“O modelo energético poderia ser a plataforma pela qual dinamizaríamos a economia e resolveríamos as nossas mazelas sociais”, mas ele foi “metamorfoseado” desde a década de 1990, lamenta o engenheiro e ex-diretor da área de negócios de Gás e Energia da Petrobras
Apesar de o Brasil enfrentar a pior crise hidrológica das últimas décadas, "há uma chance de escaparmos do racionamento" energético, diz Ildo Sauer. Mas essa possibilidade, explica, não significa que "escaparemos do enorme custo econômico" que o sistema energético, tal como está configurado, gera ao país. "Se conseguirmos civilizar a conduta do governo e superar a pandemia, o problema da energia continuará porque o sobrepreço e o sobrecusto já estão colocados, diminuindo a competitividade. De maneira que o problema energético continua sempre o mesmo desde a liberalização. O problema não está na natureza, na hidrologia; o problema está no modelo energético adotado e na política", diz na entrevista a seguir, concedida via Teams ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Segundo o ex-diretor da área de negócios de Gás e Energia da Petrobras entre 2003 e 2007, o setor elétrico brasileiro vive uma crise desde os anos 1990, quando foram feitas reformas no governo Fernando Henrique Cardoso, as quais foram agravadas nos governos petistas. "A crise que vivemos permanentemente no setor elétrico não é uma crise de falta de recursos humanos ou de recursos naturais – temos potencial eólico, solar fotovoltaico e hidráulico remanescente para suprir mais do que três vezes a demanda de energia prevista". O problema, adverte, consiste na transformação do setor energético numa "plataforma de transferência de excedente econômico". Ele explica: "Nós chegamos a esse ponto de crise por causa da conjunção de interesses: contratamos as usinas erradas, operadas de maneira desesperada entre 2010 e 2015, impondo um custo elevado".
Sauer também comenta a proposta de privatização da Eletrobras e os "jabutis" incluídos na Medida Provisória - MP 1.031/2021, aprovada recentemente na Câmara dos Deputados, a expansão da energia fotovoltaica no Brasil e os desafios acerca da busca de "um novo modelo" para equilibrar o boom da fotovoltaica no país. "Não se trata de taxar o sol; os sistemas têm custos. Para o sistema fotovoltaico ter confiabilidade, ele precisa estar interconectado. Para estar interconectado, é preciso uma rede de distribuição, e ela tem custos. Mas é possível – e essa é a notícia mais importante – equilibrar tarifas e preços. É possível criar incentivos para que a fotovoltaica seja expandida nas regiões onde traga mais benefícios", assegura.
Ildo Sauer (Foto: Gabriela Korossy | Câmara dos Deputados)
Ildo Sauer é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e doutor em Engenharia Nuclear pelo Massachusetts Institute of Technology. Recebeu, pela USP, o título de Livre Docência em 2004, professor titular desde 2005, e atualmente é coordenador do Centro de Análise, Planejamento e Desenvolvimento de Recursos Energéticos - CPLEN, do IEE-USP.
IHU On-Line – Em 2021, o Brasil voltou a sofrer uma nova crise energética. Como o senhor analisa o quadro atual?
Ildo Sauer – Primeiramente, não chega a ser surpresa, porque estamos vivendo uma instabilidade do setor energético por mais de duas décadas e meia. A partir das reformas liberais dos anos 1990, tentadas no governo Collor e concretizadas nos governos FHC, criou-se a lei das concessões do setor elétrico para fazer a transição do modelo estruturado em torno da liderança da Eletrobras com a participação das empresas distribuidoras regionais de grande porte: Furnas, Chesf, EletroSul, EletroNorte, Eletronuclear, e de menor porte, para dar espaço para os investimentos privados. Também houve a participação de Itaipu e das grandes estatais estaduais, principalmente a Companhia Energética de São Paulo - Cesp, a Companhia Energética de Minas Gerais - Cemig, a Companhia Paranaense de Energia - Copel e a Companhia Estadual de Energia Elétrica - CEEE, no Rio Grande do Sul. Esse era o quadro em 1995 e essas empresas tinham uma certa hegemonia regional. A EletroNorte era a mais recente das empresas e tinha como obrigação desenvolver os recursos energéticos da região Norte; a Chesf, no Nordeste; Furnas, no Centro-Oeste e Sudeste; e a EletroSul, nos três estados do Sul. Mas a questão não estava somente em abrir espaço para o setor privado, mas principalmente na desverticalização, isto é, introduzir mecanismos de mercado na geração e, parcialmente no consumo, pelo mercado dito livre, para os grandes consumidores, e, em alterar o regime de regulação pelo custo do serviço para a regulação por preço-teto incentivado na distribuição. Com isto ao invés de pagar o custo médio na geração, o preço passa a ser definido pelo mercado competitivo, e, assim, sinalizado pelo custo das alternativas mais caras ainda requeridas para atender a demanda.
A criação da Eletrobras ocorreu no governo João Goulart, mas foi proposta por Getúlio Vargas. Entretanto, houve oposição das grandes forças econômicas que já estavam aqui há mais de meio século, como a Light e a Amforp, que se opuseram à criação da Eletrobras porque queriam ocupar este espaço de forma privada. O governo militar manteve a ideia da Eletrobras porque o golpe veio logo depois da criação da empresa, em 1962. Eu conversei com o ministro de Minas e Energia, Mauro Thibau, do então governo [Humberto de Alencar] Castelo Branco, anos atrás, quando ele estava atuando no Rio de Janeiro como consultor. Ele disse que a intenção à época era fazer uma espécie de Petrobras da energia elétrica, mas os ministros [Otávio Gouveia de] Bulhões e Roberto Campos disseram que não havia dinheiro e propuseram a montagem de um esquema flexível para que os estados que dispunham de capitais, como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná, pudessem aportar.
Assim, criou-se esse consórcio nacional que conduziu o sistema elétrico brasileiro em paralelo com a Petrobras, compondo os dois pilares do sistema energético nacional, coordenado pelo Estado. Ele foi criado para dar conta das duas grandes vertentes energéticas que emergiram da segunda fase da Revolução Industrial: o processo de urbanização e o de industrialização no mundo inteiro, desde o fim do século XIX, e no Brasil especialmente a partir do Governo Vargas. Já a partir do segundo governo Getúlio Vargas, mas também no primeiro, ficou patente que a transição de uma sociedade agrária para uma de base urbana e industrial não podia prescindir do aporte energético, ao lado do aço, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, das siderúrgicas, da Vale do Rio do Doce e de todos esses empreendimentos que, de uma forma ou de outra, foram precursores do que a China seguiu muitos anos depois, a partir de 1978, ironicamente: a coordenação pública. Quer dizer, ironicamente não, porque esse modelo estava dando certo aqui, mesmo no governo militar, e deu certo lá.
