Os desdobramentos do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes ultrapassam a tragédia familiar e revelam como, no Rio de Janeiro, polícia e política são gêmeos siameses
Nesta segunda parte da entrevista com Jacqueline Muniz, a antropóloga aprofunda o debate sobre as relações entre a polícia e a política em uma espécie de mercado da morte. “A solução ‘morte’ tem sido uma solução barata. Como eu digo: quem mata tem o mérito de limpar a sociedade do crime, quem morreu mereceu. O ‘bandido bom é bandido morto’ tem elevado a rentabilidade política eleitoral, porque produz queima de arquivo, mata-se a galinha dos ovos de ouro da investigação, do trabalho de inteligência”, pondera.
Neste contexto, as polícias acabam se convertendo em porta de entrada para a política. “Se entrarmos na sala de retratos da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a primeira polícia do país, veremos que todo mundo que está ali virou deputado. Era o jardim de infância, o sujeito ia para a polícia, virava chefe de polícia e depois virava deputado, senador. Porque ninguém nega um favor à polícia; a polícia é quem administra o voto”, explica Jacqueline em entrevista por videoconferência ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
É por isso que o assassinato de Marielle e Anderson, além de trágico, torna-se emblemático e traz à tona a perversidade de um sistema completamente corroído. “Esse caso é exemplar, tragicamente exemplar, que foi tratado pelos governantes, em função dos seus oportunismos políticos e do seu populismo penalista”, adverte. “O tema foi tratado como série da Netflix, porque produz o medo. Se há uma coisa que é dramática, é subordinar o tempo tático da polícia ao tempo político. O tempo político da exibição de produtos funciona numa lógica, o tempo investigativo é outro. Quando você subordina o tempo tático da polícia às exigências do político, dá em 174, a vítima sai morta”, complementa.
A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui.
Jacqueline Muniz (Foto: Frame da videoconferência com o IHU)
Jacqueline Muniz é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense – UFF, mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em e doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, Universidade Candido Mendes (1999) com a tese Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da PMERJ.
IHU – Quem foram os mais beneficiados com o assassinato de Marielle e Anderson?
Jacqueline Muniz – Vários. Esses que foram apresentados [o delegado Rivaldo Barbosa, o parlamentar Chiquinho Brazão e seu irmão conselheiro do Tribunal de Contas do RJ Domingos Brazão] e muitos outros porque isso gerou voto, mudou o resultado eleitoral.
Naquele momento, nós temos sete integrantes do PSOL na Câmara de Vereadores. Também tínhamos deputados. É um partido que é de parlamento, que não é de ocupar funções no Executivo, em termos de voto. Marielle é muito bem votada, mas não só ela, tem uma bancada, que evidentemente não é majoritária, mas faz a diferença. Precisamos lembrar que a presidência da CPI das Milícias coube ao Marcelo Freixo. O PSOL é aquela gente renitente, que não vai renunciar a sua agenda, tem unidade ideológica e programática. Assim, são “enchedores de saco” do que acontece ao redor. Matar Marielle, que parecia barato: quem eu posso matar e que me dê grandes resultados? O custo de matar é alto, mas eu preciso que o produto político morte desta mercadoria tenha um impacto elevado. E teve.
Em primeiro lugar, devolveu ao bolsonarismo o discurso sequestrado por Temer. Segundo, mandou um recado para muita gente: “É bom não começar a nos perturbar”. Ameaças para alguns, pagamento de dívidas para outros e presentes para outros ainda. Não é necessário pedir para matar. Dar um presente como esse é produzir dívidas no outro. São dívidas políticas que vão permitir a ampliação dos seus negócios, representação política.
Quando fui à CPI das Milícias, eu disse que a milícia subiria a rampa do Palácio [do Planalto]. Na ocasião, falei: ou nós produzimos um controle sobre ação policial, cortando na própria carne, ou assistiremos a um novo Tratado de Tordesilhas, que é a fusão do tráfico padrão, que é o que nós estamos assistindo, e o que as pessoas chamam de narcomilícia, que não é um bom nome. Aqui temos uma distinção importante para compreender quem vem de dentro do Estado e quem usa a segurança estatal para suas atividades criminosas, que é o tráfico. O tráfico sempre pagou o policial da esquina, porque é caro sustentar a segurança. É caro o trabalho de segurança para o bicheiro. A meu ver, a coisa não para aí.
O Rivaldo é aquele perfil simpático, cínico. O cinismo é parte da cultura policial de rua, sobretudo da cultura suja. Vemos relatos desse cinismo de sorrir e da tapinha no ombro nas polícias, na melhor polícia – assim considerada, a polícia inglesa. Duas coisas se fundam na cultura policial de rua: o código de silêncio e o cinismo. É a fabricação de operacionalidade.
Então, para sobreviver e fazer um esquema político corrupto sobreviver, é preciso entregar produtos. A morte do Amarildo foi desvendada pelo sujeito que ajudou a planejar a morte da Marielle, sempre envolvendo autoridades. Percebem que são pessoas do Estado? O Ronnie Lessa [autor da morte de Marielle], o Élcio, todos eles saíram do Estado. O Escritório do Crime não era organizado pelo tráfico. É caro manter um exército, uma guerrilha; é mais fácil corromper, ou melhor, pagar o dinheiro da propina.
Precisamos que lembrar que algumas matanças “lambonas” que aconteceram nos últimos tempos, é porque os matadores profissionais foram obstacularizados. Alguém conhece a lista de clientes do Ronnie Lessa? Para ele poder falar, ele combinou o que diria. Ele irá dizer tudo dos outros clientes? Ou ele começou a matar só a Marielle? E quanto ao Élcio? E o Adriano da Nóbrega, que chefiava o Escritório do Crime, morto em 2020 numa operação policial? E os celulares?
