Estudo, desenvolvido em parceria entre os garotos, tem conexão direta com as brincadeiras de infância em meio ao esgoto e com as dificuldades de se viver num Brasil sem água até para lavar as mãos
Quando o jovenzinho sertanejo Erleyvaldo Bispo brincava no meio do esgoto com a vizinhança, nascia nele uma perspectiva que anos mais tarde mudaria a sua vida e também a de muitas pessoas que vivem nessas condições. “Aquela situação era bastante normalizada naquele contexto em que cresci, cheguei a ter diarreias. Mas temos crianças que não conseguem ter a mesma sorte que a minha e acabam morrendo por causa do contato e consumo de água não tratada”, observa. E por isso, assegura: “tenho total certeza que o fato de ter nascido no Nordeste brasileiro, onde historicamente temos problemas com o acesso à água e ao saneamento, despertou em mim desde muito cedo uma consciência ambiental”.
Tal consciência foi convertida em estudo e dedicação pelo tema, gerando pesquisas. Juntamente com o parceiro James Thiago Cruz, de Belém do Pará, desenvolveram estudos que chegaram ao prestígio de se tornarem parte de uma publicação internacional do periódico científico Springer Nature. “Analisamos primeiramente os dados estatísticos do Ministério da Saúde referentes às taxas de contágio e mortalidade por Covid-19 em cada região brasileira. Em seguida, verificamos os dados mais atualizados do IBGE e da Agência Nacional de Águas referentes à disponibilidade de saneamento básico e água limpa nos lares brasileiros”, detalham. Os dois ainda observam que não se surpreenderam ao constatarem “que a proporção de contágios e mortes em relação à população total era bem superior nas regiões Norte e Nordeste, sendo essas as regiões com menor acesso a saneamento e água tratada”.
Nesta entrevista conjunta, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, os dois pesquisadores ainda trazem mais detalhes de seus estudos e revelam o que chamou a atenção dos pares estrangeiros. “É bastante curioso que a região Norte, banhada por imensos rios e com chuva abundante, seja aquela cuja população tem menos acesso à água tratada”, observa James. “Isso reflete a falta de políticas públicas adequadas para gerar infraestrutura na região Norte, cuja dimensão territorial e dispersão populacional dificultam a administração”, acrescenta.
Além disso, os jovens também refletem sobre a importância de compreender as dimensões da crise climática e como ela já vem incidindo sobre a vida das pessoas, especialmente os mais pobres. “Percebemos a importância de avançarmos rapidamente na infraestrutura hídrica como forma de conseguirmos ter uma sociedade mais resiliente frente às alterações do clima e às futuras pandemias virais”, diz Erleyvaldo. “Saneamento básico é um direito humano básico, logo é bastante incoerente e absurdo que tantas pessoas ainda sofram sem isso. Vontade política e mesmo uma ajuda da iniciativa privada poderiam transformar essa realidade em pouco tempo”, observa James.
Erleyvaldo Bispo (à direita) e James Thiago Cruz (Fotos: Arquivo pessoal)
Erleyvaldo Bispo é formado em Agropecuária pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe. Atualmente, é graduando em Engenharia Florestal na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ, e também atua em pesquisas sobre recursos hídricos, tecnologia e inovação.
James Thiago Cruz possui bacharelado em Relações Internacionais e Biologia pela Universidade da Amazônia e Universidade Federal do Pará, e mestrado profissional em Desenvolvimento Sustentável. Também realizou pós-graduação em Gestão empresarial na London School of Business and Finance, na Inglaterra. Atualmente, é especialista em sustentabilidade, licença social de operação e responsabilidade social corporativa.
IHU On-Line – Apesar de jovem, você vem trabalhando há bastante tempo com pesquisas acerca de saneamento básico. Quando e o que fez você despertar para o tema?
Erleyvaldo Bispo – Sou graduando em Engenharia Florestal e, por um tempo, busquei me encontrar dentro do curso sobre qual área de atuação iria seguir. Até que, em março de 2018, participei do Fórum Mundial da Água como relator voluntário. Essa experiência mudou a minha vida, porque foi a partir desse momento que pude compreender mais sobre a agenda de água e o quanto realizar pesquisa e buscar soluções se conectavam com o local de onde nasci e fui e criado – o agreste sergipano, no Nordeste brasileiro.
IHU On-Line – Você é um sertanejo. Como compreender a relação entre esse povo e a água? Teria sido isso que fez despertar o desejo de ser um cientista que trabalha com o tema?
Erleyvaldo Bispo – Tenho total certeza que o fato de ter nascido no Nordeste brasileiro, onde historicamente temos problemas com o acesso à água e ao saneamento, despertou em mim desde muito cedo uma consciência ambiental. Hoje, consigo perceber que em vários momentos da minha trajetória educacional acabei sendo estimulado para o tema. Lembro de que quando tinha 10 anos fui medalhista da 2ª Olimpíada Ambiental de Sergipe, que na época tinha como tema mudanças climáticas, água e saúde.
Percebo o quanto o estímulo à educação ambiental, desde cedo, me influenciou a ter uma grande sensibilidade para o tema.
IHU On-Line – Além da atual pesquisa que relaciona a Covid-19 com saneamento básico, que outros estudos sobre o tema vocês já realizaram e o que mais marcou nesses trabalhos?
James Thiago Cruz – No mesmo livro, publiquei outra pesquisa que avalia a importância da educação ambiental para melhorar o relacionamento dos indivíduos com o meio ambiente e, desse modo, evitar outras pandemias. A Covid-19 decorre justamente do manejo ambiental inadequado, causado pela destruição de habitats naturais e a ingestão de animais silvestres. Investimentos em educação ambiental tendem a transformar esse paradigma, envolvendo de forma holística o ser humano e o meio que o circunda.
Da mesma forma, em outras duas publicações desse mesmo ano, avaliei os impactos da indústria de mineração na vida das comunidades circundantes, verificando que populações rurais são as menos beneficiadas pelos grandes empreendimentos, todavia são as que mais sofrem com impactos ambientais e sociais. Ademais, também foi verificado que governos locais (prefeituras) não administram adequadamente os vultosos impostos decorrentes da mineração, inclusive desobedecendo a legislações federais e princípios de sustentabilidade financeira.
Consequentemente, a população sofre com infraestrutura pobre e falta de recursos como saneamento básico, o que conversa diretamente com nosso trabalho que relaciona esse panorama à Covid-19.
Erleyvaldo Bispo – Logo no início da pandemia, escrevi um artigo sobre a relação da Covid-19 e o Direito à água, saneamento e higiene. Pude perceber que as problemáticas evidenciadas pela Sars-CoV-2 são seculares no Brasil e vivenciadas por milhares de brasileiros e brasileiras do Norte ao Sul do país.
Neste último estudo, que foi publicado em livro pela Springer Nature, conseguimos visualizar o quanto a falta desse direito básico, que é ter acesso a uma fonte segura de água e a saneamento básico, influenciou na quantidade de contaminados por habitantes. Assim, percebemos a importância de avançarmos rapidamente na infraestrutura hídrica como forma de conseguirmos ter uma sociedade mais resiliente frente às alterações do clima e às futuras pandemias virais.
IHU On-Line – Gostaria que detalhassem essa pesquisa desenvolvida por vocês, que demonstra como as regiões brasileiras mais prejudicadas pela Covid-19 eram justamente aquelas cuja população tem menos acesso à água limpa e a saneamento básico.
James Thiago Cruz e Erleyvaldo Bispo – Analisamos primeiramente os dados estatísticos do Ministério da Saúde referentes às taxas de contágio e mortalidade por Covid-19 em cada região brasileira. Em seguida, verificamos os dados mais atualizados do IBGE e da Agência Nacional de Águas referentes à disponibilidade de saneamento básico e água limpa nos lares brasileiros. Não ficamos surpresos quando observamos que a proporção de contágios e mortes em relação à população total era bem superior nas regiões Norte e Nordeste, sendo essas as regiões com menor acesso a saneamento e água tratada.
IHU On-Line – Dessas regiões estudadas, quais foram as situações mais preocupantes e que marcaram vocês enquanto pesquisadores?
James Thiago Cruz – É bastante curioso que a região Norte, banhada por imensos rios e com chuva abundante, seja aquela cuja população tem menos acesso à água tratada. A região Nordeste, todos sabemos que sofre com secas intensas, apesar disso sua população ainda tem um pouco mais de acesso a esse recurso tão importante. Isso reflete a falta de políticas públicas adequadas para gerar infraestrutura na região Norte, cuja dimensão territorial e dispersão populacional dificultam a administração.
Erleyvaldo Bispo – Segundo a Agência Nacional de Águas, a região Norte do país detém a maior porcentagem de água doce do Brasil, que equivale a aproximadamente 70%. Mesmo assim, detém os piores índices do país quando verificamos os dados do acesso à água e ao saneamento. Precisamos avançar muito em infraestrutura, principalmente no Norte e Nordeste do país.
IHU On-Line – Além da Covid-19, a que outras doenças e contaminações essas comunidades estão expostas?
James Thiago Cruz – Falta de saneamento básico e água tratada aumentam a vulnerabilidade a doenças de transmissão hídrica e entérica, ou seja, aquelas adquiridas por via fecal-oral, devido a maus hábitos de higiene e ingestão de água contaminada. Não à toa, a mortalidade infantil é elevada nessas regiões mais vulneráveis.
Erleyvaldo Bispo – Anualmente, no Brasil, nós temos aproximadamente 233 mil internações por doenças de veiculação hídrica, sendo que 50% dos atingidos são crianças de 0 a 5 anos de idade. Esse dado é bastante preocupante.
Lembro que quando era criança brincava no esgoto com os meus vizinhos; aquela situação era bastante normalizada naquele contexto em que cresci, cheguei a ter diarreias. Mas temos crianças que não conseguem ter a mesma sorte que a minha e acabam morrendo por causa do contato e consumo de água não tratada. Por isso, essa agenda deve ser levada como prioritária para os governos, como forma de levar dignidade e saúde, principalmente, para pessoas que moram em localidades vulneráveis com baixa infraestrutura.
IHU On-Line – Essa pesquisa de vocês acabou tendo repercussão internacional, com a publicação de artigo no livro internacional Covid-19: Paving the Way for a More Sustainable World, do editor Walter Leal Filho, publicado pela Editora Springer Nature. Qual a importância dessa conquista? E em que medida ela pode chamar atenção para a emergência da concepção de políticas efetivas de saneamento básico, especialmente para essas comunidades estudadas?
James Thiago Cruz – Essa pesquisa está dando visibilidade internacional às necessidades urgentes das regiões Norte e Nordeste do Brasil, podendo aumentar a pressão global sobre o governo brasileiro para estimular a adoção de políticas públicas eficazes voltadas a transformar essa realidade. ONGs e agências globais de fomento ao desenvolvimento também podem conhecer melhor nossa realidade nacional e desenvolver trabalhos voltados à nossa região.
Além disso, uma publicação internacional dá ainda mais credibilidade a esse tipo de pesquisa, de modo que tomadores de decisão brasileiros nas esferas regional e federal podem respeitar ainda mais nossos resultados e levá-los em consideração no desenvolvimento das políticas locais. Afinal, infelizmente, em nosso país valoriza-se muito mais o que vem do exterior do que daqui mesmo, logo uma pesquisa publicada em livro brasileiro não chamaria tanto a atenção quanto numa publicação internacional.
Erleyvaldo Bispo – Essa foi uma conquista muito importante, porque enquanto jovem cientista, empreendedor e ativista pelas águas, busco chamar atenção para a formulação de políticas públicas para solucionar esse problema secular no Brasil. Esperamos engajar os jovens, o setor público, privado e as ONGs, para que juntos possamos obter um melhor resultado sobre os dados relacionados ao acesso à água no Brasil. Sozinho, não conseguiremos chegar muito longe; compreendo a complexidade do problema. Desse modo, precisamos engajar e mobilizar toda a sociedade – todos, sem exceção, não deixando ninguém para trás.
IHU On-Line – No Brasil de 2021, ainda se discute a situação de pessoas que não têm saneamento básico. Como vocês analisam essa realidade?
James Thiago Cruz – Saneamento básico é um direito humano básico, logo é bastante incoerente e absurdo que tantas pessoas ainda sofram sem isso. Vontade política e mesmo uma ajuda da iniciativa privada poderiam transformar essa realidade em pouco tempo. Por isso, em nosso artigo também mostramos algumas iniciativas sociais voltadas a solucionar esse problema. São pequenas iniciativas que fazem uma grande diferença em suas localidades e nossa meta é incentivar a multiplicação dessas soluções.
Erleyvaldo Bispo – Infelizmente, a agenda sobre acesso ao saneamento nunca foi prioridade dos governos. Tivemos um marco regulatório que foi somente aprovado no início de 2020 com vários parênteses sobre se, de fato, conseguiremos universalizar o acesso ao saneamento. Agora, necessitamos mobilizar todos os setores da sociedade para cobrar as instituições que fazem parte da Gestão de Recursos Hídricos, com investimentos na agenda do saneamento e também na formulação de soluções criativas, tecnológicas e inovadoras.
IHU On-Line – Quais os maiores desafios para investimento em saneamento básico no Brasil?
James Thiago Cruz e Erleyvaldo Bispo – O Brasil tem dimensão continental e um largo contingente populacional. Falta infraestrutura básica, que dificulta inclusive a construção de saneamento básico e estações de tratamento de água.
Os maiores desafios estão relacionados ao recurso financeiro e à educação. Pois, geralmente, numa cidade pequena para ter uma Estação de Tratamento de Esgoto - ETE são necessários milhões de Reais para a concretização do projeto. Assim, a educação acaba sendo crucial no processo de informar sobre os benefícios nos níveis educacionais, na saúde e nas moradias da população.
Por fim, por causa do alto valor dos projetos de infraestrutura tradicional que são a construção das ETEs, precisamos ser criativos e inovadores para pensar em soluções baratas e que gerem impacto na sociedade.
IHU On-Line – No Brasil, também há um debate sobre a privatização de estações de tratamento de água potável e esgoto. Como vocês analisam esse tema? A privatização é uma saída ou quem não tem acesso à água tratada e à rede de esgoto segue sem acesso?
James Thiago Cruz – A privatização pode sim acelerar uma transformação positiva desse cenário, mas é importante termos em vista as regiões vulneráveis. Sabe-se que a privatização implica em cobrança de maiores taxas, com a qual infelizmente a grande massa populacional sem acesso a saneamento não pode arcar. Nesse sentido, é preciso avaliar a questão com prudência, e o poder público precisa controlar o processo para evitar excessos por parte da iniciativa privada.
Erleyvaldo Bispo – Primeiramente, vale frisar que a água é um direito básico das pessoas e que está atrelada à garantia de outros direitos, ou seja, precisamos garantir o acesso a essa fonte de vida para todos, não deixando ninguém para trás. Convivemos com uma ótica de que não temos recursos financeiros públicos suficientes para investir em saneamento; precisamos mobilizar todos os setores para que possamos ter resultados que irão gerar impacto positivo na vida das pessoas – envolvendo órgão público, iniciativa privada e as ONGs. Não existe somente um culpado, somos todos culpados e, a partir disso, precisamos nos mobilizar para resolver esse problema que impacta diariamente milhares de vidas no Brasil.
IHU On-Line – Se a água é um direito universal a toda pessoa humana, por que muitos não têm acesso à água ainda hoje?
Erleyvaldo Bispo – Infelizmente, aproximadamente 35 milhões de pessoas no Brasil não têm acesso a uma fonte segura de água, cada região do Brasil tem problemas específicos por causa do não acesso. Precisamos ter governos mais comprometidos em incluir a agenda da água como o ponto focal de qualquer decisão. Estamos vivendo na crise climática e da água, por isso neste momento é muito importante termos respostas rápidas e eficazes para reduzir os impactos causados pelas mudanças do clima, e termos uma água de qualidade é uma forma de reduzir os impactos sentidos pela população.