A desestabilização desse sistema, que funcionou – e que teve lá seus problemas, evidentemente –, por um sistema orientado exclusivamente pela liberalização e competição de mercado, introdução da desverticalização (com competição na geração, monopólios na transmissão e distribuição e espaço para a livre comercialização, pelo menos para os grandes consumidores) do modelo mercantil em substituição ao modelo de regulação pelo custo do serviço, com lucros controlados, para dar espaço a novos agentes, inclusive alguns apenas especulativos, criando assim a possibilidade de apropriação de lucros muito maiores do que os possíveis sob o regime de serviço pelo custo regulado.
O novo modelo entrou em vigor a partir de 1995 – essa é uma longa história que não vou tratar aqui, mas que tem a ver com a liberalização mundial iniciada com [Augusto] Pinochet, no Chile, adaptada por [Margaret] Thatcher, na Inglaterra, e assumida por [Ronald] Reagan, nos EUA, e exposta pelo Consenso de Washington a todos os países em desenvolvimento, com privatizações e mercados.
No Brasil, o setor elétrico brasileiro foi reformado no governo FHC, que prometia tarifas mais baixas e qualidade de energia. Mas esse modelo culminou no racionamento em 2001, na explosão tarifária e na incapacidade de expandir a oferta, abortando no Brasil a onda de crescimento econômico iniciada no final dos anos 1990, em grade parte induzida pela China. O racionamento de energia elétrica levou a uma recessão econômica. Esse crescimento foi retomado no governo [Lula] que foi eleito em grande parte por causa do fracasso muito visível do sistema de ultraliberalização do governo FHC. A população respondeu elegendo outra alternativa, que acabou não sendo muito outra – essa é a tragédia e por isso estamos em crise permanente no setor. Escrevi um artigo, na Revista USP 104, sobre isso que estou relatando, sobre a gênese e a permanência da crise do setor elétrico no Brasil.
IHU On-Line – Hoje vivemos uma outra onda dessa mesma crise?
Ildo Sauer – Na verdade a situação é um pouco mais sofisticada no seguinte sentido: houve a chamada desverticalização: segmentação das atividades que eram exercidas de forma integrada, geração, transmissão e distribuição de eletricidade em 3 segmentos distintos, e foi acrescida ainda a possibilidade de comercialização para o uso final. No mundo inteiro havia monopólios regionais [de energia] e as empresas eram obrigadas a gerar ou comprar a eletricidade gerada por terceiros nas proximidades de sua área de concessão, transmitir e distribuir a energia elétrica, com as tarifas reguladas pelo custo do serviço, não importando se o capital era privado ou público. A mudança não foi somente a privatização, mas a lógica econômica por trás do sistema: a criação de mercados competitivos que, segundo os especialistas, levaria a preços mais baixos e a grande oferta. Isso não aconteceu na Califórnia – primeiro grande experimento mundial, depois da Inglaterra, não aconteceu na Colômbia, não aconteceu no Brasil nem na Argentina. Em quase todos os outros países que adotaram a reforma ocorreram racionamentos [de energia] e as tarifas explodiram. Isso porque, na hora em que se cria um mercado competitivo na geração [de energia], todo mundo vende pelo custo marginal. Isto é, o custo da usina mais cara vai refletir o preço que todo mundo vai ter que pagar pela energia gerada.
Nos anos 90 houve uma grande campanha pública com o objetivo de desqualificar a gestão estatal e exaltar a superioridade da gestão privada e da competição. Porém, além da privatização, esta propaganda também serviu para legitimar a mudança da filosofia de regulação e a mudança radical da estrutura da indústria elétrica: a separação das atividades de geração, com competição, transmissão e distribuição, com regulação por incentivos, sem controle dos ganhos, e a introdução à comercialização para grandes consumidores, ditos livres. Mas, no caso do setor elétrico, este combo, privatização com reestruturação, se transformou numa espécie de cavalo de troia, ou bumerangue, para a maior parte do setor privado: os compradores de energia e numa panaceia para os privados que passaram a atuar no setor energético. Os novos mecanismos mercantis na geração legitimam que as fontes de geração mais caras, ainda contratadas para atender o mercado, sirvam de referência para os preços na geração de todas as fontes, dando origem a lucros, rendas diferenciais, diferença entre os custos e os preços. E, a regulação por incentivos na distribuição, combinada com a garantia de equilíbrio econômico-financeiro, algo sui-generis, somente existente no Brasil, passou a permitir que, quando o setor era rentável, os ganhos são da empresa, quando há perdas, estas são transferidas para os consumidores. Estes mecanismos, além da expansão da oferta, mediante leilões de contratação de nova geração não aderente a curva de menor custo, mas atendendo às pressões dos ofertantes (Business friendly ao invés de Market friendly) está na origem do aumento dos preços da energia para os consumidores, muito acima da inflação e dos custos. Além disso, as estatais, e a Eletrobras e suas subsidiárias em particular, foram instrumentalizadas em dois sentidos: servindo de parceira minoritária para os investidores privados, absorvendo riscos dos negócios, e pela imposição de venda de sua energia, muito abaixo dos preços de mercado, numa tentativa de amenizar a trajetória de explosão dos preços do sistema elétrico, decorrente do modelo.
Na transmissão e distribuição, o elevado custo do capital fez com que esses monopólios tivessem um retorno econômico com a segurança que não teriam em outros segmentos. No setor distribuidor mudou não só o fato da transferência da propriedade, mas a forma de coordenar, planejar e também – e o principal é isto – a forma de organizar o setor. Não é somente a privatização que está em jogo: são as oportunidades de grandes ganhos, inclusive no Brasil. Aqui, criou-se uma espécie de cassino do chamado mercado de comercialização, onde os grandes consumidores, nos anos 2004 e 2005, se apropriaram da energia estatal.