A solução “morte” tem sido uma solução barata. Como eu digo: quem mata tem o mérito de limpar a sociedade do crime. Quem morreu, mereceu. O “bandido bom é bandido morto” tem elevado a rentabilidade política eleitoral, porque produz queima de arquivo, mata-se a galinha dos ovos de ouro da investigação, do trabalho de inteligência. Mata-se o sujeito que pode dizer como as coisas funcionam, quem está acima dele, quem manda. Eu não acho que o Zinho mande e que parou no Rivaldo ou nos irmãos Brazão, porque a corrupção é em rede.
São necessários muitos passaportes e carimbos, para lá e para cá, para circular pelas burocracias do Estado e poder arrendar território, explorar uma van, banda larga de internet, luz, gás. O Peixão, de quem falei no início, construiu uma ponte para ligar dois territórios e facilitar a logística. Uma ponte de carro, com inauguração e churrasco para todo mundo durante a Covid-19 nas barbas do poder público municipal e estadual.
No exato momento que aconteceu o desvendamento do crime, quando entrou a Polícia Federal nas investigações, o prefeito do Rio e o governador publicaram notas oficiais. Era importante que eles fizessem uma fala pessoalizada, porque notas oficiais podem indicar que eles estão com medo dos governos criminais dentro das máquinas municipal e estadual, que é onde elas estão.
Não é uma trama, não é uma série da Netflix isso. Os elementos que estão ali são absolutamente elucidadores de como se governa com o crime e não contra ele, como as agendas populistas penais servem de cortina de fumaça para se garantir o esquema. Tira os anéis, mas mantém os dedos. O Élcio ou o Lessa vão falar para PF, porque é um seguro, porque eles não podem falar para os ex-parceiros, que agora são rivais.
No entanto, eles vão falar tudo? Não necessariamente. Então o caso da Marielle e do Anderson vai ter outros desdobramentos, porque o que nós sabemos das delações é aquilo que interessava ao desvendamento das autorias e dos mandantes deste crime. Mas esses matadores são matadores profissionais, o que permitia uma racionalização das mortes.
Como eu disse: a matança de hoje economiza a matança de amanhã. Não tem essa de ter crime independente, poder paralelo. Tudo isso é prestação de serviço ao trabalho da polícia e à compreensão da sociedade. A contribuição reflexiva e científica que podemos oferecer é mostrando que todas as categorias são cloroquinas que nos enganaram esse tempo todo. Não precisamos ser Mãe Dináh [Benedicta Finazza, mais conhecida como Mãe Dináh, foi uma vidente brasileira que ficou famosa por suas previsões na televisão nos anos 1990] ou ter bola de cristal, é só compreender os processos históricos.
IHU – Como foi o seu trabalho junto da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro?
Jacqueline Muniz – Quando fui para o governo em 1999 fazer a reforma da Polícia Civil, ela era considerada mais corrupta que a Polícia Militar. Esse era o imaginário. A corrupção da Polícia Civil era chamada de atacado, enquanto a da Polícia Militar era no varejo. A da Polícia Civil era no atacado porque é ela quem faz a entrevista com o crime, ela quem tem o carimbo cartorial que ingressa naquele evento, qualquer que seja daquelas pessoas no sistema de justiça criminal. Então, interromper um inquérito, desaparecer com provas, entortar uma perícia custam mais caro que burlar um BO [Boletim de Ocorrência] dentro da viatura. Isso não foi muito diferente do que aconteceu em Nova York com os herbívoros, que eram os policiais ostensivos de rua, uniformizados, e os carnívoros, que eram aqueles que controlavam a investigação.
À época, criamos um grande projeto. Nesse tempo, a Polícia Civil do Rio de Janeiro não elucidava nem 10% dos homicídios. Era vergonhoso. Como eu disse, o homicídio é um crime de alta resolutividade, é um crime que se resolve em menos de um mês. Quando começa a demorar mais de um mês, dois meses, é porque é complexo, envolveu políticos e autoridades. E quando demora anos como esse, é óbvio que tivemos ingerência política, obstrução feita por quem tem caneta e tinta, quem tem mandato.
Nós fizemos um grande processo de reforma na polícia. Quando nós éramos gestores, criamos as delegacias legais e informatizamos as polícias, as delegacias, a partir de uma reengenharia de processos de trabalho. Tiramos a carceragem de dentro da polícia, porque quem cuidava dos preços provisórios era a delegacia. Era um grande mercado persa, porque o sujeito, em vez de investigar, ficava cuidando de preso provisório. Por isso, era necessário criar casas de custódia.
Além disso, criamos um sistema de aferição, corregedoria geral unificada, ouvidoria, controles internos e externos, freios e contrapesos cruzados, qualificação da polícia. Também zeramos os inquéritos criando delegacias, espelhos, cartorários para que a investigação começasse e não ficasse sobrecarregada com casos impunes. Havia governo, política pública. Rompemos com as panelinhas e criamos as áreas integradas. Essa foi a primeira vez que eu fui ameaçada de morte, porque, ao criar as áreas integradas, que era um projeto de pesquisa meu que se transformou em política pública, compatibilizamos os territórios, a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros, a Guarda Municipal em todo o estado. Isto possibilitou o controle social, a aferição do Estado, criou os indicadores de criminalidade violenta, as estatísticas criminais. Tudo isso o Rio de Janeiro não tinha e foi o primeiro estado a produzir dados informatizados.
