Um “olhar zoo” para o descentramento da visão antropocêntrica sobre o mundo. Entrevista especial com Eduardo Jorge de Oliveira

O pesquisador observa como a literatura e as artes têm promovido exercícios constantes para virar o humano do avesso e descentralizar suas percepções sobre a vida na Terra

Foto: Cicero Omena | Wikimedia Commons

Por: João Vitor Santos | 09 Julho 2022

 

Se há um campo em que os bichos são soltos e vagam livremente é na literatura. A metáfora é representativa da percepção do professor Eduardo Jorge de Oliveira, pois compreende que “a zooliteratura contribui para o descentramento do olhar antropocêntrico, o que não deixa de ser um exercício de uma alteridade radical”. Ao longo da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, demonstra como “a experiência de leituras de narrativas, ensaios, poemas a partir da zooliteratura permite um movimento que produz novos centros, mais deslocados do humano e mesmo do humanismo”. “Transformar um olhar antropocêntrico sobre o mundo tem sido um exercício constante da literatura e das artes para não deixar que determinados sentidos se cristalizem, a saber, o humano não é o centro do mundo como se pensou no Renascimento”, acrescenta.

 

Observando a literatura como um território de não-saber, compreende-se essas experiências com a zooliteratura como algo que floresce da própria dimensão da escritura “que, no embate dos signos, é mais física do que metafísica”. Por isso, considera: “no que diz respeito ao olhar animal, não deixa de ser interessante vislumbrar que toda uma fauna sai de frases, literalmente habitando florestas de signos. Cada animal é capaz de encontrar um ritmo que é lhe próprio, pois a linguagem tanto é capaz de rastejar quanto de voar muito alto. Pode-se mugir na primeira pessoa do singular a ponto que a experiência pronominal pode redistribuir o ‘eu’ a cada animal”.

 

No entanto, para Oliveira, é reducionista pensar toda a virada humana através da zooliteratura circunscrita a onomatopeias e figuras de linguagem. Sua potência é mais do que isso. “De movimentos répteis a saltos felinos, há um perigo em cada parágrafo. Pode-se ficar à espreita em cada verso. Há na literatura um ‘zoo’ que se forma a partir de um conjunto de textos”, defende. Assim, muito mais produtivo é pensar quase que como uma cosmovisão, que, como ele já disse, descentraliza o olhar humano e faz, como num exercício de metamorfose, com que experimentemos outros lugares. “Um olhar zoo permite uma redistribuição de sentidos entre humanos e não-humanos. Isso não é um breve passo em meio a um estado perpétuo de negociação de existências, coletivas e individuais”, observa. E conclui: “a animalidade pode muito bem ser positivada como uma construção que redefine as fronteiras entre humanos e não-humanos. Talvez isso possa ser lido livremente como um ensaio e não como uma resposta definitiva”.

 

Eduardo Jorge de Oliveira (Foto: Research Gate)

Eduardo Jorge de Oliveira é professor de Literatura Brasileira, Cultura e Mídia no Seminário de Romanística da Universidade de Zurique, na Suíça. Fez parte do Centro de História e de Teoria das Artes – CEHTA da École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, Paris, e do Instituto de Estudos da Linguagem - IEL, da Universidade de Campinas – Unicamp. Possui doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG em cotutela com a École Normale Supérieure de Paris. É autor do livro “A invenção de uma pele. Nuno Ramos em obras” (Iluminuras, 2018) e “Signo, sigilo. Mira Schendel e a escrita da vida imediata” (Lumme Editor, 2019).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Gostaria que o senhor iniciasse explicando no que consiste sua afirmação de que a literatura é o genius loci do animal por excelência.

 

Eduardo Jorge de Oliveira – Um ponto de partida para esta conversa é que a literatura é, por excelência, um lugar do não-saber. Suas formas de saber tanto são indiretas quanto se insurgem a partir de uma dimensão da própria escrita que, no embate dos signos, é mais física do que metafísica. Ou ainda: parte de sua metafísica vem de um corpo a corpo com as palavras. A partir desse breve movimento, são diversos os modos de composição de imagens que coexistem e que são singulares, pois cada um deles evoca novos mundos, inventa experiências.

