O marketing ostensivo torna os alimentos ultraprocessados um desejo dentro do capitalismo. Entrevista especial com Raquel Canuto

A forma como esse tipo de alimento é glamourizada faz com que as pessoas tenham vontade de consumir uma pizza ou refrigerante para ocupar outro lugar social, explica a pesquisadora

Foto: Flávio Fontana Dutra | UFRGS

Por: IHU e Baleia Comunicação | 27 Agosto 2024

O poder financeiro no Brasil consolida e reproduz a hierarquia social ao longo do tempo e das mais diferentes formas. Em relação ao direito humano à alimentação adequada e saudável, isso se reproduz nas escolhas das políticas de produção e consumo de alimentos, fortemente marcadas pelo domínio do agronegócio e da indústria de ultraprocessados no lobby nas casas legislativas.

Como resultado dessa relação de forças, os alimentos ultraprocessados estão no rol de uma agenda “que está dentro do Senado e da Câmara, com relação ao agribusiness no Brasil”, explica Raquel Canuto. Estes alimentos estão envoltos em uma “lógica de monocultura, de concentração de renda, de uso extensivo da terra e de combustíveis fósseis, onde haverá uma maior quantidade de embalagens”, assevera. Além disso, “teremos, em certo sentido, uma cadeia, até chegar ao supermercado, que tem uma exploração da força de trabalho, uma concentração riqueza no país”, complementa.

Com isso, a alimentação pode também ser observada como um ato político, pois as opções do que colocamos em nossos pratos definem o sistema alimentar que vamos priorizar. “Comer é um ato político na medida em que, quando fazemos uma escolha alimentar, estamos influenciando diferentes formas de produzir os alimentos”, explica. “Portanto, eu posso, ao escolher o alimento que consumo, privilegiar formas de trabalho, de vida e de sistemas alimentares que estão mais relacionados ao cuidado do meio ambiente, aos direitos trabalhistas, ao direito da terra e da água”, pondera.

Entusiasta do Guia Alimentar para a População Brasileira, Raquel destaca a importância do material para a segurança nutricional dos brasileiros. “É um documento muito rico porque ele traz reflexões sobre o sistema alimentar, sobre a forma de comer, se comemos ou não acompanhados”. Além de trazer dicas para enfrentarmos “as barreiras para termos uma alimentação mais saudável. Então, é um material riquíssimo que vai além dessa recomendação com relação aos ultraprocessados”, acrescenta na entrevista a seguir concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Raquel Canuto (Foto: UFRGS)

Raquel Canuto é professora adjunta do Departamento de Nutrição e coordenadora do PPG em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É docente permanente no PPG em Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutora em Ciências Médicas: Endocrinologia pela UFRGS, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e bacharel em Nutrição pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Realizou estágio pós-doutoral em Nutrição em Saúde Pública (UFPE). É membro titular do Comitê de Assessoramento da Área da Ciências da Saúde da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), gestão 2022-2024. Líder do DESAN-UFRGS – Grupo de Estudos em Determinantes Sociais da Alimentação e Nutrição.

Confira a entrevista.

IHU – Pode explicar o que é e qual a importância do Guia Alimentar para a População Brasileira?

Raquel Canuto – O Guia Alimentar para a População Brasileira é um material superimportante porque vai direcionar todas as políticas de alimentação e nutrição no Brasil, em primeiro lugar. Ele é um guia que reúne as principais evidências sobre alimentação saudável no Brasil e, a partir disso, faz recomendações que vão desde a população de forma geral até os profissionais de saúde. Importante pensar que é uma guia para a população brasileira, então ele é baseado em uma ciência produzida no Brasil para o Brasil e pensado a partir do padrão alimentar dos brasileiros. É uma guia fundamental, a grande maioria dos países têm seus guias e, no Brasil, a que temos agora é uma segunda versão do guia, a primeira versão foi publicada no início dos anos 2000 e está em constante revisão.

O nosso Guia é conhecido nacional e internacionalmente porque traz uma abordagem a partir de uma nova classificação dos alimentos. Nós trabalhávamos muito com o paradigma da pirâmide alimentar, com os grupos de alimentos: carboidratos, lipídios, proteínas. Havia uma recomendação e uma organização a partir disso. E então surge a recomendação que se dá pelo nível de processamento dos alimentos. Esse é o primeiro guia que traz essa nova classificação, que foi baseada também em ciência e nas evidências de que o consumo de alimentos ultraprocessados, ao longo dos últimos anos, estava trazendo consequências negativas à saúde da população no Brasil e em outros países do mundo. A partir disso veio o consenso de classificar os alimentos a partir do nível de processamento – esse é um conceito que foi proposto pela Universidade de São Paulo – USP.

