A constatação do ativista é baseada nos dados do relatório “Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas"
Vivemos em um país que é historicamente “racista, machista e LGBTQIA+fóbico, onde prevalece a violência estrutural”. Essa é a avaliação de Antonio Neto, historiador e pesquisador que trabalhou na elaboração do relatório Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas. “Esses dados mostram que o Brasil sempre foi e continua sendo um dos lugares mais perigosos do mundo para exercer e exigir nossos direitos”, pontua.
Ao longo da entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Neto revela um cenário aterrorizante. Entretanto, não há surpresas em o Brasil ocupar “o quarto lugar no ranking global de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos, segundo dados da pesquisa da Global Witness”. E o mais terrível é que, além de ser um cenário de violência direta, há um desmonte de políticas públicas que visam promover os Direito Humanos ou mesmo defender aqueles que fazem essa promoção. Isso, segundo o pesquisador, é tácito no discurso do atual governo. “A principal dificuldade é enfrentar o discurso violento e violador que sai da boca do presidente e atinge diariamente as ações que atacam os direitos humanos no cotidiano do nosso país”, pontua.
Neto também observa que “historicamente, no Brasil, a violência contra defensoras e defensores de direitos humanos se concentra no campo. São conflitos por terra, território, água, contra mineração, barragens, hidroelétricas”. Nas cidades, também há muita violência e ataques a Direitos Humanos. O problema é que há maior dificuldade para encontrar nexos entre os casos de violência e a atividade que as vítimas exercem. “É mais difícil dizer que a morte de uma liderança comunitária foi causada por conta da luta que ela faz onde mora ou pelos direitos que ela defende. Quase sempre é tratado como conflito de tráfico de drogas”, detalha. Isso tudo ainda sem falar que “sem terras, indígenas, quilombolas, populações tradicionais e a diversidade que atua no campo são as principais vítimas dessa violência”.
Apesar das dificuldades e dos riscos dessa luta, o pesquisador defende: “desafio é seguir organizando a resistência popular para garantir a nossa vida e a nossa luta por nossos direitos”. Isso passa, no Brasil de nossos tempos, por enfrentar problemas que já pareciam superados. É o caso da fome e de outros direitos básicos. “Precisamos construir uma pauta de direitos humanos que coloque a superação da fome, da miséria, do desemprego que assola o nosso país. Essa é a principal pauta para a eleição o ano que vem, mas precisamos seguir lutando e apresentando-a para que sejam enfrentadas as causas estruturais que originam os conflitos e violências que afetam a defensoras e defensores de direitos humanos”, resume.
Antonio Neto (Foto: Justiça Global)
Antonio Neto é historiador e pesquisador da organização Justiça Global no Brasil. Militante da luta pela terra desde 2002 no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil – MST, ajudou a organizar o coletivo de juventude do MST e a Via Campesina Brasil, contribuindo para a implementação deste tema nas organizações camponesas brasileiras. Hoje, na Justiça Global, atua na organização do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos no Brasil e no monitoramento das ações de assassinatos, criminalização, ataques e outras violações às lutas dos defensores dos direitos humanos.
IHU – Em que consiste o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH?
Antonio Neto – O Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos –PPDDH no Brasil foi instituído em 26 de outubro de 2004. A criação do Programa era uma reivindicação de organizações de direitos humanos e apontava para a construção de uma política pública efetiva de proteção e enfrentamento das situações geradoras de ameaças e violência contra defensoras e defensores de direitos humanos.
Apesar de ter sido lançado em outubro de 2004, o Programa de Proteção só atuou de fato com o assassinato da missionária Dorothy Stang, no dia 12 de fevereiro de 2005, em Anapu, no Pará. A grande repercussão do assassinato da irmã Dorothy levou o Governo Federal a relançar o Programa e o governo daquele estado a implantá-lo, por meio de uma Coordenação Estadual.
O PPDDH foi pensado que para aqueles e aquelas que, em virtude da sua ação política, se encontram em situação de ameaça e violação contra o seu direito de defender direito. O objetivo é que o poder público empreenda todos os esforços necessários para assegurar o direito à vida e à integridade física sem a supressão de qualquer direito da pessoa, grupo ou organização social que defenda os direitos humanos.
IHU – Por que, segundo o relatório “Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas", este é o pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos?
Antonio Neto – No momento em que o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking global de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos, segundo dados da pesquisa da Global Witness, o desmatamento na Amazônia brasileira é o maior em quinze anos e vivemos a pandemia de Covid-19, que demanda políticas públicas urgentes e específicas, tramitam no Congresso Nacional, com apoio do governo federal, propostas legislativas restritivas de processos de demarcação de terras indígenas e permissivas. Tudo isso para que o setor privado explore e se aproprie de territórios indígenas e de terras destinadas à reforma agrária. Também são empreendidas inúmeras outras ações e políticas violadoras de direitos de quilombolas, LGBTQIA+, mulheres, crianças e adolescentes, dentre tantos outros sujeitos.
