gênero, raça e território, como o saneamento básico está distribuído e tantas outras questões fundamentais.
Há uma engenharia complexa quando falamos da realização do Censo nas favelas. Uma primeira questão diz respeito ao processo histórico de formação destes territórios, que comumente não são vistos como regulares nos espaços das instituições. Suas ruas, praças, vielas, becos, ladeiras e esquinas não existem nos mapas oficiais. Se o trabalho dos recenseadores é de visitar domicílios reais, como visitar os locais que não existem (no sentido literal e no sentido figurado) para o poder público? O percurso dificultado dos recenseadores não os impede de buscar, batendo de porta em porta, as respostas. Mesmo assim, a arquitetura das favelas não é tão linear e não se organiza de forma seriada e asséptica como no asfalto. A mesma casa pode ter uma divisão com outra casa nos fundos e as lajes – que são espaços importantes na arquitetura das favelas – podem fazer germinar o lar dos filhos que casaram, uma kitnet para locação para fins de renda extra, um pequeno negócio… Um mesmo espaço pode compreender não só moradia, mas espaço de trabalho e sustento. É dar um nó na cabeça dos analistas. A falta de endereços oficiais dificulta muito o trabalho, que busca um universo estável e asséptico, mas não inviabiliza a realização do Censo, graças aos esforços dos recenseadores. Por essa razão, grupos de pesquisadores e moradores de favelas têm se dedicado à construção de cartografias, sistemas de georreferenciamento que permitem a construção de mapas das favelas, identificando pontos importantes para a população residente. Todos os esforços para trazer as favelas e periferias para os mapas das cidades são fundamentais para dar visibilidade às necessidades e demandas de suas populações, bem como para participar da partilha dos recursos públicos. No entanto, apenas o Censo cobre toda a população em território nacional e, sendo realizado periodicamente, permite comparações e a observação de mudanças e tendências.
Em 2023, diante da baixa coleta de dados nos territórios de favelas, diferentes estratégias têm sido adotadas pelo IBGE. Como a produção de dados sobre/nas/pelas favelas não é um esforço novo. Dois exemplos recentes são 1) a realização de um Censo entre moradores no conjunto de favelas da Maré, impulsionado pela ONG Redes da Maré, e 2) o mapeamento que aconteceu durante a pandemia, quando as favelas mais uma vez viabilizaram sua capacidade de produção de dados com a produção de Painéis Comunitários para mapear a incidência de covid-19 em seus territórios. A realidade é que há iniciativas locais e nacionais que podem contribuir com o enfrentamento desse desafio. Uma delas, no Rio de Janeiro, é a parceria entre IBGE e Instituto Pereira Passos, que comandou um projeto chamado “Territórios Sociais” e possui larga experiência em mapeamento e diálogo em favelas na cidade.
A segunda iniciativa, de caráter mais nacionalizado, é o projeto chamado “Favela no Mapa”, um esforço conjunto do governo federal, do Instituto Data Favela e da Central Única das Favelas (CUFA) para intensificar o trabalho de recenseadores nestas localidades. A meta do projeto é atingir 5 mil favelas distribuídas em 500 cidades pelo país. Segundo o IBGE, “a ideia é que líderes comunitários dessas localidades sirvam de guias e ajudem a sensibilizar os moradores quanto à importância do Censo Demográfico”. O projeto foi lançado em março de 2023, com a presença da ministra de Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, na favela de Heliópolis, em São Paulo, e tem abrangência nos estados da Bahia, Goiás, Pará, Rio de Janeiro e Santa Catarina.
Outra questão que tem sido encontrada como um ponto de dificuldades é a desinformação. Uma das grandes armas do obscurantismo, com o seu exército propagador de notícias falsas, ela produz confusões, medo e insegurança nas favelas e periferias. Muitas pessoas olham para esse processo como uma ameaça aos eventuais recursos assistenciais que são recebidos (por exemplo, o desligamento do Bolsa Família).