(Arte: IHU)

IHU – Qual a diferença entre alimentos ultraprocessados e alimentos in natura? Quais os impactos de um e de outro na saúde humana e ambiental?

Raquel Canuto – A principal contraposição entre os alimentos ultraprocessados e os alimentos in natura é que os alimentos ultraprocessados são produzidos a partir de parte de outros alimentos. São alimentos que contêm um grande nível, muitas vezes, de gordura, açúcar, mas também corantes, edulcorantes e até conservantes, além de uma quantidade bastante grande de sal. E, na maioria das vezes, são alimentos que não encontramos na natureza. Podemos pegar como exemplo um salgadinho de milho – Fandangos –, temos ali um produto que é feito a partir de partes de outros alimentos.

O que são “partes de outros alimentos”? Por exemplo, pega o amido, a farinha e o açúcar e compõe um novo alimento, que é esse alimento que é industrializado. Esse alimento, com partes de outros alimentos, não é reconhecido pelo organismo da mesma forma que um alimento completo. É bem diferente eu comer uma parte, o amido do trigo, do que comer o grão de trigo inteiro porque o grão de trigo terá outros nutrientes além do amido, como a fibra, e outros componentes que são reconhecidos pelo nosso corpo e que vão ajudar a nossa microbiota.

Os alimentos ultraprocessados não são, muitas vezes, reconhecidos como alimentos. Há evidências de que isso pode afetar nossa microbiota, mas também na grande maioria das vezes são alimentos ricos em sal, açúcar, gorduras e edulcorantes e temos evidências que o consumo desses alimentos traz riscos à saúde. Eles são fatores de risco para obesidade e para as doenças cardiovasculares.

Por outro lado, os alimentos in natura são basicamente alimentos que tiramos da natureza e consumimos. Podemos pensar nas verduras, frutas, grãos, feijão, carne, ovos, são os alimentos que comemos como eles saem da natureza, às vezes trazemos algum processo de secagem para ele durar mais, mas são muito parecidos com o que encontramos na natureza. E, claramente, são alimentos que deveriam fazer base da nossa dieta porque vemos que, em pessoas que têm esses alimentos como base, temos melhores padrões de saúde, tanto do ponto de vista de peso como de doenças cardiovasculares.

Ultraprocessados e agronegócio: elos da mesma corrente

Com relação ao meio ambiente, podemos pensar que, para produzir os alimentos ultraprocessados, na maioria das vezes é necessário haver partes de outros alimentos e, basicamente, estamos privilegiando uma forma de agricultura que é baseada no extrativismo e somente na monocultura. Podemos pensar em uma agricultura que ocupa muita terra, em uma agricultura que usa muitos agrotóxicos, além da questão dos Organismos Geneticamente Modificados – OGM [transgênicos], que estão sempre andando de mão dadas com os agrotóxicos e com o uso exaustivo da terra. As indústrias que fabricam esses alimentos fazem uso dessa forma de agricultura.

Existe um problema relacionado às embalagens. Às vezes, para comer três biscoitos temos duas camadas de embalagens. Além disso, tem a questão dos combustíveis fósseis, porque os alimentos viajam de um local para outro, o que difere de pensarmos em uma alimentação mais baseada nos alimentos in natura. Quando pensamos em alimentos in natura, neste tipo de alimentos e no sistema alimentar, obviamente que precisamos privilegiar os alimentos que são produzidos próximos da gente, pela agricultura familiar. Se pudermos olhar para a questão dos agrotóxicos também é importante. Portanto, privilegia todo um sistema alimentar que é mais saudável do ponto de vista ambiental do que a produção dos alimentos ultraprocessados, que são produzidos pela indústria de alimentos. Temos aí um impacto ambiental bastante diferente.

IHU – Em que sentido comer é um ato político?