 

No que diz respeito ao olhar animal, não deixa de ser interessante vislumbrar que toda uma fauna sai de frases, literalmente habitando florestas de signos. Cada animal é capaz de encontrar um ritmo que é lhe próprio, pois a linguagem tanto é capaz de rastejar quanto de voar muito alto. Pode-se mugir na primeira pessoa do singular a ponto que a experiência pronominal pode redistribuir o “eu” a cada animal. Essa é a base do que o formalista russo Viktor Chklovski chamou de estranhamento (Ostranenie) em A arte como procedimento, de 1917. Experimente a máscara ou um exercício mimético: eu mujo! eu ronrono! ou eu lato! apenas para calcular a distância ontológica entre um humano e o animal que dispensa qualquer mimetismo e aciona devires, como propuseram Gilles Deleuze e Félix Guattari.

 

 

A linguagem literária tem uma abertura ao animal que não para apenas por aí nem se rende apenas ao jogo de onomatopeias. De movimentos répteis a saltos felinos, há um perigo em cada parágrafo. Pode-se ficar à espreita em cada verso. Há na literatura um “zoo” que se forma a partir de um conjunto de textos. Talvez não seja demasiado afirmar a existência de uma zooliteratura que contemple esse breve panorama diverso de linguagens animais que, por sua vez, nunca estão isoladas de uma animalidade, mas ela possui um contato direto e indireto com o ambiente. Sua existência possui e constrói lugares na linguagem.

 

 

IHU On-Line – Em que medida a zooliteratura faz avançar numa transformação do olhar antropocêntrico sobre o mundo?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – A zooliteratura contribui para o descentramento do olhar antropocêntrico, o que não deixa de ser um exercício de uma alteridade radical. A experiência de leituras de narrativas, ensaios e poemas a partir da zooliteratura permite um movimento que produz novos centros, mais deslocados do humano e mesmo do humanismo.

 

Transformar um olhar antropocêntrico sobre o mundo tem sido um exercício constante da literatura e das artes para não deixar que determinados sentidos se cristalizem, a saber, o humano não é o centro do mundo como se pensou no Renascimento. As combinações e hibridações teóricas a partir de outras abordagens permitem, inclusive, descentralizar quais humanos estão no centro da humanidade.

 

Escritos de pensadores indígenas, textos feministas, queer, LGBTQ+ e mesmo teóricas e teóricos da literatura têm estado atentas e atentos a esse fenômeno. Se fizermos uma elipse de um humanismo à humanidade, dois termos que são generalizações, encontra-se um núcleo muito bem definido sob a forma de um clube, como muito bem definiu Ailton Krenak. Um olhar zoo permite uma redistribuição de sentidos entre humanos e não-humanos. Isso não é um breve passo em meio a um estado perpétuo de negociação de existências, coletiva e individuais.

 

 

O humano, uma invenção recente

 

Esse olhar antropocêntrico tem uma história e, com isso, não custa lembrar o que escreveu Michel Foucault no prefácio de As palavras e as coisas, que é uma pequena obra-prima. Ele escreveu que o homem, ou melhor, o humano, é uma disposição relativamente recente, uma dobra na ordem do conhecimento e que provavelmente desaparecerá quando encontrar uma nova forma. Sendo o homem uma invenção recente, a própria linguagem se presta a uma plasticidade que altera a sua constituição.

 

 

Uma imaginação de olhos abertos

 

Para retornar de outro modo à dinâmica entre uma metafísica e uma dimensão física da escrita, pode-se dizer que nesses exercícios de alteridade se passa de uma reflexão a uma flexão. Mais - ou menos - que pensar, é preciso imaginar estas novas formas ou configurações do humano. A literatura nos ajuda a imaginar de olhos abertos. Há algo dessa nova forma humana nas transformações e metamorfoses de literaturas de todas as épocas.

 

E literatura pode ser entendida no sentido mais amplo do termo: narrativas, histórias e suas respectivas fusões com mitos. O “zoo” da zooliteratura, isto é, seu valor de prefixo, sincroniza de tais flexões, declinando o humano para além de seus limites e fronteiras.