A promessa do governo eleito em 2002 era realmente mudar o sistema. Havia uma proposta elaborada por professores e pesquisadores, como nós, da Universidade de São Paulo - USP, e os pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, liderados por Luiz Pinguelli Rosa. Essa proposta abriria espaço para a competição para a contratação de usinas para geração de energia elétrica, mas isso seria feito sob uma coordenação pública para garantir o abastecimento da demanda prevista para o médio e longo prazos, para todos os consumidores, exceto para aqueles poucos que eram consumidores livres, de grande porte, e que queriam contratar sua própria energia. A grande mudança que estava prevista é que esse comprador majoritário (major pool) organizaria a compra de toda a energia, remunerando os custos de capital e de operação e manutenção: água e vento seriam patrimônio público, e o combustível seria comprado coletivamente, quando necessário, para dar suporte nos períodos de hidrologia baixa. Isto significaria que os riscos climáticos seriam absorvidos pelo sistema, e não serviriam de justificativa para majorar os custos da geração, com a desculpa de premiar os geradores pelos riscos incorridos. Além disso, haveria a possibilidade deste ente comprador majoritário organizar a apropriação da renda hidráulica (diferença entre os custos e preços) em benefício de investimentos públicos. Mas isso não foi implementado. Os ajustes feitos na reforma de 2004 foram tênues e mantiveram a lógica mercantil.
Os interesses de setores organizados do capital privado prevaleceram. Esses setores viram uma oportunidade na dependência fundamental do setor residencial, do setor industrial do comércio, dos serviços e da agricultura, inclusive da eletrificação rural, fundamental para o desenvolvimento e aumento da produtividade, para organizar a extração do excedente econômico, isto é, as rendas na geração (oriundas da vantagem comparativa decorrente da qualidade de alguns projetos) e as rendas de monopólio na transmissão e distribuição. O aumento da eficiência produtiva do sistema econômico, incremento da produtividade social do trabalho, depende da apropriação da energia, – isso ficou muito claro a partir da segunda fase da Revolução Industrial, ancorada no uso da eletricidade no sistema urbano-industrial e dos derivados de petróleo para a mobilidade de pessoas e mercadorias. A primeira fase da Revolução Industrial foi a era do vapor, quando já ficou claro que a apropriação da energia aumentava a produtividade. O setor econômico que dele se apropriava tinha enormes benefícios. Essa dependência construída ao longo de um século da sociedade em relação ao setor energético foi transformada em plataforma de extração do excedente econômico. Esses grupos organizados para se apropriar desse excedente fazem a predação junto com os órgãos de governo, o Estado, o Congresso Nacional, visando moldar o modelo e estrutura e a regulação e controle do setor de energia para maximizar seu retorno em detrimento dos consumidores e do País.
Para substituir aquilo que antes era um consórcio liderado pela Eletrobras sob os auspícios do Ministério de Minas e Energia, que organizava o planejamento da expansão e operação do sistema elétrico nacional interligado, foi criado um conjunto de entidades privada: Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, Operador Nacional do Sistema - ONS, Mercado Atacadista de Energia - MAE renomeado, no ajuste de 2004, como Câmara de Comercialização de Energia - CCE, e finalmente para substituir a liderança no planejamento setorial foi criada a Empresa de Pesquisa Energética - EPE, no governo Lula, para fazer estudos “neutros” em relação ao interesse das empresas estatais, e definir o cronograma dos leilões para contratação de nova geração de eletricidade, com contratos de longo prazo, ao invés da fracassada competição por MWh do Mercado Atacadista previsto pelo governo FHC. Os envolvidos argumentavam que era preciso ter “organismos de Estado” livres do populismo dos “governos de plantão”. O grande temor deles era que um governo “populista” chegasse ao poder e passasse a zelar de maneira definitiva pelo interesse público coletivo. Esse é o conflito que está na base de tudo. Por isso, a crise que vivemos permanentemente nos anos 1990 no setor elétrico não é uma crise de falta de recursos humanos, de recursos naturais – temos potencial eólico, solar fotovoltaico e hidráulico remanescente que dá para suprir mais do que três vezes a demanda de energia prevista, temos capacidade tecnológica, enfim, todos os recursos necessários para organizar a produção de energia elétrica requerida para o desenvolvimento nacional.
O consumo médio no padrão europeu hoje é de cerca de 6 megawatt-hora (6.000 kWh) por habitante por ano. No Brasil, gastamos a metade disso, entre 2,5 e 3 megawatt-hora por habitante por ano. Não faltam recursos energéticos, capacidade tecnológica e capacidade humana. Ao contrário somente os recursos hidráulicos e eólicos permitiriam produzir o triplo de toda a demanda prevista, mesmo dobrando o consumo per capita, de hoje para valores próximos ao europeu, quando a população brasileira se estabilizar, segundo previsão do IBGE, nas décadas de 2040, 2050, em cerca de 220 milhões de brasileiros. Além disso há o recurso solar fotovoltaico, imensamente superior, e quase uniformemente distribuído geograficamente, os recursos da biomassa e mesmo dos resíduos orgânicos convertidos em biogás.
O que tem acontecido permanentemente é esse conflito. Por isso, digo que a crise não está no setor energético em si, mas na estrutura política do sistema, que foi reformada no governo FHC e não foi, como prometido, reajustada e reorganizada a partir do interesse público no governo da Frente Brasil Popular. A senhora [Dilma] Rousseff fez uma metamorfose em palavras e a mais eloquente foi esta: criou uma empresa de planejamento para legitimar os interesses dos grandes grupos econômicos organizados, fazendo lobbies e pressão no governo e no Congresso Nacional. Os critérios usados para a contratação de nova oferta de energia, quando o excedente de capacidade decorrente do racionamento de FHC se exauriu em 2008, privilegiaram, equivocadamente, usinas a carvão importado, a óleo combustível, energia de gás natural. Isso porque é muito mais rentável para esses segmentos organizar esses negócios visto que a sociedade brasileira e o sistema econômico estão dependentes do setor energético. Este processo de contratação de alternativas mais caras, para favorecer os grupos vencedores dos leilões, se reflete na explosão tarifária que hoje o País enfrenta.
Um consolo, benefício colateral, nesse imenso descalabro criado nessas duas décadas e meia: a energia se tornou tão cara que até novas alternativas se viabilizaram, como a geração fotovoltaica e outras fontes para autoabastecimento.