Raquel Canuto – Comer é um ato político na medida em que, quando fazemos uma escolha alimentar, estamos influenciando diferentes formas de produzir os alimentos, que podemos pensar a partir dos sistemas alimentares. Isso ocorre a partir da forma como esse alimento é produzido, o uso da terra, do direito à terra, como é cultivado, transportado e comercializado.

Subvertendo à lógica nas escolhas

Portanto, eu posso, ao escolher o alimento que consumo, privilegiar formas de trabalho, de vida e de sistemas alimentares que estão mais relacionados ao cuidado do meio ambiente, aos direitos trabalhistas, ao direito da terra e da água. Além disso, às cadeias curtas, onde a pessoa que vende o alimento é bem remunerada e não passa por uma série de atravessadores até chegar à mesa, posso escolher alimentos livres de agrotóxicos, que têm um impacto no meio ambiente e na vida das pessoas muito menor.

Ou posso estar escolhendo outro alimento que tem uma outra lógica econômica, política e de produção. Trazendo a questão de novo: uma lógica de monocultura, de concentração de renda, de uso extensivo da terra e de combustíveis fósseis, onde haverá uma maior quantidade de embalagens. Teremos, em certo sentido, uma cadeia, até chegar ao supermercado, que tem uma exploração da força de trabalho, uma concentração riqueza no país.

Podemos pensar que a alimentação é um ato político na medida em que temos a escolha do que vamos comer. Gosto de usar o seguinte exemplo: eu, como nutricionista, para o lanche da tarde, posso prescrever uma banana ou uma barra de cereal.

Uma banana que foi cultivada em Itati (RS), no nosso litoral, que foi vendida na feira, no sábado, pela própria pessoa que produziu a banana, que é livre de agrotóxicos e com um comércio justo. Ou posso prescrever uma barra de cereal de uma grande marca de alimentos, que não sei muitas vezes do que é composta, do ponto de vista nutricional, talvez não seja tão atrativa quanto à banana. Mas que também vai privilegiar outros sistemas alimentares, outras formas de produzir alimentos muito mais relacionadas a esse processo de industrialização dos alimentos, que tem uma série de consequências quando é feito em grande escala. E o lucro dessa barra de cereal é dado especificamente para uma pessoa ou um grupo muito específico que está aí há muito tempo explorando esse mercado.

O lanche da tarde produz diferentes efeitos e teremos uma escolha. Essa escolha do que comemos deve ser para além dos macro e micronutrientes, mas tem que pensar que sistema alimentar estou apoiando quando faço uma escolha. Dessa forma, comer se torna um ato político.

IHU – De que ordem é a conta na saúde pública do consumo elevado de produtos industrializados? Quais as principais comorbidades verificadas massivamente na população associada à má alimentação?

Raquel Canuto – O que as pesquisas desse campo, que chamamos de Epidemiologia Nutricional, mostram, nas últimas três, quatro décadas, é que todas as populações que saíram do seus padrões de alimentação mais tradicionais, que no Brasil é arroz, feijão, ovo, salada e carne, e passaram para um padrão de alimentação que chamamos de alimentação mais ocidentalizada, que tem como principal característica o aumento do consumo de alimentos industrializados, mas também a ideia de trocas refeição por lanche, aumentar o consumo de bebidas adoçadas, o consumo de carne e de óleos vegetais, todas as populações que fizeram essa modificação tiveram um aumento das doenças crônicas não transmissíveis.

Vem daí, inclusive a proposição da nova classificação dos alimentos, em uma tentativa de resgate daquela alimentação mais tradicional, que chamamos de “comida de vó”, “comida de verdade”, que são, basicamente, os alimentos in natura ou aqueles que precisam ser processados para serem comidos ou cozidos, então, estão em preparações culinárias.

Conseguimos ver que isso tem avançado em todos os países, principalmente alavancado pelo desenvolvimento econômico, pela industrialização. Percebemos que alguns países estão com os processos mais avançados do que outros. Então, temos países como Estados Unidos e Canadá, em que grande parte do que as pessoas consomem vem de alimentos industrializados – estou falando de quase 50% do que as pessoas consomem.

No Brasil, embora o consumo desses alimentos esteja crescendo ano a ano, nós ainda temos um percentual de calorias que vem desses alimentos muito menor do que nesses outros países – isso giro em torno de 20% a 25% no país. Isso significa que nós temos um sistema alimentar tradicional um pouco mais preservado e é por isso que advogamos: pela manutenção desse sistema alimentar, para que possamos valorizar esses alimentos que são base da nossa alimentação e que vão mudar de estado para estado. Em alguns estados há um costume maior de comer arroz e feijão, em outros polenta, cuscuz, massa, tapioca, esse tipo de alimento que sempre fez base da nossa alimentação.