Estas iniciativas geraram ameaças de morte porque acabamos quebrando os monopólios territoriais, pois aqui as delegacias funcionam como “Vaticanos dentro de Roma” e não só aqui, em qualquer lugar do Brasil. As unidades da PM funcionam como capitanias hereditárias, passíveis de aparelhamento clientelista na esquina. Elas sofrem de autonomização: o fulano é dono da delegacia, ele vai e leva a equipe com ele, quando ele vai embora, ele leva junto toda a memória do que produziu.
Aqui o conhecimento de polícia é pessoal, intransferível e ambulante, o que permite transformar qualquer delegacia em um balcão de negócios. É por isso que há delegacias quentes e há delegacia de papel, que é aquela de refugiado ou a delegacia que cuida dos direitos humanos, como as de feminicídio, que rendem pouco dinheiro e outras que rendem mais. Isso não é só no Rio. Aqui chamamos de milícia, mas é uma prática que é comum no Brasil inteiro.
É por isso que as polícias civil e militar no Brasil serviram de trampolim do jardim de infância para carreiras eleitorais. Se entrarmos na sala de retratos da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a primeira polícia do país, veremos que todo mundo que está ali virou deputado. Era o jardim de infância, o sujeito ia para a polícia, virava chefe de polícia e depois virava deputado, senador. Porque ninguém nega um favor à polícia; a polícia é quem administra o voto.
Eu gostaria de lembrar que no Rio de Janeiro, a divisão territorial, antes de nós mexermos e criarmos as áreas integradas e os mecanismos de avaliação de segurança, o território era dividido conforme o jogo do bicho, assim como as seções eleitorais desde o Estado Novo.
No Estado Novo, as delegacias acompanhavam o desenho do jogo do bicho e o desenho das seções eleitorais, e o desenho territorial das unidades da PM acompanhava a ocupação militar na baía de Guanabara desde a época do Império. Portanto, nem uma nem outra obedecia a critérios de segurança, possibilitando a sua clientelização, a sua ingerência. Era a ingerência política dentro das polícias. Nós não fizemos o principal dever que as grandes democracias ocidentais fizeram: blindar a polícia do uso político-partidário, de sua apropriação privatista e de seu sequestro do poder de polícia por seus procuradores. Não blindamos a polícia do uso político da máquina partidária, da apropriação por grupos de poder e de grupelhos policiais que tomam a polícia para si, para transformá-la em mercadoria política. Essa é a primeira dimensão.
O segundo ponto é o controle civil das espadas.
O terceiro ponto é a quebra do monopólio do poder de polícia sobre o território e a população para que não ocorram golpes, para que haja estabilidade. Por isso, vemos o golpismo em todos os lados, mas não sabemos onde ele está. O golpe é aprisionar governantes dentro dos seus gabinetes, pois ter a Força Armada na rua custa caro e não produz um controle pleno. Golpe dá trabalho e não é esse arremedo de golpe que tivemos aqui. O que salvou o Brasil do golpe foi a língua portuguesa, porque tinha tanta minuta que ninguém conseguia fazer uma redação definitiva. É de uma incompetência... Porque o golpe dá muito trabalho, não é desse jeito que se faz, com gente aposentada, com o sujeito que dá surto para lá e para cá.
Se olharmos a quantidade de minuta... O sujeito não passa no ENEM do golpe. Qual o golpe que o país teve? O país viveu vários golpes. A República foi produto de golpe. O Estado Novo. Para fazer a reforma trabalhista, houve um golpe de Estado. Sim, porque tem uma tradição autoritária aqui de destituição da cidadania, de destituição dos controles sociais sobre a ação do Estado. É um sequestro do Estado sobre o poder da sociedade, e o principal poder é o de dobrar a vontade, é o poder administrativo e coercitivo. Quer saber qual é a repactuação federativa em torno deste poder? Não existe, não foi feito intencionalmente e ninguém fala disso.
Portanto, todo e qualquer agente público da polícia vive a vulnerabilidade de estar na barca. Se ele não está no banquete da Diretoria de Assistência Social – DAS da Polícia Militar do Rio ou ocupando um cargo protegido, ele fica juntando papel [o policial íntegro]. Por isso, temos uma alta taxa de ideação suicida dentro das polícias brasileiras, além de alta taxa de doenças de fundo nervoso, do coração, porque o sujeito que pediu licença e não quer participar do esquema pode ser aquilo que falei: o tiro amigo. A coisa é muito séria. Quem organiza o crime no Brasil é a polícia, e quem expande o crime é o Estado.
IHU – Como as milícias funcionam neste contexto?
Jacqueline Muniz – As milícias levam vantagem porque elas conhecem a burocracia do Estado, porque saem de dentro, têm conhecimento e competência. Em segundo lugar, elas possuem blindagem política por terem matrícula pública, algo que vale muito. É concursada, tem trânsito, entra e sai de todos os setores do Estado e da sociedade, coisa que nenhum traficante pode fazer.
A milícia tem mobilidade, logística, é ela que pode tirar o traficante daqui e levar para Porto Alegre, para Santos ou qualquer lugar. E mais importante que tudo isso: a milícia tem tiro certo. Não se tem bala achada e perdida porque bala é caro. Uma bala é quatro, seis, oito ou 12 reais e não pode sair desperdiçando bala matando gente errada. Isso é pagar mico na lógica do crime.
Então a milícia tem tiro certo, ela economiza na logística, que é muito cara. O custo é controlado mesmo com os laranjas do CAC [Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador], mesmo com programa “minha arma, minha vida” do Bolsonaro, que barateou e permitiu que o crime de dentro do Estado pudesse baratear seu custeio e agora se pode matar com nota fiscal. Lembro que os consultores de armas do crime também vêm de dentro do Estado.
