“Há uma uniformização do consumo alimentar no Brasil e, com a entrada dos alimentos ultraprocessados no dia a dia da dieta alimentar, um aumento das taxas de sobrepeso, obesidade, diabetes e doenças crônicas”, adverte a historiadora
A fome é “resultado das nossas relações sociais; um produto da nossa desigualdade de raça, classe e gênero”, que acompanha a história do desenvolvimento brasileiro, afirma Adriana Salay, historiadora que pesquisa o Brasil contemporâneo à luz de temas relacionados à fome, identidade e hábitos alimentares. “A fome está no país desde a invasão e colonização, quando organizamos um modelo de sociedade em que uma parte da população tem acesso regular a uma quantidade de alimentos, e outra parcela, não. Por isso a fome sempre esteve presente, em maior ou em menor grau. Em alguns momentos ela é mais acentuada e, em outros, diminui”.
Uma das criadoras do projeto Quebrada Alimentada, que assistiu famílias em situação de insegurança alimentar durante a pandemia, fornecendo refeições diárias e, posteriormente, cestas básicas em um bairro periférico em São Paulo, Adriana explica que, apesar de a questão da fome ser uma constante no país, com períodos mais ou menos intensos, hoje há um entendimento mais amplo acerca deste problema social. “É o que chamamos de escalas de insegurança alimentar. É um tipo de fome que não está só enquadrada na fase de inanição, que é a última fase, quando a pessoa não tem absolutamente nada para comer. Hoje, fome não significa necessariamente o que o ex-presidente chamava de ‘corpos esqueléticos’: as pessoas não têm acesso constante a alimentos de qualidade e não necessariamente estão com esses corpos esqueléticos”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Adriana Salay reflete sobre as formas e os desafios de enfrentamento à problemática da fome e discorre sobre as mudanças em curso nos hábitos alimentares dos brasileiros nos últimos 50 anos. Segundo ela, progressivamente há uma “diminuição do consumo de alimentos que antes eram centrais, como as farinhas de mandioca e milho, feijão e arroz” e “um aumento progressivo, conforme os anos, dos produtos industrializados que chamamos de ultraprocessados”.
Adriana Salay (Foto: Arquivo Pessoal)
Adriana Salay é graduada e mestre em História pela Universidade de São Paulo – USP e doutoranda em História Social pela mesma instituição.
IHU – O que a história do Brasil revela sobre a fome no país? A situação de fome e insegurança alimentar observada no presente é constitutiva do Brasil? Em que períodos da história a fome foi mais acentuada?
Adriana Salay – Assim como o aumento do consumo de ultraprocessados é um resultado da nossa sociedade, a fome também se enquadra como resultado das nossas relações sociais; é um produto da nossa desigualdade de raça, classe e gênero – e com isso ela é histórica também. A fome está no país desde a invasão e colonização, quando organizamos um modelo de sociedade em que uma parte da população tem acesso regular a uma quantidade de alimentos, e outra parcela, não. Por isso a fome sempre esteve presente, em maior ou em menor grau. Em alguns momentos ela é mais acentuada e, em outros, diminui.
Não podemos traçar uma linha contínua da fome no país porque a forma de medir e de entender a fome se alterou muito ao longo dos anos e não temos acesso a esses números. Teríamos que ter acesso a números medidos da mesma forma para saber se anteriormente a fome era maior ou menor. O que temos hoje é um entendimento de uma noção de fome mais ampla do que tínhamos antigamente. É o que chamamos de escalas de insegurança alimentar. É um tipo de fome que não está só enquadrada na fase de inanição, que é a última fase, quando a pessoa não tem absolutamente nada para comer. Hoje, fome não significa necessariamente o que o ex-presidente chamava de “corpos esqueléticos”: as pessoas não têm acesso constante a alimentos de qualidade e não necessariamente estão com esses corpos esqueléticos.
Observamos, no começo do século XXI, uma diminuição da fome por uma série de políticas públicas que enfrentaram esse problema. Durante a pandemia houve um acirramento dos números da fome, configurando uma crise de fome pelo desmantelamento das políticas públicas de combate à fome e pela crise econômica e social que foi intensificada em função da covid-19. Esses são dois exemplos de como um problema estrutural pode ser enfrentado e seu quadro melhorado ou piorado pelas decisões políticas tomadas.
IHU – A partir de um exame da história brasileira, a que fatores atribuiu não só o retorno da fome no país no período recente, mas a permanência dessa condição em outros momentos?
Adriana Salay – Enquanto houver desigualdades, haverá fome no país. Entendemos o alimento como mercadoria: nós produzimos um alimento que é, necessariamente, vendido, pois ele tem que entrar nos sistemas de mercadoria que instauramos. Então, nós fornecemos mercadorias e não as condições ou o acesso ao alimento direto. Nesse sentido, pode acessar a mercadoria quem tem direito para comprar. Ou seja, a ligação entre alimentação e renda é central para entendermos a fome. Enquanto houver desigualdade no acesso à renda, iremos ter no país pessoas que não vão conseguir acessar esse sistema e passarão fome.