É nessa conjuntura que vivemos um período de baixíssima execução orçamentária no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH, assim como de desmontes, como a intensa restrição à participação social em sua estrutura, e exigências operativas pelo governo federal às organizações executoras dos programas estaduais de proteção, que não encontram amparo legal, e ameaçam suas existências.
Percebemos, portanto, um movimento simultaneamente perigoso: por um lado, o governo Bolsonaro não tem garantido condições necessárias para proteção a defensoras e defensores de direitos humanos, ao desmontar o PPDDH de diversas formas. Por outro, tem sido, ele próprio, por meio da agenda política de aliança com o poder econômico, ameaça às vidas desses sujeitos em luta.
IHU – O que tem sido diferente no governo Bolsonaro em relação a outros governos? Que desmontes estão sendo feitos no PPDDH?
Antonio Neto – O governo Bolsonaro vem implementando uma política que ataca os direitos humanos em geral, e em específico ataca as pessoas que lutam por seus direitos e na defesa de defendê-los. O PPDDH já vem sendo desmontado há muito tempo. Sucessivos governos vieram tendo dificuldades em implementar as recomendações que organizações da sociedade civil historicamente defendem, como, por exemplo, a construção de uma lei que institua o programa como política de estado e não somente do governo de turno.
Três pontos podemos colocar aqui como importantes: 1) primeiro, a diminuição dos casos incluídos no programa em âmbito federal. O acompanhamento dos dados relativos ao programa, tais como casos acompanhados, recursos destinados e equipe contratadas, é um monitoramento importante de ser realizado, especialmente para a criação de séries históricas, que permitem a análise do PPDDH no tempo, com identificação dos seus movimentos de ampliação e detração. É a partir dessa análise que podemos verificar a configuração de uma tendência, no âmbito federal, de diminuição de casos incluídos no programa.
Dados disponibilizados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – MMFDH em março de 2021, relativos à quantidade de casos incluídos no PPDDH no intervalo de 2009 a 2021, revelam um total de 209 casos. Analisando esses dados, percebemos anos com picos de inclusões, como os anos de 2011, com 27 casos, e de 2013, com 38, mas olhando os dados em um movimento mais amplo, demonstra uma linha de tendência à diminuição: em 2018, 8 casos; em 2019, 3 casos; 2020, 15 casos, e 2021, 2 casos.
De modo inverso, vemos quando observamos os dados relativos aos casos que não foram incluídos no programa. Segundo os dados do MMFDH, em 2020, onze casos foram arquivados e dezessete não foram incluídos no programa federal.
O segundo problema tem a ver com a insegurança política na gestão: demora, ineficácia e inadequação das medidas protetivas. O atual governo não tem uma política clara de como tomar as medidas de proteção para as defensoras e defensores de direitos humanos que fazem parte do seu programa. Essa proteção tem sido caracterizada pela demora na concessão e pela ineficácia ou até mesmo inexistência de medidas adequadas.
Um terceiro ponto diz respeito à falta de participação social em diferentes espaços do governo. Embora a participação social tenha sido insuficiente também em gestões anteriores, o governo Bolsonaro acentua um processo de desmonte de conselhos e comitês essenciais no acompanhamento de diferentes políticas públicas que efetivam direitos humanos.
Um dos maiores exemplos disso é a ausência total de espaço para participação da sociedade civil no grupo de trabalho convocado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para a construção do novo Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH. Os dois PNDH que já foram executados anteriormente foram construídos a partir de amplos debates com movimentos sociais e com a sociedade civil organizada.
No âmbito do PPDDH, um recente decreto federal publicado em setembro deste ano também alterou o Conselho Deliberativo do Programa, e passou a ter participação não-paritária da sociedade civil. Das nove vagas para a composição do conselho, seis são ocupadas por representes de ministérios ou autarquias do governo federal.
IHU – A que atribui o fato de o Brasil ocupar o quarto lugar no ranking global de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos? O que isso revela sobre o país?
Antonio Neto – Esses dados mostram que o Brasil sempre foi e continua sendo um dos lugares mais perigosos do mundo para exercer e exigir nossos direitos. Revela um país racista, machista e LGBTQIA+fóbico, onde prevalece a violência estrutural.
Revela, ainda, que o país tem uma dívida histórica com os povos indígenas, quilombolas e tradicionais que não têm o seu direito à terra e territórios garantidos e por isso se organizam para lutar pelos seus direitos, e por essa luta sofrem violências violações de direitos, ameaças e, em muitos casos, até a morte.
No atual momento que vivemos e com o governo que temos, que, através da sua fala violenta e na busca de um inimigo comum elegeu os povos indígenas, quilombolas e sem terras como seu principal alvo – e que figuram quase sempre nos discursos de incitação à violência proferido pelo presidente -, esses discursos não só ficam nas palavras, pois encontram eco em grande parcela da sociedade, que, autorizada pela fala do presidente, realiza atos de violência contra esses povos.
IHU – Qual é o perfil dos defensores e defensoras de direitos humanos que são assassinados ou violentados no Brasil? Que pautas eles defendem?