No Brasil tem a mesma associação que vemos em outros países: um aumento das doenças crônicas, mas principalmente um aumento bem expressivo das pessoas com obesidade e o que os estudos têm mostrado: o aumento da obesidade e o aumento das doenças crônicas não transmissíveis podem sim ser atribuídos ao aumento do consumo desses alimentos industrializados em detrimento aos alimentos in natura ou minimamente processados.

IHU – Não é difícil resvalar em um preconceito de classe, mesmo nos referindo a pessoas politizadas, quando se trata de criticar a população que consome produtos ultraprocessados, quase sempre mais baratos que os naturais. Como inverter essa balança da gourmetização da alimentação saudável?

Raquel Canuto – Como inverter isso e não cair, de novo, em um discurso de culpabilização das pessoas? Porque a saúde pública brasileira e internacional é bastante conhecida por culpabilizar os indivíduos pelos seus modos de vida. Às vezes as pessoas têm certos de modos de vida, a forma como se alimentam, fazem ou não atividade física ou quanto conseguem balizar seu sono e sua saúde balizados por questões de desigualdade social. Por questões socioeconômicas que perpassam a renda, a escolaridade, onde a pessoa mora, o gênero e por questões étnico-raciais. Então, como que a gente encara o problema do aumento excessivo de consumo de ultraprocessados? É importante marcar: tem aumentado nos últimos anos, principalmente nas pessoas de menor posição socioeconômica no Brasil, em especial entre as mulheres negras e indígenas, pessoas mais pobres e com baixa escolaridade. Como não culpabilizar essas pessoas e pensar em políticas que sejam propositivas? Isso é bastante importante de se pensar.

Primeiro, devemos pensar em políticas que tornem os alimentos ultraprocessados menos atrativos do ponto de vista financeiro, como estamos vendo agora na Reforma Tributária, mas que se ofereça uma solução também para que os alimentos saudáveis cheguem até essas pessoas. Porque muitas vezes as pessoas pobres deixaram de consumir arroz e feijão, que fazem parte da sua cultura alimentar, porque não conseguem acessar esses alimentos. E tornar mais acessíveis não é só do ponto de vista monetário, mas também de encontrar esses alimentos nas suas áreas.

Trabalhamos na área de avaliação de ambientes alimentares e sabemos que a oferta, o acesso a esses alimentos nas “vendinhas”, quitandas, é muito menor em áreas mais pobres e de maioria de pessoas negras, do que áreas onde temos a maior proporção de pessoas brancas e uma maior concentração de renda. Por isso também temos que pensar em acesso, que podem se dar por equipamentos comerciais, mas também por equipamentos e políticas públicas que tornem esses alimentos também mais acessíveis, como sacolões, feiras do agricultor. Temos que pensar o redesenho da forma como esses alimentos estão chegando na mesa dos brasileiros, porque também tem outra ideia que é bastante preconceituosa de que falta conhecimento para as pessoas mais pobres e por isso não se alimentam de forma saudável. Sabemos que não. Muito disso está relacionado ao poder e ao não poder.

O marketing glamouriza os ultraprocessados

Outra coisa que é bastante massiva nos alimentos ultraprocessados é o marketing. Então, temos um marketing bastante ostensivo desses alimentos ultraprocessados, que tentam criar uma glamourização do alimento ultraprocessado. Tem a gourmetização dos alimentos saudáveis, mas tem uma tentativa de glamourizar, de tornar o alimento realmente um desejo dentro do capitalismo. De forma que o desejo de consumir um refrigerante, uma pizza coloca as pessoas em outro lugar social. Como que podemos ter medidas de regulamentação da mídia, principalmente voltada para crianças e adolescentes. É bastante importante pensarmos em termos de preço e acesso e o imaginário que se cria em torno desses alimentos.

IHU – A atual edição do Guia Alimentar foi atualizada descrevendo o nível de processamento dos produtos, dando maior transparência para a composição e o modelo de produção dos alimentos. Que tipo de informação os consumidores encontram no documento e qual a importância de compreender os diferentes níveis de processamento?