As fontes de energia eólica e a fotovoltaica acabaram emergindo – claro que com uma força muito maior no exterior, especialmente na China e parcialmente na Califórnia e na Europa –, de tal modo que a eólica se tornou uma fonte importante, e o Brasil hoje detém um potencial eólico, em terra (onshore) já identificado três vezes maior do que o potencial hidráulico já desenvolvido e remanescente somados. Isto sem a realização de um inventário sistemático, liderado pelo poder público em todo território nacional, e sem considerar o potencial em mar (offshore).
IHU On-Line – Dada essa anomalia que o senhor relata na gestão política do setor energético, há risco de um novo apagão ou racionamento?
Ildo Sauer – O quadro atual é o seguinte: de fato, a hidrologia, no Sudeste, neste período de 2021, até este momento, é a mais drástica já registrada; é pior que a de 1954, que antes tinha sido a mais drástica, e pior que a de 2001.
Um possível racionamento depende de dois fatores: como se comportará o consumo, a demanda de eletricidade, e como se comportará a hidrologia até o retorno do período chuvoso no Sudeste, Centro-oeste, Norte e Nordeste, em novembro. A primeira condição para saber se vai haver racionamento ou não é saber qual será o consumo de energia elétrica e o segundo é saber qual será o aporte, mesmo que muito baixo, ou seja, quanto abaixo da média será a hidrologia daqui para frente. Além disso, é preciso saber quanto a energia eólica vai compensar a hidrologia, porque os estudos que temos realizado mostram claramente que toda vez que enfrentamos um período de hidrologia mais crítico, o regime de ventos, até pela natureza da dissipação da energia na atmosfera, tende a ter maiores aportes. Então, a disponibilidade eólica no Nordeste aumenta, muito embora ela hoje represente 10% da capacidade hidráulica brasileira – temos um pouco mais de 15 mil megawatts de usinas eólicas em operação e cerca de 120 mil megawatts de usinas hidráulicas; é uma desproporção.
A diferença entre a situação de 2001 e a de hoje é que agora temos dois fatores relevantes; a capacidade de usinas térmicas é muito maior, embora com custos de combustível muito elevados; e, a economia que está estagnada e em recessão por causa da pandemia. Mas com o controle da pandemia na China – que enfrentou a situação de outra maneira e retomou seu crescimento econômico –, nos EUA – que praticamente resolveram a situação da pandemia e a economia está em recuperação – e na Europa – que, em grande parte, está com a pandemia sob algum controle e em condições de retomar a economia –, é possível que a economia brasileira volte a crescer, já que o Brasil se tornou um país agrário e exportador, principalmente de produtos primários, de minérios e produtos agrícolas.
A outra grande diferença em relação a 2001 é o fato de que há uma base térmica, que talvez evite o racionamento neste ano – isso é possível –, mas que é ao mesmo tempo um grande tormento. De onde vem a base térmica? Do Programa Prioritário de Termelétricas iniciado no governo FHC. Esse programa, que era para ser inteiramente privado e incentivado pelo preço especulativo no mercado atacadista, acabou não se concretizando até 2001 e entramos em racionamento. A Petrobras herdou esse conjunto de investimentos problemáticos – e, por acaso, eu estava na instituição à época, como diretor de Gás e Energia.
Nós colocamos em funcionamento cerca de 4 mil megawatts de termelétricas que eram parcerias da Petrobras com vários grupos especulativos. No governo Lula, organizaram leilões de compra de energia com base num critério, índice-custo-benefício, para definir qual usina contratar, comparando usinas térmicas que, além do custo de investimento, mais baixo, tem custos de combustível, que dependem do número de horas que a usina vai operar por ano, e usinas que têm somente custos de capital, as hidráulicas, as eólicas e as solares. Assim este índice custo-benefício busca refletir o custo anual da capacidade disponibilizada para atender a demanda, que depende da previsão de quanta energia seria necessária nos próximos anos, qual o aporte das usinas hidráulicas, eólicas e fotovoltaicas, o que depende de comportamento da hidrologia e da eologia, e então da fração complementar de energia a ser gerada pelas térmicas, para calcular o custo do combustível. As térmicas são remuneradas sempre pela capacidade instalada, disponível como reserva, seguro, para uso quando requerido, e pelo combustível quando este é necessário. A capacidade tem a ver com a potência e a energia tem a ver com o tempo que se usa essa potência: equivalente ao carro, em que a potência – que é dada em cavalos, para subir uma ladeira –, tem a capacidade de força, e a energia é quanto combustível tem no tanque, ou seja, por quanto tempo é possível operar.
Pois bem, qual é a falácia do modelo de leilões organizados pela senhora Rousseff? Estimou-se que as termelétricas operariam poucas horas durante o ano. Como o custo de capital das usinas térmicas varia de metade para 1/3 do custo das usinas eólicas, fotovoltaicas e hidráulicas, tiveram o desplante de contratar usinas cujo custo do combustível é R$ 1.200 por megawatt-hora. É claro que se a usina operar 100 horas por ano, o custo anual será pequeno. Mas não foi isso o que aconteceu.
Há ainda outro problema: a energia que as hidrelétricas estão autorizadas a vender segundo o modelo vigente, é superior àquela que de fato conseguem fornecer em períodos de hidrologia crítica. Isso agrava a operação do Sistema que conta com uma capacidade fictícia no seu planejamento operativo.
Havia a opção de contratar usina eólica e fotovoltaica, e ocorreram leilões, até 2019, nos quais a energia inteira, capital mais o combustível, que é gratuito por enquanto, custava menos de R$ 100 – cerca de R$ 80 o megawatt-hora. Hoje, o custo está em torno de R$ 200 por causa do câmbio – grande parte da energia eólica e fotovoltaica está vinculada ao dólar, como grande parte das commodities. Então, ficou muito claro, de 2012 a 2015, na outra crise elétrica, que nós operamos usinas térmicas com um custo entre R$ 200 e 1.100 por megawatt-hora, e foram gastos, somente para este combustível, cerca de R$ 112 bilhões. Se tivessem usado esse valor para a contratação de usinas eólicas e fotovoltaicas, nesses leilões realizados entre 2005 e 2010, teríamos construído cerca de 20 mil megawatts de usinas eólicas e cerca de 50 mil megawatts de fotovoltaicas ou uma combinação entre ambas, e a crise não teria existido.