 

 

IHU On-Line – Ver o bicho como gente é o mesmo que ver gente como bicho? Por que parece haver “segredos” e “sentimentos” que só os bichos são capazes de revelar?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – Não é a mesma coisa, mas pode ser um exercício de idas e voltas. Vejamos o exemplo do gênero “fábula” que, mesmo sendo uma resposta de La Fontaine a Descartes e sua posição em relação aos estados da alma, não se dissociou de um fundo moral e moralizante no qual os animais acabam por assumir um papel mediador de uma mensagem de humano para humano.

 

Fui bem mais crítico a essa ideia de fábula durante o período de pesquisa e de escrita de uma tese de doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada (2010-2014). Hoje, vejo que não é possível ser tão rígido com o gênero. A fábula mesma produz seus deslocamentos e seu efeito moralizador pode ser limitado. As fábulas também enriquecem um repertório de ações, sobretudo para as crianças. Sem reduzi-la a um instrumento pedagógico, há modos de transmissão de segredos e de sentimentos que estão mais próximos dos animais.

 

 

De bicho a gente e de gente a bicho, revelando segredos que continuam em segredo

 

A literatura é a arte que, por excelência, transmite segredos mantendo segredos do mesmo modo que ela pode ativar em nós um arquivo de sentimentos que possuímos e que vem de um fundo comum compartilhado com outros viventes. No movimento de bicho a gente e de gente a bicho no limite da fábula há o livro Onde a onça bebe água, de Veronica Stigger, que revisita brilhantemente a dimensão perspectivista da obra de Eduardo Viveiros de Castro. A fábula comporta um divertimento que é capaz de deslocar a perspectiva de bichos a humanos e de humanos aos bichos e mais de lembrar que o humano é um bicho, um bicho que se esconde na mata dos sentidos.

 

A fábula de La Fontaine “um animal na lua” tem algo assim: “Enquanto um filósofo assegura/ que os homens são sempre enganados pelos sentidos,/ outro filósofo jura/ que eles nunca os enganaram./ Ambos estão certos; e a Filosofia/ diz certo, quando diz que os sentidos enganarão/ desde que sua relação os humanos julgarão/ Mas se também corrigirmos/ a imagem do objeto na sua distância/ no meio que o rodeia,/ no órgão e no instrumento,/ os sentidos não enganarão ninguém”.

 

No extracampo da fábula existem os mitos. As cosmogonias ameríndias estão repletas de histórias que realizam essas passagens ou que marcam uma ancestralidade comum, totalmente animal. Eles exploram inclusive os estados intermediários das transformações e metamorfoses entre bicho e gente, entre gente e bicho. Finalmente, parafraseio a sua pergunta afirmando que parece haver “segredos” e “sentimentos” que só a literatura é capaz de transmitir sem revelar.

 

 

IHU On-Line – Podemos compreender A Metamorfose (1915), do escritor Franz Kafka, como uma zooliteratura? Como ler a transformação de Gregor, o homem que vira uma barata gigante, não apenas como metáforas, mas também como uma virada antropológica que faz também o ser humano se virar do avesso?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – Frequentei um curso de Jeanne Marie Gagnebin sobre Kafka em que ela enfatizou que “Ungeziefer” não é necessariamente uma “barata”, mas um tipo de inseto ou um animal daninho que pode causar vários tipos de transtornos, inclusive sanitários e econômicos ou comportamentais. Mantenho essa informação viva e ela sempre age quando leio e releio este texto de Kafka. Via tradução, a barata entra por metonímia e funciona muito bem. Existe essa possibilidade posta na questão, mas fico tentado a ler – também pelas vias da metáfora – sob uma intensificação do humano a ponto que essa poderia muito bem ser a fábula do homem do século XX por excelência.

 

Kafka é um exemplo de escritor que soube transmitir segredos e sentimentos de modo muito bem codificado e elegantemente simples. Há uma grande fortuna crítica sobre esse texto de Kafka e não irei me ater a nenhum detalhe interpretativo, salvo um com o qual me deparei recentemente, o de Marc Alain Oaknin. Profundo conhecedor da Kabala, Oaknin propõe uma leitura anagramática do conto na qual UNGEZIEFER seria ZERUFGENIE, que entre o hebreu, o iídiche e o alemão, existe um gênio da permutação (pesado e permutado: “zerafane”, “zeruf”).