O aumento da fome nos últimos anos é decorrência da diminuição das políticas públicas, como, por exemplo, o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, que compra alimentos da agricultura familiar, sendo que, por incrível que pareça, o campo é o lugar com maiores índices de fome. A não atualização do valor do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE e o não aumento real do salário-mínimo impactam diretamente no acesso ao alimento porque renda e alimento estão diretamente ligados.
Quando o Estado intensifica os programas sociais, com aumento de emprego e renda, consequentemente há uma diminuição dos índices da fome. O movimento contrário, isto é, quando o Estado diminui as políticas públicas de combate à fome, há o aumento desse problema, como vimos nos últimos anos, atrelado também ao aumento do nível de desemprego, renda e inflação de alimentos, a qual foi significativa nos últimos tempos.
IHU – Em que consiste o projeto Quebrada Alimentada?
Adriana Salay – O projeto Quebrada Alimentada foi uma reação a uma situação que estava ocorrendo no Brasil. Quando começou a pandemia, meu marido, Rodrigo Oliveira, do restaurante Mocotó, e eu – nós moramos no bairro do restaurante, que é um bairro periférico, com uma série de vulnerabilidades –, analisando a situação, percebemos que iria ocorrer uma tremenda crise de fome porque estava tudo fechado, as pessoas estavam trabalhando cada vez mais em empregos informais e muitos, do dia para noite, tiveram o salário cortado. Rodrigo sugeriu que poderíamos ajudar fazendo marmitas porque comida era o que nós sabíamos fazer. Começamos, então, a servir a comida que comíamos no restaurante. Para quem não é da área, nos restaurantes temos a chamada comida da família, que é um cardápio variado com frutas, legumes, verduras e cada dia um tipo de proteína. Começamos, então, a entregar as marmitas na porta do restaurante mesmo, pois nosso público-alvo é a nossa comunidade.
Começamos servindo entre 40 e 50 marmitas, mas a demanda era muito grande. Nos picos da pandemia, servimos 200 refeições por muito tempo. Quando as coisas foram voltando ao normal, a demanda por marmita começou a cair porque, como estamos em um bairro periférico, as pessoas se deslocam para trabalhar. Mas, ao mesmo tempo, começamos um projeto de cesta básica, que tem uma demanda muito grande, principalmente de mulheres e crianças, que preferem fazer suas refeições em casa, escolhendo como vão fazer e em que momento; esse projeto continua até hoje.
Distribuímos mais de 100 mil refeições ao longo desses três anos. Hoje, atendemos 150 famílias que são encaminhadas pelas Unidades Básicas de Saúde – UBS, as quais fazem a triagem, através das nutricionistas e das assistentes sociais, para que possamos começar a atender as pessoas. As famílias recebem, todo mês, uma cesta básica comum, composta de arroz, feijão, óleo, açúcar etc., e uma cesta básica agroecológica e orgânica da agricultura familiar, para fomentar a circulação de renda no campo onde os índices de fome são ainda maiores.
IHU – Quais são os maiores desafios alimentares, de enfrentamento e superação da fome, especialmente nas regiões metropolitanas?
Adriana Salay – A experiência do projeto Quebrada Alimentada mostrou que garantir o acesso direto ao alimento é uma medida emergencial. Isso não vai tirar a pessoa da situação de fome: se eu dou uma marmita ou uma cesta básica hoje, a pessoa vai ter fome no dia seguinte ou no mês seguinte e vai precisar recorrer a essa ação emergencial de novo. Mas o que queremos dar é uma dignidade e um conforto para que a pessoa possa fazer outras coisas e sair dessa situação. Por isso, quando falamos em acabar com a fome, temos que falar em medidas emergenciais, pois essas famílias não podem esperar que exista uma transformação da sociedade para poderem comer; elas precisam comer agora. Nesse sentido, o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE é muito importante porque alimenta 40 milhões de crianças diariamente. Mas também precisamos falar de medidas estruturantes que diminuam a desigualdade no Brasil, que é a causa primeira da fome.
Precisamos falar de acesso à educação. Nesse sentido, o programa de cotas também é um programa contra a fome, pois permite que pessoas que não conseguiriam garantir uma educação de qualidade consigam acessá-la. Programas de geração de emprego, aumento real do salário-mínimo, contenção da inflação e reforma agrária também são importantes. Há uma imagem muito preconceituosa em torno da proposta da reforma agrária, mas países como os Estados Unidos, Itália e Japão fizeram reforma agrária, enquanto o Brasil tem uma das maiores concentrações fundiárias do mundo.
O campo, que planta nossa comida, é o lugar em que mais há fome em percentual no país. Precisamos olhar para isso. É preciso dar terra, qualidade de trabalho, acesso a crédito, logística, para que esses trabalhadores permaneçam no campo e tenham condições dignas de trabalho para produzir alimentos saudáveis e viver com qualidade.
IHU – Quais são os principais hábitos alimentares dos brasileiros e como esses hábitos têm se alterado ao longo do tempo frente a uma crescente industrialização dos alimentos e produção de monoculturas? Do ponto de vista histórico, a mesa do brasileiro está melhor ou pior?