Temos falado aqui de uma organização criminosa a partir de atores estatais em rede, de forma desconcentrada, descentralizada. Portanto, não tem “a milícia”, não tem “o tráfico”. Isso é visível no Rio de Janeiro porque temos as disputas territoriais armadas e a mediação dessas disputas feita pelos sócios e parceiros que vêm direto do Estado, que são sócios, parceiros, patrões ou funcionários. Por isso, escrevi sobre como governar com o crime ou governabilidade, mostrando este funcionamento nas CPIs.
Houve uma situação engraçada de narrar o funcionamento dessas coisas para um deputado que foi chefe de polícia e que depois foi preso, sendo que ele me parabenizou dizendo que, de fato, o que eu estava dizendo era a verdade. A competência da ação policial, qualquer que seja, até da guarda municipal ou política penal, é um cheque em branco. Por isso, nenhum policial e nenhuma ação de polícia passam no teste da transparência: não porque seja corrupta, mas porque é invisível, com baixa institucionalidade, tornando o policial vulnerável a todo tipo de mandonismo. Ele se torna a melhor mercadoria política, vira um zumbi de policiamento. É um morto-vivo, ele tem a carteira de autoridade e o atestado de óbito, que, cedo ou tarde, vai chegar se ele brincar de besta de quebrar o código do silêncio.
Ronie Lessa negociou o que ele vai falar. Ele vai entregar a carteira toda de clientes? Por um acaso o chefe da Polícia civil preso vai entregar toda a sua carteira de clientes? Porque para virar diretor da Delegacia de Homicídios, é preciso entregar missões, produzir estatística para os governantes, para que estes possam lançar em campanha. Cada morte e cada operação é um palanque eleitoral. Isto produz um controle sobre o território e a população? Não. Sustenta o efeito repressivo no tempo? Não. Tira a polícia da rua? Sim. Maximizando a insegurança pública, que é o que vivemos: assalto, sequestro e crimes de rua a que todos nós estamos expostos, independentemente da classe social.
Veja que estamos falando de um projeto de poder, de uma economia política que dá certo e não dá certo. A diferença é que no Rio de Janeiro tem nome e é explícito. A clientelização dos recursos policiais e a sua autonomização predatória para atender a lógicas político-partidárias opera em todo o país. Não é à toa que essa dinâmica não foi exportada do Rio, ela é conhecida de todos.
Quem são os melhores coletores de impostos de Nova York, Chicago, Rio de Janeiro ou qualquer lugar? Os agentes da lei. São eles que podem produzir a fachada de ilegalidade e para isso eles precisam ser heróis. Quanto mais heróis se tornam os policiais, duvide, menos profissionais eles são. Não quero heróis deitados dentro de um caixão. Eu quero policiais profissionais que não se sintam inseguros ao atuar.
Hoje nós assistimos essas carteiradas e desautorizações. Não é à toa que as polícias estão em frangalhos nas suas condições de segurança e saúde ocupacional. As taxas de vitimização são altas, a taxa de letalidade é alta. Quando assistimos a uma alta taxa de letalidade e uma proliferação de operações, são efeitos de uma polícia de espetáculo, da polícia de ostentação. Por que é assim? Porque uma operação com cem policiais tira o policiamento de 100 mil pessoas. São 100 mil pessoas que vão ficar sem policiamento para aquele circo. Como eu tenho uma conta, sabemos como fazer um planejamento. Tudo isso é conhecido dentro da polícia pelos pesquisadores.
O caso da Marielle é exemplar. Ele foi tratado pelos governantes em função dos seus oportunismos políticos e do seu populismo penalista. É por isso que aqui gostamos de explorar o populismo penal, porque, como ele não produz nenhum controle e não gera segurança, ele gera a expectativa de uma vingança futura. Isto valida e legitima dar benesses e privilégios cada vez maiores para os integrantes dessas forças. Estas coisas acontecem há tempos. Não foi por falta de CPI, de testemunhos, de textos, de artigos, de entrevistas narrando esse tipo de coisa que eu estou falando aqui.
O tema foi tratado como série da Netflix, porque produz o medo. Se tem uma coisa que é dramática, é subordinar o tempo tático da polícia ao tempo político. O tempo político da exibição de produtos funciona numa lógica, o tempo investigativo é outro. Quando você subordina o tempo tático da polícia às exigências do político, dá em 174, a vítima sai morta. A diferença nesse caso é que a Polícia Federal teve de fato autonomia para trabalhar e precisou refazer, passo a passo, com cinco anos de atraso, retomar materiais perdidos, refazer os caminhos investigativos contando com o material que foi abandonado dentro do Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal, setores em que há gente boa da polícia, a polícia do bem.
IHU – Qual foi o impacto da investigação da PF nas polícias Civil e Militar fluminenses?
Jacqueline Muniz – As polícias do bem no Rio de Janeiro, tanto na PM como na Civil, estão sendo acuadas e expulsas da rua, porque quem faz os policiamentos no Rio de Janeiro é o crime. Os domínios armados são vários, não existe “a” milícia, não existe “o” tráfico. Foi necessário refazer e acabar com essa Torre de Babel, juntar pedaços de coisas que foram destruídas, de coisas que deixaram de existir. Trata-se de um trabalho lento, meticuloso. Não pode pagar mico, não pode ser precipitado. Então, os anúncios açodados e precipitados de governantes, dirigentes e ministros, dizendo: “olha, tá quase lá, tá chegando lá”, na verdade, compromete o trabalho.