Raquel Canuto – Embora tenha essa classificação, que às vezes pode parecer complexa para a população em geral – ultraprocessado, processado, minimamente processado, in natura, preparação culinária – podemos pensar que a grande mensagem – e o Guia coloca isso –, a regra de ouro é evitar o consumo de alimentos ultraprocessados.

Os alimentos ultraprocessados são aqueles industrializados que tem uma lista de ingredientes bastante grande, normalmente mais de cinco ingredientes, e quando viramos o rótulo para ler os ingredientes, quando lemos aqueles ingredientes, não conhecemos muitos deles. Na maioria das vezes têm muitos poucos ingredientes que conhecemos, como, por exemplo, farinha de trigo, açúcar, sal, batata ou componentes que reconhecemos como alimento. No geral, vamos ter componentes que não conhecemos os nomes. Isso torna-os bastante fácil de identificar. E são alimentos que não encontramos naturalmente na natureza. Essa é a mensagem que o guia coloca.

Mas à medida que temos interesse em ler esse material do guia, ele vai complexificando essa classificação. Obviamente que precisamos transformar o alimento, por exemplo, pegamos uma carne e transformamos em outro elemento, para isso vamos precisar usar açúcar, óleo e sal. O Guia considera esse aspecto e diz que é muito diferente fazer uma massa em casa e acrescentar óleo, sal e algum tempero, do que comprar uma massa Nissin Miojo, por exemplo.

O Guia vai trazer um pouco dessas questões, mas também sugestões de pratos do que podemos comer nas diferentes refeições, e, o que é muito legal, respeitando as diferentes regiões e a cultura alimentar do Brasil, porque o Guia Alimentar leva em consideração a alimentação do brasileiro. De forma que ele não vem com aquelas dietas que são dietas baseadas na dieta do Mediterrâneo ou de uma cultura alimentar que não é nossa. Então, ele é bastante conectado com o que o brasileiro come e foi feito a partir das pesquisas que desvelam para gente o que a população come.

O Guia é muito mais do que isso, ele é um documento muito rico porque ele traz reflexões sobre o sistema alimentar, sobre a forma de comer, se comemos ou não acompanhados, quem que prepara os alimentos em casa, é a mulher que prepara, quem que se envolve, como é feita a compra dos alimentos. Além disso, traz algumas sugestões para enfrentarmos as barreiras que todos nós temos para uma alimentação mais saudável. Então, é um material riquíssimo que vai além dessa recomendação com relação aos ultraprocessados, embora tenha ficado marcado como a principal recomendação para que evitemos esses alimentos.

IHU – O Guia Alimentar é publicado pelo Ministério da Saúde. Contudo, é o mesmo poder, o Executivo, na pasta da Agricultura, que em seu orçamento destina uma parcela imensa de recursos para o agronegócio produtor de commodities, não de alimentos. Como compreender essas complexidades e contradições?

Raquel Canuto – Quem trabalha com política pública trabalha com muitas contradições e muitas forças econômicas e políticas. Sabemos que temos uma agenda muito clara no Brasil, que está dentro do Senado e da Câmara, com relação ao agribusiness no Brasil. Ao mesmo tempo em que temos um guia que vai nos dizer para não consumir comida ultraprocessada e pensar no meio ambiente, teremos um incentivo a esse tipo de negócio dentro do governo por questão realmente de lobby político.

Guia Alimentar: vitória do povo brasileiro

Uma questão que foi criticada quando o guia saiu é que ele não fazia uma crítica contundente ao agrotóxico, que é uma das principais questões relacionadas às commodities, ao uso extensivo da terra e ao uso agressivíssimo de agrotóxicos que temos no Brasil.

O Guia Alimentar foi publicado no final da gestão do Ministro Arthur Chioro, e foi uma das últimas ações dele. Era um documento que vinha sendo discutido amplamente na sociedade, principalmente no campo da alimentação e nutrição, e em algum momento ficamos todos temerários de que talvez o Guia não fosse lançado. Mas, ele foi lançado naquela época, que era um momento muito difícil, em 2014, no fim do primeiro governo da Dilma e em um momento político muito sensível. Já estávamos passando por algumas dificuldades e já tínhamos passado pelas manifestações de junho de 2013.