Mas queimamos esse dinheiro, aumentou-se a conta para a população brasileira, e quem ganhou com isso foram somente os empreendedores. Alguns ganharam pouco ou muito, relativamente, mas o sistema inteiro perdeu muito mais, porque essa foi uma opção errada, simplesmente. Havia opções melhores de menor custo global. Um erro de grandes proporções, porque o custo total para a Sociedade foi muito maior do que os benefícios dos empreendedores; foi uma queima de recurso social, impactando a competitividade da economia e o bem-estar da população. Escolher as alternativas mais caras, mesmo que nem fosse para atender apenas os interesses de certos setores, escolhidos por pressões ilegítimas como vencedores, tem graves consequências para a Sociedade.
Agora, estão repetindo isso: na Medida Provisória que quer privatizar a Eletrobras está embutido um “jabuti” para obrigar a contratação de usinas a gás, pequenas centrais hidrelétricas e de biomassa. Também querem prorrogar o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica - Proinfa, que foi um “jabuti” inventado por empresários no governo FHC, com o apoio do Congresso Nacional, que votou unanimemente a favor do Proinfa. Esses interesses conseguiram se organizar no Congresso, como se organizam novamente hoje; são os mesmos que estão lá. Eles têm assessores jurídicos e base parlamentar para impor essas soluções. O Proinfa foi contratado não com base na opção mais competitiva, mas com base na licença ambiental mais antiga que já estava dada quando a lei foi criada. Assim os vencedores estavam declarados quando o Proinfa foi aprovado.
Agora, esses mesmos interesses estão organizados para impor outra solução. Eles dizem que é muito mais barato comprar energia ilimitada a R$ 350 por megawatt/hora, como parece que consta na MP, do que operar usinas a R$ 1.200 por megawatt/hora. Esquecem simplesmente de dizer que as usinas fotovoltaica e eólica têm um custo muito menor. A grande conversa deles é dizer que as usinas eólica e fotovoltaica não têm potência, ou como alguém, de maneira muito ingênua ou por ignorância, disse que “vento não se estoca”. Sim, se estoca tanto vento quanto sol. Onde? No reservatório das hidrelétricas.
Estudos do nosso Centro de Análise, Planejamento e Desenvolvimento de Recursos Energéticos - CPLEN, num artigo que publicamos na semana passada em uma revista internacional, mostram qual é a contribuição de potência das usinas eólica e fotovoltaica para atender a carga. Isso porque o problema do sistema energético elétrico é duplo: atender a potência máxima e ter estoque de energia para chegar ao fim do ano com orçamento. Mostramos que as usinas fotovoltaica e eólica, além de pouparem água dos reservatórios, quando combinadas estocasticamente, também garantem potência, ao contrário do que dizem muitos especialistas que, na verdade, estão defendendo interesses.
Nós chegamos a esse ponto de crise por causa da conjunção de interesses: contratamos as usinas erradas, operadas de maneira desesperada entre 2010 e 2015, impondo um custo elevado. Agora, querem replicar o novo modelo e, por causa do erro anterior, querem cometer mais um erro. Mas não são erros – esta é uma forma de dizer de quem faz análises –, são interesses.
Essa situação é absurda por duas razões. Primeiro, porque onera de maneira desnecessária a economia brasileira, a torna menos competitiva, em nome de gerar benefícios para os grupos econômicos que implantam essas soluções e impõem um ônus enorme à economia. Eles ganham alguma coisa, mas o todo perde muitíssimo mais. Seria até melhor, se não fosse imoral, compensá-los para que ficassem de fora, e implantar a solução de menor custo. A Sociedade perderia menos.
Por que fazer energia com o dobro do custo se podemos fazer com a metade? Só para atender aos interesses que operam nos meandros e penumbras do poder, no Congresso Nacional, nos palácios. Existem bancadas de parlamentares que estão empenhados, funcionando como despachantes de interesses desses seus patrocinadores, para influenciar e direcionar as decisões em órgãos dos ministérios da Economia e de Minas e Energia, existem associações de grupos de interesse, organizações de consultorias para fazer estudos e divulgá-los, e influenciar a opinião pública em favor de seus patrocinadores.
Grande parte dos meios de comunicação vende à população a versão de que o Brasil não pode mais depender da variabilidade do clima, da hidrologia, principalmente, ou diz que a população foi jogada à mercê da imprevisibilidade dos fatores naturais. Não foi. O clima tem comportamento mapeado e conseguimos fazer modelos de comportamento dele em escala global. Todas as previsões de mudanças climáticas são possíveis porque mapeamos o comportamento do clima, das forças naturais, da dissipação da energia e do equilíbrio termodinâmico da atmosfera do planeta a longo prazo. Temos modelos de simulação do clima, incluindo hidrologia e eologia, de escala global, local e regional que permitem fazer previsões mínimas e máximas do comportamento climático. Então, o erro foi ter contratado as usinas erradas, e não ter contratado, em volume suficiente, usinas eólicas, hidráulicas e fotovoltaicas para usar melhor os reservatórios.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a discussão sobre a possibilidade de privatização de parte da Eletrobras, através da MP 1.031/2021, aprovada recentemente na Câmara dos Deputados?
Ildo Sauer - A MP que quer privatizar a Eletrobras, além de incluir o “jabuti” de contratar usinas hidrelétricas, pequenas centrais hidrelétricas e usinas termelétricas a gás onde não tem gasoduto nem gás, como no Nordeste, quer favorecer o mesmo lobby que criou o Proinfa.
O discurso público de que criamos uma dependência indevida sobre o comportamento do clima visa defender opções energéticas mais caras, através das quais determinados setores vão lucrar bastante, enquanto a população vai pagar uma conta muito mais cara e a economia não vai se desenvolver. O empresariado brasileiro produtivo nunca conseguiu perceber esta dicotomia ideológica: o interesse dos grupos, da supremacia da dita competição versus a coordenação e a cooperação [estatal] em nome da estrutura produtiva. Em nome do mito da superioridade da oportunidade para iniciativa privada em alguns investimentos, acabam por ter como efeito bumerangue energia muito mais cara, que reduz a eficiência e a competitividade do sistema produtivo. A China conseguiu fazer isso e o governo americano está retomando essa perspectiva com a coordenação de [Joe] Biden. Na coordenação estatal [do setor energético], é possível ter uma participação maior ou menor do setor privado, mas ela consiste em buscar soluções de menor custo. Deixar o sistema de mercado operar onde os preços formados em ambiente competitivo são sinalizadores da alocação eficiente dos recursos e recorrer a coordenação pública nos setores de elevado risco e a regulação eficiente dos monopólios naturais.