 

Cito parte do texto: “Anagramatologia sutil que talvez nos convida a descobrir um último segredo de Kafka, o da Metamorfose! Pois insisti passando pelo fato que o termo ‘gênio’, em alemão Genie, era uma das palavras que faz parte tanto do léxico dos seus cadernos de hebreu, mas também da anotação do dia 16 de janeiro de 1922 na ‘Kabbala’. Se tornou claro que essa literatura ‘que teria muito bem podido se tornar uma nova doutrina secreta, uma nova Kabbala’, criava raízes simultaneamente nos tempos antigos e nos novos tempos, Alt e Neu, isto é, que ela oferecia esta experiência das palavras em movimento que produzem imagens do mundo cada vez mais renovadas pela permutação das letras das palavras, pelo ‘gênio do zeruf’.

 

Podemos nos valer dessa leitura para situar a própria literatura como um lugar anagramático entre humanos e não-humanos. Que esse prefixo “não-” seja um signo de abertura para todas as permutações de existências, as possíveis e as impossíveis em direção ao avesso do avesso do avesso.

 

 

IHU On-Line – Em que medida esse exercício proposto pela literatura de o humano se virar do avesso é um movimento contrário ao antropocentrismo? Como isso impacta as relações entre as pessoas e da própria humanidade com as outras formas de vida na Terra?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – Que esse avesso ou esses avessos produza(m) novas dobras, novas epidermes, novas formas de vida às quais se incluem as mais ancestrais e as que estão por vir. Se há um lugar em que a literatura atua, esse lugar é muito micro: micropolítico, no sentido de Félix Guattari e Suely Rolnik, que implica em um espaço de circulação de desejos e, ao mesmo tempo, a animalidade nessa disposição não se resume a pulsões, instintos ou tudo aquilo que é da ordem do irracional e da loucura.

 

A animalidade pode muito bem ser positivada como uma construção que redefine as fronteiras entre humanos e não-humanos. Talvez isso possa ser lido livremente como um ensaio e não como uma resposta definitiva. Há uma diversidade que se forma em termos de uma paisagem literária diversa que permite, inclusive, recuperar outros textos e formas de vida do passado, colaborando, assim, para novas tradições. O que tem ocupado meu tempo é: não seria cada “avesso” uma nova possibilidade de forma poético-narrativa dissidente daquela que não apenas põe o humano no centro do universo, mas um grupo seleto deles? Se pudermos falar de um “comunismo” nos tempos atuais, esse “comunismo” seria um novo fundo comum entre humanos e não-humanos.



IHU On-Line – Wilson Bueno escreve, como o senhor tipifica, uma “zoologia literária”. Como podemos compreender os deslocamentos que o autor propõe em obras como Manual de Zoofilia (1997), Jardim Zoológico (1999), Cachorros do Céu (2000) e uma das suas últimas obras, O Gato Peludo e o Rato-de-Sobretudo (2009)?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – Permito-me enviar a questão à dissertação de mestrado defendida em 2009 na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG: Manuais de zoologia. Os animais de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno. Na última parte me refiro aos saberes e afetos constituídos nas obras de ambos. Os dois primeiros livros mencionados, Manual de Zoofilia e Jardim Zoológico são bem borgianos. Wilson Bueno lida afetivamente com os limites da classificação. Esse gesto o inscreve num movimento de escrita singular.

 

Desse estudo, excluí deliberadamente o Cachorros do céu por tê-lo lido sob o viés da fábula. No entanto, incluí outro livro que merece ser urgentemente reeditado: Mar Paraguayo, de 1992. Nesse último livro é a língua que se animaliza, alguns limites do português com o espanhol são borrados e desse espaço emergem palavras guaranis. Tais deslocamentos linguísticos podem muito bem se inscrever numa zoologia literária. Um dos exemplos da animalização pela língua vem de uma das personagens, a marafona do balneário, que tem um cão chamado Brinks.