Em 2023, a Pesquisa Data Favela revelou que há mais de 10 mil favelas espalhadas pelo Brasil. Se somadas, produziram o terceiro maior estado em número de habitantes, com movimentações financeiras de mais de 200 bilhões de reais (valor crescente em relação aos últimos anos). Os dados do Data Favela revelam que, nos últimos 10 anos, o número de favelas espalhadas pelo Brasil dobrou. Renato Meirelles, fundador do instituto e responsável pela pesquisa, compreende que “a favela é a expressão demográfica das desigualdades sociais” e explica a partir disso o crescimento tão significativo na última década: as condições de vida da população brasileira tem piorado, as reformas regressivas (como a Reforma Trabalhista, de Michel Temer) arrastam a população para o mercado informal de emprego ou para o desemprego, trazem de volta a fome para a vida de mais famílias e aumentam a procura por espaços de moradia em territórios de favelas.
É nesse cenário que precisamos produzir políticas públicas para a garantia da dignidade humana. O Censo 2022, cujas últimas ações de mapeamento acontecem até o dia 28 de maio em territórios indígenas, tem previsão de entregar à sociedade nos próximos meses um diagnóstico de como está o Brasil. Daqui para frente, as ações do governo e da sociedade civil ganham um novo ponto zero para suas intervenções.
O Dicionário de Favelas Marielle Franco está atento aos dados coletados pelo Censo 2022 e aberto para contribuir com a divulgação de conhecimentos e histórias das favelas e periferias do Brasil e do mundo. Parte desse esforço envolve o estímulo à criação de verbetes com dados sobre os territórios mapeados pelo IBGE. Nos verbetes, podemos encontrar não apenas os dados coletados pelo Estado, mas também histórias e memórias de moradores, ativistas, pesquisadores, imagens, vídeos, reportagens, mapas e uma série de outros conteúdos que nos ajudam a conhecer e preservar a memória de favelas no Brasil.
O Censo 2022 indicou para a população Brasileira uma reorganização do ranking de maiores favelas do Brasil. Há décadas, a Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, ocupava o topo da lista, sendo a maior do Brasil e, também, uma das favelas mais conhecidas no mundo. Contudo, dados preliminares divulgados pelo Censo 2022 indicam que a Favela Sol Nascente, no Distrito Federal, ultrapassou a marca da favela carioca e hoje é a maior do país em número de domicílios. A pesquisa indica não apenas que a favela no Distrito Federal cresceu em termos populacionais, mas que a Rocinha teria diminuído. De acordo com a reportagem de Lucianne Carneiro (Valor Econômico),
Localizada a 35 km de Brasília e até recentemente parte de Ceilândia, a favela tinha, em 2022, 87.184 habitantes, o que significa um aumento de 29,7% frente aos 56.483 registrados no Censo 2010. No caso da Rocinha, a população contada pelo Censo 2022 foi de 67.199 pessoas, 2,8% abaixo da registrada em 2010.
Há alguns fatores que podem transformar a lista, como o fato de que o Censo 2022 não abarcou as favelas em sua pesquisa de uma forma completa. Para lidar com tal questão, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), está construindo uma parceria com a Central Única das Favelas (CUFA) para completar a pesquisa nestes territórios. Ainda de acordo com Lucianne Carneiro, podemos notar na lista das dez maiores favelas do país uma marca da ocupação territorial do Brasil – há representações de diferentes regiões do país:
O ranking das dez maiores favelas do Brasil pela prévia do Censo 2022 inclui, ainda, Rio das Pedras (Rio de Janeiro), Beiru/Tancredo Neves (Salvador), Heliópolis (São Paulo), Paraisópolis (São Paulo), Pernambués (Salvador), Coroadinho (São Luís), Cidade de Deus/Alfredo Nascimento (Manaus) e Comunidade São Lucas (Manaus).
Os dados preliminares mostram que o Brasil possui mais de 10 mil favelas, onde o Censo 2022 estima recensear 16 milhões de pessoas em 6,55 milhões de unidades habitacionais. Confira abaixo a lista organizada por número de domicílios pelo jornal Diário do Rio, com base nos dados preliminares do Censo 2022:
[1] COSTA, Valéria e NASCIMENTO, José Antônio. O Conceito de Favelas e Assemelhados sob o Olhar do IBGE, das Prefeituras do Brasil e da ONU. in Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina, USP, 2015
[2] CATALÁ, Larissa e do CARMO, Roberto. O conceito de aglomerado subnormal do IBGE e a precariedade dos serviços básicos de infraestrutura urbana. Rev. Bras. Estudos Populacionais, 38, 2021
[3] ROLNIK, Raquel. A Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo. Boitempo, 2015
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O Censo 2022 e as favelas do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU