Segundo o pesquisador, “apesar dos níveis de diversidade biológica serem os mais elevados na história do planeta, estamos caminhando a passos largos rumo ao declínio das espécies”
Muitas pessoas têm negado a degradação ambiental de nossos tempos sob o argumento de que isso faz parte de ciclos naturais da Terra e que, como houve perda de biodiversidade em outras eras geológicas, isso poderia estar ocorrendo novamente. No entanto, a análise de Heraldo Ramos Neto revela que é preciso calma e cuidado com análises reducionistas. Ele diz que é verdade que outros eventos causaram transformação no planeta. Porém, desde a existência do ser humano sobre a terra, as rápidas transformações são visíveis. “A espécie humana é um organismo causador de perturbação e que precisa reavaliar suas ações, sob o risco de não conseguir persistir. Em uma biosfera cada vez mais modificada, aumenta-se o risco de colapso dos processos ecológicos e evolutivos que sustentam a vida, incluindo a humana”, adverte na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Ou seja, se o mundo se transforma, o ser humano tem causado perturbações alheias a esses movimentos geológicos mais naturais. “Apesar de os níveis de diversidade biológica serem os mais elevados na história do planeta, estamos caminhando a passos largos rumo ao declínio das espécies e dos ecossistemas, devido às transformações ambientais causadas pelos humanos”, observa o consultor ambiental. Ele ainda explica que “as principais causas de redução da biodiversidade são a perda e fragmentação de habitat, mudanças climáticas, superexploração de recursos naturais, poluição e introdução de espécies invasoras. Todas elas estão ligadas às atividades humanas, incluindo a expansão rural e urbana”.
Heraldo ainda alerta que a mudança de hábitos e relações com o planeta é mais do que emergente, não podemos ‘pagar para ver’ quais serão as consequências e apostar numa evolução adaptativa das espécies, entre elas a humana. “Não temos tecnologia e conhecimento suficientes para prever as consequências evolutivas a longo prazo”, adverte. Segundo aponta, é preciso grande engajamento das pessoas para mudanças em larga escala. “Para isso, é preciso desenvolver políticas públicas e ferramentas que proporcionem a participação efetiva da sociedade na resolução de questões ambientais importantes”, sugere, reiterando que “é preciso insistir na mudança de hábitos”.
Heraldo Ramos Neto (Foto: Arquivo pessoal)
Heraldo Ramos Neto é biólogo e mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília – UnB, autor da dissertação “Biodiversidade em crise: extinções, invasões e homogeneização biótica no Antropoceno”, realizada no Laboratório de Biologia Evolutiva sob a orientação da Prof. Dra. Rosana Tidon.
IHU On-Line – Muito se fala em biodiversidade, o termo inclusive é parte do vocabulário comum. No entanto, o que significa o conceito e como o percebemos na vida cotidiana?
Heraldo Ramos Neto – De acordo com a Convenção Sobre Diversidade Biológica – CDB, principal fórum mundial de discussão sobre o assunto, a biodiversidade envolve toda a variabilidade taxonômica, genética e funcional dos organismos, compreendendo genes, espécies e ecossistemas. Essa variação pode ser percebida em diversas escalas de observação, desde uma simples mutação genética em uma população da mesma espécie, até o conjunto de ecossistemas terrestres e aquáticos de toda a biosfera.
No cotidiano, a diversidade biológica é percebida nas diferenças de forma, coloração, funcionalidades e até comportamentos dos organismos que vemos no mundo. Ademais, ela está ligada direta ou indiretamente a quase tudo que fazemos, incluindo nossa alimentação, saúde, bem-estar e segurança. Tudo está interligado por meio de processos ecológicos e evolutivos que ocorrem há bilhões de anos, os quais resultaram na atual biodiversidade.
IHU On-Line – Quais as consequências da perda da biodiversidade? Mais do que isso, o que ela indica?
Heraldo Ramos Neto – A biodiversidade oscilou diversas vezes na história do planeta, em eventos menos ou mais dramáticos. A extinção do Permiano, por exemplo, ocorrida há cerca de 250 milhões de anos é considerada por muitos cientistas a maior delas, onde estima-se ter ocorrido a redução de mais de 95% das espécies marinhas em cerca de 3 milhões de anos, um período curto na escala geológica. De acordo com os estudos, múltiplas erupções vulcânicas na região da Sibéria teriam causado mudanças profundas na atmosfera e nos oceanos, reduzindo a biodiversidade drasticamente.
Eventos como esse são conhecidos como extinções em massa. Tais situações são raras e estão geralmente relacionadas a grandes mudanças ambientais, decorrentes de fenômenos naturais de grandes proporções, como erupções vulcânicas e queda de corpos celestes. A maioria dos autores indica cinco eventos principais de extinção em massa. O mais famoso ocorreu há cerca de 65 milhões de anos, no final do Cretáceo, com a extinção dos dinossauros. Atualmente, há um consenso crescente de que estamos vivenciando um sexto episódio de grande extinção, desta vez em decorrência das transformações ambientais causadas ou potencializadas pelos humanos.
Com relação às consequências da perda de biodiversidade, podemos destacar pelo menos dois seguimentos. As consequências ecológicas são aquelas relacionadas a mudanças no funcionamento dos ecossistemas, em decorrência de alteração dos processos de fluxo de matéria e energia, ligados à atividade biológica. Espécies, populações, comunidades e ecossistemas são interligados por meio de processos materiais e energéticos dinamicamente equilibrados, os quais tornam possível a coexistência de diferentes formas de vida, incluindo a humana.
Uma vez que as partes desse sistema são retiradas ou reorganizadas, o equilíbrio dinâmico do conjunto pode ser alterado, comprometendo o seu funcionamento. Isso pode levar a mais extinções, redução na quantidade de recursos naturais essenciais como água potável e alimentos, alteração na fertilidade dos solos, entre outros.
As consequências evolutivas são ainda mais complexas, pois envolvem as questões ecológicas em um amplo espectro temporal e espacial, desde mudanças moleculares em populações locais, até transformações em toda a biosfera, como as ocorridas nos períodos das grandes extinções.
Um ponto importante é que ainda não temos tecnologia e conhecimento suficientes para prever as consequências evolutivas a longo prazo. O que sabemos, com base nas extinções anteriores é que a biodiversidade normalmente se recupera, atingindo inclusive níveis maiores após grandes extinções, porém as espécies perdidas jamais retornam.
IHU On-Line – O impacto da espécie humana – homo sapiens – nas áreas urbanizadas é significativo, para não dizer destrutivo. Como se caracteriza, em geral, a biodiversidade em áreas urbanas?
Heraldo Ramos Neto – Cidades normalmente dependem de uma elevada quantidade de recursos externos materiais e energéticos para funcionarem, constituindo locais de intensa e frequente alteração ambiental, tanto a nível local quanto nos locais de origem desses recursos. Além disso, o ambiente urbano não reproduz as condições naturais dos ecossistemas, portanto um número menor de espécies está apto a persistir nesses locais.
Por outro lado, algumas espécies acabam tirando proveito das áreas urbanas, para obtenção de recursos como alimento e abrigo. Assim, é possível encontrar uma biodiversidade expressiva nas cidades. Na realidade, essa é uma das agendas mais promissoras do ponto de vista do engajamento das pessoas na proteção da biodiversidade. Apesar de ser um ambiente de intensa degradação ambiental, cidades concentram recursos financeiros e humanos importantes para o aumento do nosso conhecimento sobre a natureza, assim como proteção da biodiversidade.
No entanto, cidades geralmente são locais com presença elevada de espécies não endêmicas, chamadas também de espécies exóticas, muitas delas invasoras. Uma espécie exótica se torna invasora quando se estabelece e passa a proliferar fora do seu ambiente de ocorrência natural, causando muitas vezes impactos ambientais e socioeconômicos. Áreas urbanas são propícias à ocorrência desses organismos, devido à circulação humana intensa e o grau elevado de perturbação ambiental.
Em tais condições, há uma tendência de diminuição das espécies especialistas com distribuição geográfica restrita, as quais são mais dependentes de recursos e condições ambientais específicas para sobreviverem. Ao mesmo tempo, em áreas urbanas verifica-se quantidade elevada de espécies generalistas amplamente distribuídas, que toleram uma maior variedade de condições.
Muitas espécies generalistas são extremamente adaptadas aos ambientes antropizados, sendo chamadas de sinantrópicas. O termo é utilizado para se referir aos organismos que se beneficiam dos assentamentos humanos e suas atividades, como por exemplo moscas, pombos, ratos, baratas, entre outros. Muitos deles são exóticos invasores e causam impactos ambientais e socioeconômicos diversos. Ademais, atualmente as invasões biológicas estão entre as maiores causas de extinção da atualidade.
Esse processo de substituição de ecossistemas e espécies locais por ambientes e organismos amplamente distribuídos é o motor de um fenômeno global conhecido como homogeneização biótica. Tal fenômeno tem sido crescentemente estudado pelos cientistas nos últimos 20 anos, tornando-se uma das principais questões ecológicas e evolutivas atualmente.
IHU On-Line – O que significa dizer que a “biodiversidade está em crise”? Qual o papel da expansão urbana e rural nesse processo de extinção das espécies?
Heraldo Ramos Neto – De acordo com o dicionário, a palavra crise pode significar uma “conjuntura ou momento perigoso, difícil ou decisivo”. Essa definição caracteriza bem o que estamos vivendo atualmente em relação à biodiversidade. Apesar de os níveis de diversidade biológica serem os mais elevados na história do planeta, estamos caminhando a passos largos rumo ao declínio das espécies e dos ecossistemas, devido às transformações ambientais causadas pelos humanos. As principais causas de redução da biodiversidade são a perda e fragmentação de habitat, mudanças climáticas, superexploração de recursos naturais, poluição e introdução de espécies invasoras. Todas elas estão ligadas às atividades humanas, incluindo a expansão rural e urbana.
Adicionalmente, crise pode significar “desacordo ou perturbação que obriga instituição ou organismo a recompor-se ou a demitir-se”. Essa definição também cabe muito bem, se pensarmos que a espécie humana é um organismo causador de perturbação e que precisa reavaliar suas ações, sob o risco de não conseguir persistir. Em uma biosfera cada vez mais modificada, aumenta-se o risco de colapso dos processos ecológicos e evolutivos que sustentam a vida, incluindo a humana.
Nesse contexto, áreas rurais e urbanas desempenham um papel chave, pois são as principais fontes das causas de perda de biodiversidade no planeta, e ao mesmo tempo as áreas de maior oportunidade para mudança de hábitos em larga escala populacional e territorial, em prol da proteção da biodiversidade. Cabe a nós escolhermos o rumo que seguiremos e suas respectivas consequências. Isso inclui reformular nossa relação com as áreas rurais e urbanas.
IHU On-Line – O que são, por outro lado, as bioinvasões e quais suas consequências nos ecossistemas?
Heraldo Ramos Neto – As bioinvasões ou invasões biológicas são processos que envolvem o transporte, estabelecimento e a expansão territorial ou populacional de espécies fora de sua área ou ambiente de distribuição natural. Podem ocorrer por fatores naturais, mas na maioria das vezes estão relacionadas a atividades humanas, tais como comércio de animais e plantas, gerenciamento inadequado de resíduos, degradação ambiental, arborização urbana, pesca recreativa.
Assim como as alterações do meio físico causam desequilíbrio ambiental, mudanças na composição biológica também afetam a dinâmica dos ecossistemas, modificando fatores como competição entre espécies, fluxo de nutrientes e energia, resiliência ambiental, entre outros, resultando em extinções e redução de recursos naturais essenciais.
IHU On-Line – Quais são os impactos ambientais das invasões biológicas?
Heraldo Ramos Neto – Podemos dividir os impactos das bioinvasões em ambientais e socioeconômicos. No primeiro caso, citamos como exemplo a redução de populações de espécies nativas, alteração de ciclos biogeoquímicos, aumento de incêndios florestais, redução na oferta de recursos naturais essenciais, entre outros.