Quem não governa a polícia e a segurança, não governa. Coloca onça no quintal e adula a onça, que é o que fazemos com as Forças Armadas e as polícias. Aqui, as Forças Armadas estão sempre à beira de um ataque de nervos, com os ânimos acirrados. Elas estão sempre nervosas com algo, mas não passam de um bando de poodles que as pessoas colocam uma placa de cachorro bravo para criar a fantasia de que eles são um poder à parte, quando não são e nunca o foram, nem poder moderador. Mas por que isso é uma mercadoria política para ameaçar o oponente político? Quem criou essas autarquias sem tutelas? A estrutura política brasileira. Por isso não só no Rio de Janeiro. Milícia é um nome doméstico, mas a clientelização, a carteirada, desautorização no exercício do poder de polícia e sua privatização, acontece desde a primeira República e foi ficando cada vez mais grave.
E é claro que os policiais aprenderam com o bicheiro, que sempre pagou, porque o bicheiro paga em dia. A diferença é que este paga com ou sem assassinato. Portanto, isso já vem desde o Estado Novo e elegeu muita gente na Baixada Fluminense. Por isso, as milícias têm origens distintas, grupos de extermínio na Baixada, assessoria e segurança do bicho, prestação de consultoria de armas para o crime, liga de autodefesa comunitária, como alguns políticos diziam. O problema não é a origem, mas que todos eles reproduzem a mesma engrenagem, ou seja, o princípio é o comum: o uso da carteira de polícia para propósitos particulares.
O nome disso é corrupção, correto? E não se faz isso sem apoio e construção política. Não é o policial do bem, o policial do mal, não é maçã podre, é o cesto que apodrece a maçã. Não adianta ficar tirando a maçã, é preciso olhar para a estrutura do cesto. E essa estrutura do cesto está dentro de palácios, está dentro dos gabinetes dos alisadores. Por isso, encontramos, tanto no RS quanto no RJ, em todos os lugares, os “alisadores de maçaneta”. Veremos policiais em desvios de função, alisando maçaneta de gabinete e segurando maletas de políticos, porque eles são vaidosos, querem batedores. A função de ajudante de ordem não começou só com Mauro Cid.
Temos atores policiais para colocarmos no pé do outro, como se fosse um chihuahua, para ir lá morder o pé do oponente em toda a máquina do Estado: na prefeitura, no Ministério Público, no Judiciário. Quando no Rio de Janeiro houve uma gritaria de que estariam faltando policiais, eu chamei esses três poderes e pedi de volta os 30% de agentes gastos como babá de autoridade.
Quando alguém vira babá de autoridade, a autoridade deve um favor. Quando alguém quer produzir marketing com apreensão de drogas, armas e pessoas, temos que fechar os olhos para como o saldo operacional é produzido. Porque ele é produzido assim, negociando quem pode viver, quem pode morrer, qual o homicídio que vai ser elucidado, qual não vai, qual é a arma que vai ser prendida, qual será devolvida para o tráfico. A polícia sabe, setores A e B sabem bem o que acontece, a diferença é se vão querer provar e desvendar, ou se vão transformar o saber em mercadoria política. Daí o saber, que é pessoal, intransferível e ambulante. Quando uma pessoa sai do batalhão, leva tudo junto, deixa uma “terra arrasada” para quem chega. Tudo tem preço, até “caverão” já foi alugado e delegacias foram arrendadas. Não é muito diferente em outros lugares.
É toda a polícia? Não. Há uma luta interna, como aconteceu no Rio: havia os setores do MP querendo avançar com a investigação [do caso Marielle], havia setores da Polícia Civil e da PM que não queriam avançar com a investigação, pois atrapalharia os negócios…
Isso [investigação do caso Marielle] pôs um striptease, um holofote. Não é à toa que um dos envolvidos está no Tribunal de Contas.
Estamos em um ano eleitoral. Ou entendemos isso, ou ficaremos como espantalhos dizendo que vamos combater o crime com a inteligência, como se toda inteligência fosse do bem. Na verdade, não temos inteligência, temos uma central de fofoca a serviço dessas lógicas. Quando os políticos ficam falando que vão trabalhar com inteligência, eu sei que estão blefando, estão produzindo cloroquina, porque não tem como demonstrar para a população como a inteligência opera. Ou esqueceram como funcionou o DOI-CODI? Esqueceram como funcionou a polícia de Gregório Fortunato, junto de Getúlio Vargas, que inventou a lógica da tortura e exportou para o resto das polícias no país? Ou esqueceram como é que as coisas eram conduzidas na ditadura?
Quando disse que não teria golpe nenhum no Brasil, bastava pôr luz do sol e holofote e pegar todas as despesas e faturamentos feitos pelas Forças Armadas de 2018 para cá e tirar pelo em ovo, que ninguém ia sair na esquina para perder a matrícula. E nem policial iria para a rua fazer protesto nenhum, porque ele tem empréstimo consignado. Ele não é rico de família, é o único que tem matrícula, tem que tirar as coisas no cartão de crédito para sua família. Virar policial é uma mobilidade, uma ascensão social de uma família que vem de baixo.
Olha quem é um dos Brazão? Está Tribunal de Contas para fazer lavanderia de contas equivocadas de orçamentos duvidosos. É assim que funciona dentro da máquina da prefeitura. Onde é que estão as terras que não têm dono? Onde é que não tem escritura? Onde é que essa região pode crescer? Na Zona Oeste, porque é onde tem mais chácaras, onde ainda não foi plenamente ocupada, então tem terras devolutas, terra de igreja, terra de herdeiros etc. As terras do Estado que são reocupadas. É ali que se cresceu por razões óbvias, porque é preciso explorar a precarização da infraestrutura social e urbana. Por isso é que se mantém aqui a política perversa de “troca o seu cadáver por um milheiro de tesouro”.
Assim, produz-se uma matança, traumatiza a população local: são 140 mil pessoas na Maré, mais de 70 mil no Complexo do Alemão. Não são comunidades da novela das oito, são grandes cidades, bairros imensos. Depois da matança, do braço corrupto forte, vem o programa assistencialista vagabundo para manter a população que paga várias vezes o seu imposto. Os pobres, na periferia das cidades brasileiras, pagam impostos ao Estado, às milícias ou ao tráfico. E como esses domínios duram pouco, porque o tempo todo são extorquidos, eles têm uma instabilidade desejada para garantir a extorsão a fim de possam continuar cobrando deles o aluguel. O cidadão é empobrecido, mas a comunidade, não.
Onde precisa mexer? Na política.
IHU – A partir deste crime e de outros já revelados, que deixaram expostas as entranhas da milícia que age por dentro do Estado, qual seria a reforma estrutural no sistema policial e de Segurança Pública findaria essa relação?
Jacqueline Muniz – A primeira coisa é a regulação do poder de polícia. O poder de polícia no Brasil, no que está no Código Tributário de 1966, é um pode-tudo, um cheque em branco, uma procuração em aberto. E nenhum de nós, em uma democracia, pode assinar um cheque em branco para quem dobra a nossa vontade, para quem tem o poder coercitivo, para quem são as espadas. Não podem ser as espadas que definem a intensidade e a profundidade de seu corte. Não pode ser a faca que decide a intensidade e a profundidade do seu corte. Não pode ser a arma que desenhe a mão e que desenhe o pensamento.
Isso está parado. Por que ninguém mexe? Porque não é só na polícia que isto vai mexer; vai mexer em todo e qualquer agente público na alfândega, dentro da floresta, e qualquer um com poder de fiscalização, como a fiscalização sanitária, que é aquele que dirá que a birosca vai ficar aberta ou fechada porque não atendeu a saúde pública.
Toda a estrutura de controle e fiscalização do Estado é o exercício do poder de polícia. Ele é mais visível, mais tangível e os impactos são mais dramáticos quando mal exercidos, abusivos e de mau uso pelas polícias, sempre com a autorização política.
Esse poder de polícia é setecentista, a inspiração dele é da época de Napoleão, de uma lógica totalitária em que o Estado pode tudo, pode sujeitar o cidadão, pode invadir a sua privacidade, pode encolher os direitos civis. Alguém discute isso? Não. Esse é o primeiro ponto.
O segundo aspecto são os mecanismos de controle da ação policial: eles são invisíveis. O processo decisório do policial, do promotor e do juiz são invisíveis. Para dar transparência e, portanto, segurança e estabilidade ao policial que põe sua vida em risco, é preciso jogar uma luz do sol para produzir responsabilização no Ministério Público e no Judiciário.
Precisamos lembrar que uma delegacia de homicídios só consegue virar um balcão de negócios porque os mecanismos de controle externo do Ministério Público são decorativos, porque nós não temos promotorias especializadas ou exclusivas de controle policial. O que as promotorias fazem, além de estarem sobrecarregadas de trabalho, é controlar o “depois que aconteceu”.
Portanto, ela controla o papel, o tempo de entrega do inquérito, o tempo de diligência, mas ela não controla o processo, como as coisas acontecem: o antes, durante e depois. Ela só controla a ponta do iceberg, pede favor para fiscalizar a delegacia, combina hora e só vê as aparências. Se tiver que entrar em uma comunidade, na favela, na vila, para ir lá ver o que acontece, a delegacia pede uma operação para ser protegida. Ora, se a operação traz problemas, como autoridade, se quiser visitar e ver o que se passa, também haverá a demanda por uma operação.
No Rio de Janeiro, a maior parte das operações policiais são esse espetáculo de circo, só para atender a altas demandas, não para atender a demanda da população de risco real, é para atender as próprias instituições do Estado, atender as demandas da polícia, do próprio Ministério Público. Tem como mexer criando mecanismos de controle: protocolos públicos e publicados. Temos que saber onde começa e termina o poder de polícia e saber traduzir em procedimentos operacionais o que pode e não pode o policial fazer.
Na minha época, nós criamos cartilhas, como também foi criado pela Brigada Militar, há muitos anos atrás, o que pode e não pode o policial fazer em uma blitz, em uma revista corporal, tornando transparentes os processos. Isso reempodera o policial, evita que o policial sofra carteradas na esquina, de quem pode mais, que é bem típico no Brasil, esporte nacional brasileiro, dar a “carteirada de autoridade”. O que serve para “quebrar” a ocorrência de trânsito, o inquérito, uma multa. Para reemponderar precisa de transparência e luz do sol. Precisa mudar a Constituição? Não. Tudo o que eu estou dizendo aqui é de natureza administrativa, procedimental e qualquer delegado, qualquer major, qualquer secretário de segurança pode começar agora, porque inclusive já foi feito experimentado em outras polícias.
Tem que ter uma doutrina de uso da força, coisa que não tem. Não se conhece a doutrina de uso da força potencial e concreta das polícias, nem o comando e nem o policial que aplica. No entanto ela tem o exercício do poder coercitivo, é o que dá superioridade de métodos à polícia, reduzindo o risco de vitimização, de letalidade e de “bateção de cabeça” na rua, de um policial dar carteirada no outro, gerando desautorizações continuadas e impunidade.
Para que haja transparência do processo decisório, que são mecanismos de accountability e responsabilização individual pelo uso do armamento e do gasto com munição – o controle é individual –, isso câmera de vídeo nenhuma controla. A câmera só vai funcionar se houver um programa de controle da ação do policial de tudo isso que estou dizendo, do contrário será como São Paulo: gera a redução [das mortes], depois muda o governo, mascara, porque não é ferramenta que desenha a mão ou a cabeça.
Sempre fabricamos dificuldades alegando que é necessário mudar a Constituição. É claro que tem que mudar o sistema em muitas coisas, porque os modelos de polícia – Civil e Militar – são ruins. No caso da Polícia Militar é ruim porque tem vários níveis hierárquicos na cadeia de comando e controle que inviabiliza a tomada de decisão em tempo real da polícia, ocultando a discricionariedade policial. Portanto, inviabiliza o próprio mando.
O comando-geral da polícia não sabe que acontece na esquina, mesmo dizendo que sabe. Isso é uma limitação de organizações de larga escala. Então, sofre de verticalização profunda que faz com que o oficialato esteja alheio ao que se passa no cotidiano, não podendo, portanto, exercer. Tem uma inversão da cadeia de comando, quem está mais na rua comanda mais do que o coronel, o soldado e o sargento mandam mais. E o “tenentinho”, que acabou de chegar, tem patente maior, mas não entende nada de polícia. Tem uma tensão interna entre o oficialato e as praças em função de uma cadeia de comando rígida, que não é adequada à natureza presente do trabalho policial, que é presentista e situacional, é o aqui e agora.
A emergência, que é o lugar de trabalho de polícia, em todas as modalidades, porque ela atua em nosso medo e medo não se adia, fico obscurecido. O processo decisório de polícia, que é o estado da arte da polícia, agir antes, durante e depois: antes que algo aconteça, durante o acontecimento e depois.
Por conta dessa verticalização excessiva, cada unidade da PM vira uma capitania hereditária, vulnerável como queijo suíço, à clientelização, por baixo, pelo lado e acima [risos].
A Polícia Civil sofre de horizontalização, onde cada delegacia é uma franquia ocupacional ou um “Vaticano independente dentro de Roma”, o que faz com que aquele delegado com cismas para cá ou para lá faz o bem entende. Portanto, o chefe de polícia comanda até a página cinco, ele te que negociar com os esquemas.
Se a pessoa montou um esquema de homicídio e vira chefe de polícia, isso é uma maravilha, subiu o preço e o modo como pode lavar o dinheiro do crime, porque quem dá o lastro de ilegalidade é a polícia, quem dá o papel de bala ao ilícito, quem desaparece com o crime, porque não tem registro do inquérito, é a polícia. Polícia é a cachaça dos políticos em todas as democracias, por isso se dá golpe com a polícia e não com Forças Armadas, porque é caro demais e não controla território. Polícia está em tudo o que é lugar 24 horas por dia. Se houvesse um golpe militar no Brasil, era sete para os PMs versus um para as Forças Armadas, não durava uma hora.
Até a torcida do Corinthians desmontava, porque a nossa logística não permite autonomia de voo no território do Oiapoque ao Chuí. A pergunta é: como um comandante da Marinha vai dar um golpe e levar coisas que boiam para o Planalto Central? Por teletransporte? Tem muito blefe e exagero porque adoramos fabricar heroísmos e da mesma maneira ocultar os processos de negociação de bastidor, no fio do bigode.
Por que não se produz o controle profissional que as polícias também sabem fazer, fortalecendo corregedoria interna e externa? Porque vai implicar em mostrar como o juiz decide e vai ficar evidente que o lavajatismo não foi só uma mania criada pelo [Sergio] Moro. Há uma prática no judiciário, do copia e cola, que atinge vários espaços no judiciário. Quando se explicita como o juiz decide, o notório saber, que fica dentro desse papel de bala brilhoso.
Integro a equipe do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (IAC-UFF), que tem mais de 150 pesquisadores nacionais e internacionais que estudam o funcionamento do Ministério Público, do Judiciário, como são tomadas as decisões, o que influencia as decisões e o funcionamento da polícia e que faz pesquisas empíricas sobre a reforma do sistema de segurança e das polícias. Tem estudos que evidenciam como é barato e fácil fazer essa mudança.
Jogamos tudo na fatura da Polícia, cuja ação mais impacta a população, e ocultamos todo o fluxo de justiça criminal passível de seletividade discriminatória e desigual, um enforcement seletivo que existe no país por razões de classe, de renda, de cor, de gênero e orientação sexual. Na hora que jogamos na luz do sol, que começa com um Tribunal de Contas que é aparelhado. O próprio Ministro Múcio [Teixeira] foi Presidente do Tribunal de Contas e ninguém melhor do que ele para conhecer os gastos das Forças Armadas e como elas funcionam na prestação de contas.
As instituições têm tinta na caneta, não tem democracia em risco com essa vulnerabilidade toda que estamos dizendo. Essa construção de uma vulnerabilidade ilimitada da democracia brasileira é para mostrar que tem uma transição que nunca acaba. Tem pouco mais de 20 anos de ditadura e mais de 40 anos de transição. Esse discurso serve para legitimar práticas autoritárias, sequestros da cidadania, da soberania do sujeito e para legitimar o uso da violência nos espaços populares e para sustentar instituições que estão em risco. Não é bem assim. Essa narrativa legitima e autoriza na esquina o “tiro, porrada e bomba” nos espaços populares e a paz no asfalto, para garantir que todos cheguem no aeroporto.