Antonio Neto – Historicamente, no Brasil, a violência contra defensoras e defensores de direitos humanos se concentra no campo. São conflitos por terra, território, água, contra mineração, barragens, hidroelétricas.
Nas cidades, onde a violência em geral é maior, nós temos muitas dificuldades de encontrar o nexo de causalidade entre o assassinato de pessoas com a atividade que ele exerce, ou seja, é mais difícil dizer que a morte de uma liderança comunitária foi causada por conta da luta que ela faz onde mora ou pelos direitos que ela defende. Quase sempre é tratado como conflito de tráfico de drogas.
Sem terras, indígenas, quilombolas, populações tradicionais e a diversidade que atua no campo são as principais vítimas dessa violência. São lideranças desses grupos que se expõem nos conflitos e que por sua atuação sofrem as principais violências, e, em sua grande maioria, estão nas regiões norte e nordeste do país, onde os conflitos por terra e território sempre foram bastante violentos.
IHU – O relatório aponta para a baixíssima execução orçamentária do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH no atual governo. Qual é a verba destinada para o Programa hoje e qual era o orçamento anterior?
Antonio Neto – O orçamento é um dos pontos sensíveis à continuidade do programa, pois sua insuficiência, rigidez, burocratização e demora no repasse fragilizam e comprometem a efetivação nos estados e integração da política nacionalmente. A implementação de políticas públicas depende, necessariamente, da destinação de recursos e, no âmbito do Estado brasileiro, isso é verificado não só pela previsão de orçamento, mas, principalmente, pela sua execução, com empenho e pagamento do recurso previsto para cada ano.
Analisando os dados de 2019, 2020 e 2021, disponibilizados pelo Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento – SIOP do governo federal, e que constam na nossa pesquisa, verificamos a persistência de um grave problema na execução dos orçamentos, que não são integralmente pagos no ano, prejudicando a continuidade da política e a consequente proteção que deveria viabilizar.
Em 2020, por exemplo, o orçamento destinado ao PPDDH foi de R$ 9.140.968,00, mas apenas 10,27% desse valor (R$ 938.726,00) foi pago no ano, já em 2019, menos de 17% do orçamento destinado para o PPDDH foi pago no ano. Ainda que consideremos, para o cálculo do pagamento efetivo, a inclusão dos valores pagos como “restos a pagar” em 2020 e em 2019 – ou seja, valores de orçamentos de anos anteriores pagos no exercício seguinte – temos uma baixíssima execução em relação ao orçamento previsto.
Na nossa pesquisa fazemos a seguinte pergunta: Como é possível garantir a continuidade das atividades, promovendo as medidas de proteção necessárias, se não é efetivo o pagamento na integralidade do orçamento destinado?
Esse é um dos principais gargalos que precisamos resolver para termos uma política pública efetiva.
IHU – Quais são as maiores dificuldades de dar continuidade à pauta de defesa dos direitos humanos no governo Bolsonaro?
Antonio Neto – A principal dificuldade é enfrentar o discurso violento e violador que sai da boca do presidente e atinge diariamente as ações que atacam os direitos humanos no cotidiano do nosso país. A violência difusa que a população LGBTQIA+ vem sofrendo e que coloca o país como um dos mais perigosos para pessoas trans, a violência racista que atinge a população negra - uma pessoa negra é morta pela polícia a cada quatro horas -, a violência de gênero, a violência contra os povos indígenas e quilombolas e muitas outras que precisam ser denunciadas e enfrentadas com políticas públicas que ataquem a questão estrutural que as origina.
Ainda há o problema do modelo de desenvolvimento que privilegia o grande capital em detrimento da grande maioria da população e que, na pandemia, priorizou a economia em detrimento do enfrentamento dos efeitos sanitários causados pela covid-19, que assolou nosso país e potencializou a crise que estamos vivendo.
Apesar dessa difícil situação, desafio é seguir organizando a resistência popular para garantir a nossa vida e a nossa luta por nossos direitos.
IHU – Qual é a expectativa em relação a essa pauta no próximo ano, tendo em vista as eleições presidenciais? Como seria possível colocar essa pauta na agenda eleitoral?
Antonio Neto – Precisamos construir uma pauta de direitos humanos que coloque a superação da fome, da miséria, do desemprego que assola o nosso país. Essa é a principal pauta para eleição o ano que vem, mas precisamos seguir lutando e apresentando-a para que sejam enfrentadas as causas estruturais que originam os conflitos e violências que afetam a defensoras e defensores de direitos humanos.
A realização de demarcação de terra indígenas e quilombolas, a reforma agrária para agricultores sem terra e a reforma urbana para enfrentar o déficit de moradia são exemplos disso. Com esse tipo de ação, a política pública de direitos humanos em geral e de defensores de direitos humanos em específico ganhará mais centralidade, mas precisaremos seguir lutando para a efetiva implementação do PPDDH e que ele seja de fato uma alternativa para que defensoras e defensores possam lutar por seus direitos de forma mais protegida e com segurança.