Com a nova tentativa de privatizar a Eletrobras, querem repetir o modelo chileno: no Chile, privatizaram as empresas elétricas pelo valor previsto no modelo regulatório vigente, de serviço pelo custo regulado, e, depois que elas já estavam privatizadas, disseram que o modelo estava inadequado porque não atendia às bases de eficiência econômica, era preciso precificar com base nos custos marginais, aumentando assim os lucros dos novos donos. Com a Eletrobras vai acontecer a mesma coisa; já estão preparando o “bote”. Já estão sinalizando com o fim da cotização, introduzida pela malfadada MP 579 de 2012, que obrigou a venda da energia das usinas da Eletrobras por valor inferior até ao custo de operação e manutenção, mais impostos: cerca de um terço do custo médio das outras fontes de geração contratada nos leilões (entre 30 a 40 reais por MWh, contra cerca de 150 reais/MWh do preço dos leilões). É previsível que depois da privatização o preço da energia seja elevado para os patamares competitivos, gerando enormes lucros, em nome dos critérios da eficiência alocativa. Tudo isso ocorre porque a sociedade se tornou dependente da energia elétrica. Enquanto a energia individual for mais cara do que a energia vinda do sistema, grupos econômicos continuarão extraindo a diferença do custo. Ou seja, esse valor está sendo apropriado não pela sociedade, mas pelos grupos que operam o sistema.
Em São Paulo, passamos décadas lutando pela não privatização das usinas hidráulicas, que foram construídas a partir dos anos 1960. Quando a concessão das grandes usinas da Cesp venceu, elas foram para o governo federal e o Governo da senhora Rousseff as privatizou. Quem comprou a maior parte da Companhia foram empresas chinesas estatais. Qual é a grande contradição nisso? Que a ação do governo foi distinta do discurso que o programa de governo da Frente Brasil Popular defendia nos anos 1990, de que o subsolo e os potenciais hidráulicos pertencem ao povo brasileiro, segundo consta na Constituição, e por isso o benefício de seu aproveitamento deveria ser revertido em favor do interesse público, para resgatar a dívida social. Segundo essa proposta, o petróleo poderia ser explorado, pagando-se o custo, acrescido de um retorno favorável a quem o produzisse, e a diferença entre esse custo e o preço no mercado internacional iria para um fundo público destinado a investimentos em educação, saúde, transição energética, ciência e tecnologia, previdência etc. Efetivamente, essa renda hoje seria da ordem de 250 bilhões de dólares por ano.
No setor elétrico, as usinas hidrelétricas estatais já amortizadas (que já pagaram seu investimento) produzem mais ou menos 200 milhões de megawatts-hora por ano. A diferença aí também é entre o custo, que é de R$ 10 por megawatt-hora, e o preço médio, em torno de R$ 150 por megawatts-hora, vezes 200 milhões de megawatts-hora por ano, o que dá cerca de R$ 20 a 30 bilhões por ano. Esse excedente, ao lado do petrolífero, poderia ser usado para resgatar a dívida social. Tudo isso estava no discurso e no programa de governo previsto, que visava a socialização da renda hidráulica. Estou falando isso para mostrar que é justamente esse excedente econômico [do setor energético] que está em disputa permanente. Os governos se tornam subalternos e permeáveis aos interesses dos grupos econômicos, que criam suas bancadas no Congresso para defendê-los.
Isso sempre foi assim, desde a Light, nos anos 1920. Getúlio Vargas editou o Código de Águas em 1934, que estava tramitando no Congresso desde 1907, por Decreto-Lei, por causa da oposição dos grandes grupos econômicos. Portanto, a crise potencial de hoje nada mais é do que a continuidade do mesmo processo. Se um governo de origem popular, cuja eleição, em grande parte, se originou do fracasso do setor energético liberalizado que levou ao racionamento, sucumbiu às pressões das forças econômicas, isso é um indicador da ferocidade da luta pelo excedente econômico, que é subtraído do sistema produtivo e de suas potenciais finalidades sociais, em benefício de empreendedores setoriais, grandes consumidores e especuladores do chamado mercado livre, todos predando o sistema energético.
IHU On-Line – Então, a crise no setor tende a continuar?
Ildo Sauer – Como disse, há uma chance de escaparmos do racionamento, mas não escaparemos do enorme custo econômico. Se conseguirmos civilizar a conduta do governo e superar a pandemia, o problema da energia continuará porque o sobrepreço e o sobrecusto já estão colocados, diminuindo a competitividade. De maneira que o problema energético continua sempre o mesmo desde a liberalização. O problema não está na natureza, na hidrologia; o problema está no modelo energético adotado e na política.
O setor energético, que é sofisticado e complexo, é usado como plataforma de transferência de excedente econômico; é uma plataforma de sucção do excedente econômico. Assim como os “drogados” pagam qualquer preço para ter acesso às drogas, nós nos tornamos dependentes desse sistema e os operadores do sistema o usam contra nós e têm conseguido domesticar qualquer proposta que contrarie seus interesses.
Depois que foi domesticada a proposta da Frente Brasil Popular, começamos a ficar céticos sobre a chance de a sociedade se organizar para dar conta da dimensão dessa questão. O modelo energético poderia ser a plataforma pela qual dinamizaríamos a economia e resolveríamos as nossas mazelas sociais. O problema está na estrutura da organização do modelo energético que foi metamorfoseado no governo FHC e mantido no governo do PT.
Acinte maior vi esses dias, quando alguém do Ministério de Minas e Energia disse que estão entregando o controle da Eletrobras, mediante aporte de capital, aos interesses privados, argumentando que a empresa precisa ser colocada em mãos privadas para ter dinheiro para fazer investimento na expansão da energia. Parece que até agora o Ministério não sabe que, desde a reforma feita no governo FHC, a responsabilidade pela expansão da energia é dos leilões e qualquer capital entra.
Historicamente, há outra mazela que não pode ser esquecida: as grandes usinas hidráulicas de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, e outras tantas, foram feitas com o dinheiro do BNDES, assim como as grandes linhas de transmissão também foram feitas com dinheiro do banco e algum aporte estrangeiro. A Eletrobras ficou como minoritária em todos esses empreendimentos, dando garantias. Ou seja, de um lado, usaram a Eletrobras e “depenaram” o valor dela ao venderem a energia hidráulica na cotização de 2012. De outro lado, a mantiveram como sócia minoritária, subportadora de riscos dos investimentos nos parques eólicos, nas linhas de transmissão e nas grandes hidráulicas. Então, mudou o discurso de 2002 a 2014, mas a essência de subordinação do governo aos grandes grupos foi mantida.