 

Ao chamar afetivamente o seu “cãozinho”, ela produz uma minituarização da sua mascote de companhia entrando em um jogo verbal guarani: “Brinks’michimirá’itotekemi”, que, segundo o autor, “tamanha aglutinação de sufixos diminutivos acoplados ao nome próprio, Brinks, realiza em guarani o que só pode ser visto através de um microscópio, tornando a coisa diminuída, algo (quase) invisível; na sugestão do texo, o que não pode ver ou o que efetivamente, no caso, não existe”.

 

É por uma dimensão do afeto que o animal passa a ter uma existência literária simultaneamente real e imaginária, o que escapa mesmo dos sistemas borgianos de classificação com o seu célebre Manual de zoologia fantástica, de 1957. Além disso, Wilson Bueno foi um grande fabulador. Mar Paraguayo, por exemplo, é uma grande fábula da língua, à qual podemos associar as obras de Douglas Diegues e de Josely Vianna Baptista.

 

 

IHU On-Line – Que associação e dissociações podemos fazer entre a obra de Wilson Bueno e Franz Kafka?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – A relação mais direta está em um dos livros de Wilson Bueno, A copista de Kafka, de 2007. Wilson Bueno dispunha de um grande um talento individual para se inserir na tradição kafkiana para nela inventar sua herança. O livro começa pelo trecho do diário de Felice Bauer, que escreve no dia 14 de agosto de 1912: “Já me sinto afeiçoada a este senhor Franz, de sobrenome Kafka, como se o conhecesse há muito tempo, creio que desde antes do Gênese.” No livro, há narrativas de um dente narrador, de um lenhador leproso, o povo dos urubus, uma mulher-tigre e fantasmas que vivem em um palácio sem se dar conta que são fantasmas. Esses são apenas alguns exemplos de associações e de dissociações que se pode fazer entre BuenoFelice – e Kafka, mas, sem dúvida, há outras.

 

IHU On-Line – Nos livros de Bueno, o senhor identifica muito do imaginário medieval, especialmente o bestiário. Como analisa essa literatura da Idade Média, cheia de bestas, demônios e monstros, tendo a zooliteratura e essa virada do homem pelo avesso em perspectiva?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – O bestiário é um gênero textual mais antigo que a própria Idade Média. Aliás, o primeiro bestiário do qual se tem notícia é O fisiólogo, do século IV da nossa era. Esse modo de relacionar animais e seres imaginários encontrou um território fértil na imaginação coletiva na Idade Média, à qual o gênero é associado.

 

Essa imaginação encontrou na colonização uma forma de viajar em naus e os animais do novo mundo – desconhecidos na Europa – não tardaram a ser identificados com criaturas descritas nos bestiários. Uma preguiça, um tamanduá ou um tatu são apenas alguns exemplos do que pode ser reinterpretado por viajantes. A América Latina, sua geografia e paisagem tanto é contemporânea da invenção da perspectiva e do aprimoramento da arte cartográfica quanto da descoberta de novas estrelas: o céu espelhava o mar ao dar direções mais seguras aos viajantes do que deusas que porventura poderiam aparecer para mostrar uma máquina do mundo.

 

Os animais e deuses que ocupavam os mapas pouco a pouco se tornaram constelações. Até onde pude pesquisar, é Borges que reintroduz o bestiário como gênero na literatura latino-americana com O manual de zoologia fantástica, de 1957. Cortázar havia publicado um livro de contos sob esse título, Bestiário, em 1951. Wilson Bueno prolongou o gesto borgiano com Manual de zoofilia.

 

IHU On-Line – Além de Bueno, mais contemporaneamente, o senhor identifica em Jorge Luis Borges uma zooliteratura. Que zooliteratura é essa, o que ele propõe? E como as obras de Borges conversam com as de Bueno?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – Podemos delimitar a zooliteratura a partir dos animais por escrito tal como escreveu Maria Esther Maciel em diversas ocasiões e livros no qual incluo O animal escrito, de 2008. É a partir do seu trabalho que podemos nos movimentar por esse campo no Brasil. Por isso, cito seu breve ensaio “Exercícios de zooliteratura”: “cada escritor busca criar uma forma de encontro com a outridade animal, seja através do pacto, da aliança e da compaixão, seja pela entrada no espaço desses outros, seja pela tentativa ilusória de figuração ou de incorporação de uma subjetividade alheia, o registro ficcional sobre animais se faz sempre como um desafio à razão e à imaginação. São tentativas que indicam tanto a nossa necessidade de apreender algo deles, quanto um desejo de recuperar nossa própria animalidade perdida ou recalcada, contra a qual foi sendo construído, ao longo dos séculos, um conceito de humano e de humanidade. Afinal, foi precisamente através da negação da animalidade que se forjou uma definição de humano, não obstante a espécie humana seja fundamentalmente animal”.