Não à toa fizeram a GLO de vitrine no Galeão do Rio de Janeiro e em Guarulhos, São Paulo. Ou seja, obrigou a Polícia Federal colocar a bola no gol para as Forças Armadas chutarem, porque a imagem das Forças Armadas está destruída – com chiclete, Viagra, cocaína dentro de avião, golpismo. Um lugar que já é seguro, em que a Polícia Federal já tinha pleno controle e já faz trabalho de apreensão. Logo, é para produzir um efeito caro: gata-se muito dinheiro para produzir um efeito publicitário para que as pessoas de classe média cheguem no aeroporto, que já é um espaço seguro. Temos que no perguntar se estamos produzindo ações para efeito demonstração ou de fato combater os crimes organizados.
É bom lembrar que para o crime organizado funcionar, ele tem que ter três características básicas:
1º) Relação com o Estado.
2º) Enraizamento em determinado território, que dá vantagens logísticas e econômicas.
3º) Diversificação dos produtos criminosos. Não s pode ficar só com a droga, porque não hora em que houver perda de partida, tem que fazer faturamento para pagar fornecedor e folha de pagamento.
Com o domínio do território é possível explorar um conjunto de mercadorias. Por isso, tanto tráfico quanto à milícia tem planos e negócios em comum e, ao mesmo tempo, são sócios em algum lugar, rivais em outro. A marca disso tudo é a instabilidade do exercício de governo e, por isso, são governos e não Estado, são domínios armados provisórios e não Estado.
Tem como resolver? Sim, administrativamente. Vamos olhar para as estruturas municipais, criar protocolos claros e transparentes, controlar o uso da logística da segurança pública, policiais individualizados, vamos colocar luz do sol no processo decisório do ponto de vista criminal, vamos reestruturar a cadeia porque tem como fazer. Porque muro não segura ninguém, impedir a saidinha de banco é só aquecer panela de pressão, porque um Rivaldo ou um chefe do tráfico, tem todo o luxo dentro da cela da sua cadeia. E mais, no Rio de Janeiro, a pessoa saia para praticar delito e voltava para dormir à noite na cadeia. Quem foi que disse que muro de cadeia e cadeia impedem o crime se o Escritório do Crime estava dentro do sistema prisional? Por isso que se demandou a criação de presídios federais.
Esse discurso patético de propostas penalistas não serve porque não se trata de resolver o problema, mas de agravar o temor coletivo, porque quanto mais medo sentimos com esses projetos de segurança, mais barata tonta somos e mais validamos soluções exóticas, extemporâneas, autoritárias e violentadas. Porque medo e insegurança não se adiam, vida não se tem como adiar.
Portanto, é importante uma reestruturação administrativa sim, e ela é administrativa e regimental. Gastamos muito dinheiro e gastamos mal, criando coisas de efeito.
Eu gostaria de deixar minha mensagem ao presidente da República.
Eu colaborei em todos os programas das campanhas [de segurança] e nesse último eu fui uma das relatoras. Uma pena que esse programa não foi adiante porque foi trabalhado com toda a população e sendo realista, um realismo que não via “Jesus em goiabeira” ou um bando de “cloroquinas” da segurança – propostas sem fundamentação científica ou empírica. Unificação de polícia vai na contramão, porque produz monopólio e assim o vigia, por exemplo, é mais forte do que o cidadão. Espadas autonomizadas cortam a língua do verbo da política, à direita, à esquerda, ao centro e ao lado e rasgam a letra da lei – é isso que produz golpe.
Eu diria ao presidente Lula que ainda dá tempo, já que várias vezes ele prometeu uma reforma, mas depois recuou, não está muito certo de onde quer ir.
Presidente Lula, para que nós passamos ter os dentes que o senhor está nos oferecendo através das políticas de saúde da Nísia [Trindade], possamos comer a picanha e a cerveja barata ou algo vegano, que o [Fernando] Haddad possibilita com uma política econômica para que, então, com o dente na boca, vacinado e podendo ir ao supermercado, aproveitar e curtir com as políticas culturais de Margareth Menezes e com tudo isso poder ir à escola com o “Pé de Meia” é preciso estar vivo. É preciso estar seguro. Nós precisamos que a juventude esteja segura. A segurança é a abundância de futuro, a segurança no sambódromo, por onde os direitos desfilam, é o que dá previsibilidade, estabilidade e regularidade no exercício do poder.
Quando ficamos com a narrativa eterna de golpe, colocamos no final da fila direitos, porque como estamos em uma transição com a democracia ameaçada, não é possível atender à sociedade e, portanto, mulheres, negros, povos tradicionais, povos indígenas e pessoas LGBTQIA+ vão para o final da fila. Nós não vivemos uma série de Netflix, nós vivemos a vida e democracia para nós está na esquina, quando entro no supermercado ou quando pego um ônibus etc., quando tenho mobilidade social e espacial, é isso que a Segurança provê e por isso ela é a abundância de futuro; a insegurança é a escassez de futuro e nos faz dependentes de políticos clientelistas e populistas que usam a polícia como muro.
Se quisermos mesmo resolver esse problema federativamente é possível, pode começar agora, a baixo custo. É tão prosaico que até desconfiamos. Ao invés de colocar o problema lá longe, encolhendo o futuro da sociedade e reproduzindo desigualdades por ausência de segurança, está a mão e com baixo custo com protocolos públicos e publicados sob a gestão da população. Com isso, vamos blindar a polícia e o policial deixará de ser zumbi de policiamento morto vivo, a serviço de lógicas as quais o adoecem. Cabe lembrar que a polícia brasileira tem uma das taxas de suicídio mais altas do mundo, desde que eu fiz a primeira pesquisa em 1995. É muito sério, não dá para esperar mais. Vida não se espera, medo não se adia. Vida se vive no tempo presente.
Segurança pública é abundância de futuro, é horizonte. Portanto, a esperança que nos permite sonhar e imaginar o futuro. Não dá mais pra blefar, chega de cloroquina na segurança.