Hoje, quando ouço um ex-presidente dizendo que gostaria de converter a Eletrobras numa Petrobras, lembro do que eu disse numa entrevista que concedi anos atrás: do jeito que o Lula estava interferindo, com a Rousseff, na Petrobras, seria mais fácil transformar a Petrobras numa Eletrobras – como ela estava naquele tempo –, do que o contrário.
IHU On-Line – Há um crescimento e um interesse maior, tanto residencial quanto empresarial, pela energia fotovoltaica. Nesse sentido, campanhas publicitárias anunciam que a adesão à energia fotovoltaica só não é maior porque o setor energético não quer. Outros comparam essa opção energética com o caso do gás natural nos veículos, que teve um boom anos atrás, e muitas pessoas fizeram a conversão nos seus veículos para usar esse combustível, mas depois não valeu mais a pena. Há riscos de as pequenas usinas fotovoltaicas serem taxadas ou de medidas frearem a sua expansão?
Ildo Sauer – Vou responder às duas questões porque quem organizou o boom do gás natural fui eu. Quando era diretor de Gás e Energia da Petrobras, foi criado o programa de massificação do uso do gás natural, que visava desenvolver o uso racional do gás nos segmentos onde ele geraria maiores benefícios: setores veicular, residencial e industrial. Mas quando fui demitido da Petrobras, Lula e Rousseff foram para a televisão e disseram que o gás era muito nobre para ser usado em veículos; tinha que usá-lo para termelétricas. Ou seja, eles reservaram o gás que tem valor vinculado ao petróleo, para uso nas usinas térmicas, e substituir água e vento que são gratuitos, e agora já sabemos o preço desse erro.
O modelo que eu tinha criado era simples: no momento de uma crise, se por acaso faltasse gás e fosse necessário destiná-lo às termelétricas, seria possível dar um voucher para os donos de veículo a gás. Isso não foi feito porque o governo não quis. Então, sobre a questão do gás, a explicação é esta: foi uma sabotagem comandada pela senhora Rousseff. Basta ver os vídeos na televisão, entre 2006, 2007 e 2008, quando Lula foi levado a falar essa asneira publicamente, de que o gás era muito nobre para ser usado em veículos. O gás deveria continuar sendo usado porque ele polui menos, embora agora tenhamos a opção da mobilidade elétrica.
A médio prazo, acredito que o mundo vai voltar a ser elétrico. Digo voltar porque, nos anos 1910, 1920, majoritariamente, os carros eram elétricos. Nos EUA, os carros feitos por [Thomas] Edison eram elétricos, e havia carros a carvão e a etanol; o Ford T, por exemplo, era bicombustível. O carro flex não foi inventado no Brasil, como o ex-presidente costuma dizer; ao contrário, tem mais de cem anos.
O petróleo se impôs pelas condições econômicas, por ter um custo muito mais baixo do que as demais alternativas, e a rede elétrica não era expandida o suficiente. Agora, com a expansão da rede elétrica, existem condições para abastecer os veículos. As baterias melhoraram muito em capacidade e reduziram de preço. Naquele tempo, uma bateria pesava 800 Kg e hoje pesa cerca de 10% disso. Então, é possível que a mobilidade elétrica ganhe mais força e o gás não seja necessário.
Sobre a energia fotovoltaica, há uma disputa de interesses e é preciso buscar um novo equilíbrio. No nosso centro de pesquisa, temos um projeto em andamento que busca justamente tentar equilibrar o boom da fotovoltaica no Brasil, o qual se deu através do net metering (medição líquida) – [sistema de compensação de energia elétrica] [1]. Um dos primeiros projetos de fotovoltaica foi construído no Instituto de Energia e Ambiente da USP, sob a liderança do professor [Roberto] Zilles e serviu de referência para o processo regulatório do net metering, adotado na Aneel, contrariando o interesse das distribuidoras.
O net metering consiste no seguinte: o consumidor instala o sistema no telhado da casa, do prédio, ou onde quiser; esse sistema tem um inversor e uma medição bidirecional que mede o quanto entra e o quanto sai de energia e estoca a energia no sistema, isto é, nos reservatórios hidráulicos. A existência de reservatórios diferencia muito o Brasil de outros países, para a inserção de fontes ditas intermitentes como a fotovoltaica e a eólica. O Brasil tem capacidade de estocar cerca de 1/3 do consumo anual quando os reservatórios estão cheios, mas isso não tem sido usado adequadamente.
Essa estocagem e intercâmbio energéticos não é de graça. O net metering foi um impulso de incentivo para permitir que muita gente conectasse seu sistema fotovoltaico gratuitamente: se usa a rede de distribuição e de transmissão para guardar a energia no cofre das hidrelétricas e depois recebê-la de volta. Pelo fato de a energia fotovoltaica gerar energia no local em que é consumida, ela possibilita que não se tenha de investir na expansão do sistema de distribuição, no sistema de transmissão e no sistema de geração. Ou seja, poupa investimentos nos três segmentos da cadeia elétrica. Mas isso depende das circunstâncias. De qualquer maneira, é preciso ter um modelo regulatório dinâmico que equilibre os custos e benefícios para os consumidores-geradores, donos dos sistemas fotovoltaicos, para as distribuidoras responsáveis pela rede elétrica, e para os demais consumidores. E isso é possível, mas não será atingido com as propostas em tramitação no Congresso.
Uma possibilidade é operar de maneira descentralizada, no modelo de que cada um constrói seu sistema de 4 a 6 quilowatts, conectadas ao sistema de distribuição no ponto de consumo, economizando assim investimentos em geração, transmissão e distribuição, outra, muito diferente, é instalar usinas de médio porte, centralizadas, de 20 ou 30 megawatts, em regiões distantes, exigindo o acesso aos sistemas de transmissão e distribuição, que demandam investimentos. A fonte fotovoltaica tem uma uniformidade muito grande no território nacional, apesar de ter regiões com mais ou menos sol, ao contrário da eólica e da hidráulica, que têm pontos localizados onde essa energia se expressa.