 

Esse marco é um excelente ponto de partida para pensar o que tem me ocupado mais: uma animalidade por vir, uma escrita que possui um ritmo e não um desejo cognitivo de aprender algo dos animais, mas que se animaliza seja por mimetismo e repetições, seja por produções de diferença no próprio texto. Esses sentidos se combinam e se misturam. Em relação a Borges e a Bueno, suas obras possuem elementos dessa ordem. Do Manual de zoologia fantástica, de Borges, ao Manual de zoofilia, de Bueno, existe um exercício de filiação, de aliança, de invenção de uma animalidade literária.

 

 

IHU On-Line – Na filosofia, há quem busque compreender o mundo pela metafísica. Podemos afirmar que na zooliteratura há uma busca pela compreensão do humano através do que reside nele de animal?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – Ou dos signos de uma animalidade por vir e não uma animalidade perdida. Não sei até que ponto existe uma busca de compreensão do humano, mas observo pelo menos um estado de surpresa, de contato com forças imanentes, humanas e não-humanas, além de uma relação outra com o mundo e seus movimentos permanentes que nem sempre incluem o humano. De todo modo, o humano ou o humanismo não podem servir de redundância.

 

IHU On-Line – Vivemos um estado de crises sistêmicas que têm a humanidade e seus modos de vida como fator central na geração de desequilíbrios no planeta. Animalizar o humano pode ser uma saída para cessar os desequilíbrios e, consequentemente, nos tirar do estado de crises? Como seria essa animalização, para além da literatura?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – A humanidade e sua força tectônica, que a introduz na era do antropoceno, passou a viver de crises sistêmicas. Nesse sentido, animalizar precisa sair de uma desambiguação, pois ela se tornou uma expressão que é carregada historicamente por reduzir o outro – ou os outros, no caso coletivo –, a ponto de produzir situações de aprisionamento ou mesmo de destruição. Animalizou-se os loucos, animalizou-se as mulheres, animalizou-se índios, negros e pobres. Animalizou-se e animaliza-se institucionalmente os outros em hospícios, hospitais, valas e favelas. Caberia mais uma vez positivar a animalidade com aquilo que ela pode proporcionar em termos de diálogos autóctones, comunitários e afetivos.

 

A partir desses sentidos é possível tanto permanecer na literatura quanto ir além dela. Também é possível ir além da literatura no próprio ato de leitura, na reinvenção do cotidiano e dos seus sentidos. A literatura contém uma dimensão impossível que está sempre em vias de se refazer. Nisso reside seus modos de reinvenção da vida.

 

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

 

Eduardo Jorge de Oliveira – Boa parte da conversa recupera leituras a partir de uma pesquisa desenvolvida com bolsa da Capes no mestrado em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais. Também se entrecruzam leituras mais recentes, isto é, depois de uma pesquisa sobre a animalidade em nível de doutorado também com bolsa da Capes. A supervisão ficou a cargo de Maria Esther Maciel e de Dominique Lestel. Nessa pesquisa surgiram outros autores: Nuno Ramos e Georges Bataille e toda uma constelação de autores que os manteve unidos sob o signo da pele e da animalidade. Da relação existente entre ambos.

 

Em relação à pele, foi publicado um livro sobre Nuno Ramos, A invenção de uma pele, que data de 2018 e que foi editado pela Iluminuras. A dimensão da animalidade integra outra parte de um material de investigação que será objeto de um livro a ser publicado em breve no Brasil. Há nele um corpus de autoras e autores contemporâneos que fazem vibrar a animalidade.

 

Leia mais