Naquele momento saiu o Guia que de alguma forma se opõe à indústria de alimentos e entendemos isso como uma grande vitória. Não é à toa que o Guia sofre ataques até hoje da indústria de alimentos e do agro. Nós vimos naquele momento como um ganho bastante grande, ainda que ainda tenhamos muitas coisas para pensar sobre soberania e segurança alimentar no Brasil e em políticas públicas deem conta do espectro ideal, mas, naquele momento, ele foi muito comemorado.

IHU – Por que devemos pensar a questão da alimentação não somente no nível nutricional, mas também em termos econômicos, sociais e políticos?

Raquel Canuto – Falamos que não comemos só nutrientes, mas que comemos alimentos. O campo da alimentação e nutrição no Brasil tem frisado muito isso nos últimos anos: não comemos nutrientes isolados, comemos alimentos e temos padrões alimentares. Quando saímos da ideia de nutriente para alimento, complexificamos essa discussão para pensarmos as formas de produção desses alimentos, que podemos pensar a partir da ideia de sistema alimentar.

O que consumimos, em última instância, será influenciado por questões políticas, econômicas, sociais e culturais. O contrário também é verdadeiro na medida em que também escolher uma alimentação X ou Y também vai se relacionar dessa forma. É importante pensarmos que comer é um ato coletivo, temos questões relacionadas à nutrição, que olha para os efeitos dos nutrientes no organismo e relacionada à saúde, mas o comer é um comer coletivo e a disponibilidade de alimentos depende desse sistema alimentar que depende de políticas econômicas e socais. No sentido de que é o país que vai decidir produzir soja ou gado para a exportação ou se vai privilegiar a agricultura familiar, que é de onde provém grande parte da alimentação para a população.

Tem uma série de decisões políticas e econômicas que vão ditar o que está disponível na mesa para nós por isso é importante que tenhamos noção disso, da complexidade que é um alimento, em última instância, chegar ao nosso corpo e dos nutrientes serem absorvidos. Essa disponibilidade vai depender muito dessas ações, desde as políticas econômicas que pensam subsídios – eu falava antes do uso da terra. O que o Brasil vai escolher incentivar em termos de formas de produção de alimentos ou podemos pensar nas políticas voltadas para a emergência climática, isso tudo vai definir o que comemos.

Assegurar o direito humano à alimentação

Temos que pensar também nas pessoas que não comem. Tem uma grande parcela da população brasileira – isso melhorou no último ano – que passa fome e se não passa fome, não consegue acessar ao direito humano à alimentação adequada e saudável, que é podermos ter acesso regular aos alimentos que entendemos como saudável e que são socialmente e culturalmente referenciados. Uma parcela muito grande dos brasileiros e das brasileiras não consegue ter isso. Então, também precisamos de políticas públicas que olhem para essas pessoas, além de olhar para a questão da desigualdade social e de renda no Brasil para que todos nós, de alguma forma, possamos acessar esses alimentos do ponto de vista de desigualdade econômica.

Esses são alguns aspectos de podemos pensar. A alimentação é sim algo que fazemos coletivamente, pois escolhemos enquanto sociedade que tipo de sistema alimentar queremos privilegiar e fomentar. E esse sistema alimentar terá de certa forma como um output, um certo tipo de alimento mais ou menos saudável.

A própria questão da liberação absurda de agrotóxicos é um problema que precisamos também enfrentar. Porque esse agrotóxico está no meio ambiente, está chegando na nossa mesa e no nosso corpo via alimento, o que é, de certa forma, uma maneira de nos intoxicar. A sociedade precisa pensar sobre isso enquanto conjunto e combater conjuntamente no sentido de não aceitar esse tipo de ação e de política, que não deixa de ser também uma política.

IHU – Que tipos de políticas públicas podem ser implementadas para que possamos garantir à maior parte da população o direito à segurança alimentar com produtos saudáveis e acessíveis?

Raquel Canuto – Tem uma série de políticas que têm sido pensadas e desenvolvidas para pensar na segurança alimentar e nutricional para toda a população. Quando pensamos nessa pergunta, a primeira coisa que vem à mente é que muito da fome e da insegurança alimentar é produto da desigualdade social. Então, a desigualdade social é o principal problema que temos no Brasil. Se conseguíssemos enfrentar a desigualdade social e a desigualdade econômica, poderíamos ter cenários bastante diferentes com relação à segurança alimentar.