O Projeto de Lei do deputado Silas Câmara [PL 5.829/2019] sobre a regulação da geração e distribuição de energia fotovoltaica está sendo avaliado no Congresso. Ele incorpora as pressões do lobby que atende aos geradores consumidores, parcialmente, das distribuidoras e aos investidores que vendem sistemas fotovoltaicos. Só não atende aos 50 milhões de consumidores elétricos que não participam dessa festa, pois pretende eliminar o net metering e criar subsídios com a conta de desenvolvimento energético, que é paga por todos os consumidores.
Ao contrário do que dizem alguns analistas, não se trata de taxar o sol; a conexão dos sistemas fotovoltaicos à rede têm custos e geram benefícios. Para o sistema fotovoltaico ter confiabilidade, ele precisa estar interconectado. Para estar interconectado, é preciso uma rede de distribuição, e ela tem custos. Mas é possível – e essa é a notícia mais importante – equilibrar tarifas e preços. É possível criar incentivos para que a fotovoltaica seja expandida nas regiões onde traga mais benefícios. Nas outras regiões, talvez seja importante pagar uma pequena contribuição para usar o sistema de armazenagem da energia excedente no Sistema Elétrico, ou seja, para hospedar a energia no sistema. Isso é algo bastante local: se a rede de energia em São Leopoldo está saturada, ao invés de construir novas redes, é melhor investir em fotovoltaica. Em regiões em que a rede está com folga, talvez o consumidor que queira se beneficiar dessa energia deveria pagar uma pequena contribuição para usar o sistema. Mas mesmo com essa contribuição, a energia fotovoltaica vai ser competitiva e trazer benefícios para o consumidor geral, para a sociedade, e vai nos livrar de ficar à mercê do lobby dos grupos de interesse.
A questão é que isso não está sendo orientado pelo interesse público, por políticas públicas que levem em conta esse tipo de análise. Em geral, quem se impõe é o lobby daqueles que querem investir em sistemas fotovoltaicos ou daqueles que querem se tornar donos desse sistema ou daqueles que vão se beneficiar dele.
O modelo atual é o seguinte: teoricamente, uma distribuidora de energia é remunerada pelo serviço que ela presta. De que maneira? Ela constrói e opera e faz a manutenção da rede de distribuição, instala os transformadores elétricos, tem que garantir qualidade. Tudo isso tem custos que são pagos através das tarifas. Além disso as tarifas incluem as perdas e o custo da energia dos consumidores inadimplentes, os furtos e gatos, que são incluídas nas contas dos demais consumidores. Quando muitos consumidores passarem a produzir sua própria energia, conectados à rede, a empresa tende a se transformar numa espécie de internet da eletricidade, tornando-se responsável pela qualidade da energia e pelo funcionamento da rede, devendo ser remunerada por este serviço, segundo o balanço de custos e benefícios, para consumidores geradores, e para os demais consumidores. Essa é uma simplificada síntese regulatória.
Atualmente para adquirir a energia entregue aos consumidores, as empresas participam dos leilões nacionais e compram energia, muito embora a lei criada em 2004 já permita que cada empresa contrate localmente 10% da energia, ou seja, elas poderiam contratar usinas a biogás, eólica, fotovoltaica etc. Mas elas não fazem isso. O presidente de uma grande empresa disse que para elas é melhor adquirir energia através dos leilões periódicos, organizados pela EPE e ANEEL – aqueles mesmos que no passado, por meio de um embuste na relação custo-benefício contrataram energia mais cara que o necessário. Isso porque a fórmula de contratação da energia estava viciada, na previsão do uso de combustíveis, justamente porque o cálculo econômico na hora de contratar tem parâmetros de previsão do futuro equivocados. Por isso grande parte das distribuidoras se opõe à geração distribuída, como a fotovoltaica descentralizada. É mais um discurso que vai contra o interesse do longo prazo.
Além do mais, agora o governo quer voltar a retomar a construção Angra III e mais usinas nucleares. Sem levar em conta o problema dos resíduos, a energia vai custar no mínimo o triplo em relação a outras opções, sem necessidade, deixando como herança para as gerações futuras o combustível irradiado. Esse é mais um lobby que está se manifestando.
Esta é uma análise simplificada do problema, mas serve para ilustrar os conflitos de interesse envolvidos, e, sem política pública e modelo regulatório adequado, as soluções de menor custo econômico e menor de impacto ambiental, como a fotovoltaica descentralizada, acabarão sendo inviabilizadas, em detrimento da Sociedade. Por isso é importante ressaltar: o problema do setor energético não é a falta de opções, é a forma como grupos de interesse agem e como os governos se submetem a essas pressões para impor à sociedade indefesa. O setor energético em geral e o elétrico em particular se converteram numa plataforma de “legitimação” de transferências econômicas vultosas do povo brasileiro em benefício de grupos organizados ou mesmo, simplesmente, destruição de recursos ou riqueza por escolhas erradas, de maior custo ao invés das das alternativas de menor custo.
Inclusive, se elogia muito o Programa Luz para Todos – que foi uma proposta originada a partir da tese de doutorado de uma pesquisadora de nosso instituto, e que foi levada ao programa da Frente Brasil Popular –, mas 18 anos depois, o Luz para Todos ainda não levou luz para todos. E a forma como levou foi muito mais cara do que o necessário. De maneira que este é mais um setor que ao invés de adotar as propostas mais simples, se submeteu aos interesses das empreiteiras. Os contratistas que faziam as redes do Luz para Todos, ao invés de estarem preocupados em fazer redes, estavam preocupados em atender às demandas de despachantes dos interesses desses grupos, e não como defensores do interesse público. Infelizmente, não tenho visto capacidade de organização da população e discernimento político nas suas escolhas, porque ela é vítima das escolhas que faz. O problema, então, está na política e não na natureza, na hidrologia.
[1] Sistema de Compensação de Energia Elétrica, conhecido pelo termo em inglês net metering, é um procedimento no qual um consumidor de energia elétrica instala pequenos geradores em sua unidade consumidora (painéis solares fotovoltaicos e pequenas turbinas eólicas) e a energia gerada é usada para abater o consumo de energia elétrica da unidade. Quando a geração for maior que o consumo, o saldo positivo de energia poderá ser utilizado para abater o consumo em outro posto tarifário ou na fatura do mês subsequente. (Nota de IHU On-Line).