Adriana Salay – Eu diria que não temos nenhum hábito alimentar no Brasil. Gosto de falar de cozinhas brasileiras porque cada região tem suas principais características – até a década de 1980, isso era muito evidente. Por exemplo, na região Nordeste e Norte, a base alimentar era a farinha de mandioca e o feijão. O arroz entrou na região na década de 1980 e demorou muito para se tornar um alimento central. Depois desse período, foi acontecendo uma uniformização da alimentação no território brasileiro e a população passou a consumir alguns alimentos centrais, como o arroz e o feijão. Mas, por incrível que pareça, o alimento mais homogêneo no Brasil é o café. Independentemente da classe social e da região onde a pessoa mora, a chance de ela tomar café é muito grande.
No país, a renda é um fator importante para marcar diferenças nos hábitos alimentares. O arroz e as farinhas – farinhas de mandioca, de milho – são, segundo a economia, produtos de demanda de elasticidade negativa. Isso quer dizer que quanto menor a renda, maior o consumo, e o contrário, quanto maior a renda, menor o consumo. Na contramão disso, quanto maior a renda, maior o consumo de carnes, produtos industrializados, ultraprocessados, bebidas alcoólicas e não alcoólicas, como suco, inclusive produtos in natura como fruta, legumes e verduras.
Nos últimos anos, temos observado o aumento de produtos ultraprocessados na mesa do brasileiro. Por que estamos comendo mais ultraprocessados? Ao invés de qualificar isso como bom ou ruim, do meu ponto de vista, esse aumento do consumo de ultraprocessados é um sintoma da nossa sociedade, que, obviamente, vai causar muitos males, como doenças não transmissíveis e doenças crônicas que representam mudanças no nosso estilo de vida.
IHU – Como essa mudança tem afetado nossa cultura alimentar?
Adriana Salay – O que temos observado, segundo as últimas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, das Pesquisas de Orçamentos Familiares – POFs e, inclusive, do Estudo Nacional de Despesa Familiar – ENDEF, desde a década de 1970, é uma diminuição do consumo de alimentos que antes eram centrais, como as farinhas de mandioca e milho, feijão e arroz. Há um aumento progressivo, conforme os anos, dos produtos industrializados que chamamos de ultraprocessados.
Em função disso, há uma uniformização do consumo no Brasil e, com a entrada desses alimentos no dia a dia da dieta alimentar, um aumento das taxas de sobrepeso, obesidade, diabetes e doenças crônicas. Mas, como já mencionei, é importante enquadrarmos isso como um sintoma de uma sociedade que se urbanizou. Nesse sentido, há uma diferença significativa entre a alimentação rural e a urbana. Com a industrialização, o tempo de preparo e de consumo dos alimentos diminuiu significativamente. Em uma sociedade que não tem tempo para cozinhar, que fica menos em casa, urbana, industrializada, faz sentido comer os alimentos industrializados. O consumo resulta desse modelo de sociedade, que vai sofrer as consequências dos problemas intrínsecos ao consumo desses alimentos.
IHU – A partir da diversidade regional, cultural e alimentícia do Brasil, apesar da homogeneização que a senhora aponta, como seria possível enfrentar o problema da fome?
Adriana Salay – Pensando nesse enfrentamento regional, não existe uma fórmula. Existem diversas atitudes e diversas coisas que precisam ser levadas em consideração para acabar com o problema da fome. Primeiro, pensando na estrutura social, é preciso fazer reformas para dar melhores condições de vida para as pessoas. As diferenças em relação à fome no ambiente rural e urbano têm que ser atacadas de formas distintas.
Pensando nos hábitos alimentares regionais, que também precisam ser considerados, a cesta básica vendida no Rio Grande do Sul não precisa ser a mesma vendida no Pará, pois envolve hábitos alimentares significativamente diferentes. As etnias indígenas, como a crise dos yanomami, também precisam ser observadas, e as políticas públicas precisam ser feitas a partir das especificidades dos modos de vida de cada população.
IHU – Quais são as expectativas em relação ao enfrentamento da fome e da insegurança alimentar no novo governo Lula?
Adriana Salay – As expectativas são boas porque começamos com um governo que assume que tem fome no país. Partir desse princípio já é um avanço. O governo retomou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar – CONSEA, órgão importante porque une um terço do governo, os ministérios que estão voltados para essa questão (como o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, o Ministério do Desenvolvimento Social – MDS) e também dois terços da sociedade civil, isto é, pessoas que já estão há bastante tempo trabalhando no combate à fome e na manutenção da segurança alimentar. Esses diálogos e essas ferramentas estão sendo retomados e são importantes para que tragam avanços no enfrentamento da fome.
A implantação do programa Fome Zero, que aconteceu em 2003, teve seu marco em 2014, com a saída do Brasil do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas – ONU. Se observarmos, foram onze anos de trabalho, nos quais tivemos uma redução significativa da fome no país. Então, isso mostra que o problema não será solucionado amanhã. É óbvio que os trabalhos precisam começar de forma urgente, o quanto antes, mas é um desafio tremendo diminuir a fome no país. É preciso continuidade e uma política que seja de Estado e não de governo para que se possa, efetivamente, erradicar a fome no Brasil.