Políticas de produção de alimentos

Mas, indo para uma questão mais possível, mais imediata, primeiro, precisamos pensar nas políticas de produção de alimentos: que forma de alimentos queremos produzir, como queremos produzir, de que forma vamos pensar no acesso à terra e trabalho, relacionados à produção de alimentos. Vamos incentivar a produção de alimentos que é àquela produção para comermos? Ou vamos ter uma política para alimentos para exportação, commodities e a própria questão do uso de sementes para ração animal, que está relacionado a um consumo excessivo de carne que temos no Brasil hoje, que é um problema também do ponto de vista ambiental? Pensar na produção de alimentos é essencial.

O ideal é privilegiarmos os pequenos agricultores. Mas precisamos ligar os pequenos agricultores ao consumidor. Então, pensar políticas de acesso, de tornar esses alimentos próximos das pessoas, principalmente daqueles que não estão conseguindo acessá-los. Sabemos que são as pessoas mais pobres, que estão nas periferias ou mesmo nos centros urbanos – nem sempre as pessoas mais pobres moram nas periferias –, mas não necessariamente esse alimento está chegando nessas pessoas.

Subsídios à alimentação saudável

Com isso, também temos que pensar em subsídios fiscais que os alimentos sejam mais saudáveis e, ao mesmo tempo, realmente na taxação e sobretaxação sobre os alimentos que não são saudáveis – a sociedade brasileira está fazendo uma discussão bem séria sobre o assunto e eu entendo que até bastante madura. Estamos em um momento em que é uma oportunidade bastante grande de taxar álcool e alimentos que não fazem bem à saúde, que no final oneram o sistema de saúde com relação às doenças crônicas que causam.

Além disso, ver a questão da renda. O Bolsa Família está aí também como uma política que foi bastante bem-sucedida. Temos uma série de pesquisas que já foram realizadas mostrando que o Bolsa Família, o acesso à renda, melhorou muito a alimentação das famílias, principalmente das crianças e mulheres isso tem um impacto nutricional. São ações que podem ser reforçadas.

Podemos pensar também nos equipamentos de segurança alimentar e nutricional que fazem parte do Estado. Como os restaurantes populares, que são lugares onde as pessoas de baixa renda ou que estão em situação de rua poderiam acessar alimentos.

Cozinhas solidárias

Hoje temos uma política que não é uma política pública de Estado, mas foi incorporada às políticas do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que são as cozinhas solidárias. Elas têm feio um trabalho maravilhoso desde a pandemia de fornecer alimentação às pessoas vulnerabilizadas e agora, nas enchentes [no RS], elas tomaram um papel fundamental. Essa gestão do governo federal está entendendo que são ações muito potentes, está financiando e trazendo para o rol de políticas de segurança alimentar e nutricional.

Temos também as discussões de ambientes alimentares, de como podemos ter ambientes mais saudáveis, que tenham maior oferta de alimentos saudáveis em detrimento dos não saudáveis, porque essa é uma grande barreira que as pessoas encontram. Às pessoas às vezes até querem comer mais saudável, mas quando chegam nos espaços para adquirir alimentos não os encontram. São algumas coisas que podemos pensar.

A própria política fiscal que está sendo proposta, se conseguirmos ir adiante e baratear o alimento saudável e encarecer o alimento não saudável, essa é uma das políticas que pode ter um efeito mais benéfico para os brasileiros. São políticas que podem reforçar a própria política de alimentação escolar, que é uma política super de sucesso no Brasil. Tem mais de 40 anos e está aí entregando alimentos saudáveis, da agricultura familiar e muitas vezes orgânicos nas escolas, tem um efeito gigantesco na saúde alimentar das crianças.

O Brasil tem um rol de políticas de segurança alimentar, que inclusive são exemplos para outros países no mundo. Temos tido bastante sucesso na proposição de muitas políticas de segurança alimentar. Algumas precisam ser intensificadas, mas de fato temos essa dificuldade muito grande de interlocução das nossas casas legislativas com o lobby. O Rio Grande do Sul vive de uma forma bastante intensa isso, porque esses espaços são tomados por uma agenda que é do agronegócio, que muitas vezes não é uma agenda que nos permite avançar em discussões que são fundamentais para pensarmos no direito humano à alimentação adequada para todos os brasileiros.

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