Complementarmente, impactos socioeconômicos são aqueles com efeitos sobre a segurança, economia, saúde e outros aspectos relacionados ao bem-estar humano. Podemos citar como exemplo o mosquito da dengue, originário da África e atualmente vetor de doenças importantes em todo o mundo.
IHU On-Line – Como a monocultura e o agronegócio acabam impactando a biodiversidade e a migração de espécies não endêmicas para as áreas urbanas?
Heraldo Ramos Neto – As monoculturas, sobretudo as de maior extensão como no agronegócio são sistemas desenhados para funcionar com uma pequena variedade de espécies, com alta dependência de insumos e energia. À medida que esse tipo de manejo e ocupação do solo avançam, aumentam-se as pressões sobre os remanescentes de vegetação nativa, os quais abrigam parte importante da biodiversidade. Além disso, a quantidade elevada de substâncias químicas normalmente utilizadas em monoculturas podem ser levadas pela água e vento e gerar impactos em ecossistemas distantes, afetando a biodiversidade.
Quanto à migração de espécies não endêmicas para áreas urbanas, trata-se de uma questão de introduções deliberadas e acidentais mediadas por atividades humanas, dentre elas a agricultura. Com a supressão de habitats naturais para expansão da agricultura, altera-se o funcionamento e a resiliência dos ecossistemas, favorecendo a proliferação de espécies exóticas em áreas rurais e urbanas. Ademais, a agricultura continua sendo uma das principais atividades responsáveis pela introdução de espécies exóticas e invasoras ao redor do globo, as quais inevitavelmente acabam atingindo áreas urbanas.
IHU On-Line – Qual a relação entre a crise da biodiversidade e o antropoceno?
Heraldo Ramos Neto – O termo Antropoceno tem sido utilizado para se referir de forma genérica ao período em que a espécie humana se tornou um agente de transformações em larga escala, incluindo a global. Não há um consenso sobre a data de início desse período, nem mesmo se ele existe, quando considerados alguns critérios geológicos. Ainda há muita discussão em torno dessa definição.
Independente das controvérsias, é quase consenso que nas últimas dezenas de milhares de anos os humanos têm afetado significativamente a biodiversidade, desempenhando papéis relevantes em momentos de declínio, como por exemplo na extinção da mega fauna (caça e uso do fogo), no desflorestamento e conversão de habitats em larga escala (assentamentos e desenvolvimento da agricultura) e no aquecimento global (revolução industrial). Tais alterações ambientais causaram e continuam causando ou acelerando a extinção de dezenas de centenas de espécies, muitas das quais ainda não se tem qualquer conhecimento, gerando um futuro de incertezas para a sobrevivência e bem-estar da própria espécie humana.
De acordo com a International Union for Conservation of Nature – IUCN, atualmente há mais de 32.000 espécies ameaçadas de extinção, o que representa cerca de 27% das espécies avaliadas até o momento, ou seja, pode haver muito mais em perigo do que imaginamos. Para muitos cientistas, dados como estes sugerem que estamos vivenciando um novo período de extinção em massa, com consequências ecológicas e evolutivas pouco conhecidas e nada animadoras.
Dados de espécies em extinção no mundo, segundo dados da International Union for Conservation of Nature – IUCN (Foto: IUCN Red List)
IHU On-Line – De que ordem são os desafios para superar a crise ambiental, em escala mais ampla, que vivemos e qual o papel da preservação da biodiversidade nesse sentido?
Heraldo Ramos Neto – Precisamos construir um futuro diferente para o meio ambiente, com base em pelo menos três pilares: engajamento (social, político e econômico); mudança de hábitos; e desenvolvimento científico e tecnológico.
Primeiro, não há como transformar a realidade em escala ampla sem pessoas engajadas e recursos. Para isso, é preciso desenvolver políticas públicas e ferramentas que proporcionem a participação efetiva da sociedade na resolução de questões ambientais importantes, tais como gerenciamento de resíduos, geração de energia, produção de alimentos, moradia, entre outros. Somente de uma forma transversal e com a cooperação massiva da população teremos uma chance de reverter o processo de degradação ambiental em curso.
Adicionalmente, é preciso insistir na mudança de hábitos. Atualmente existem inúmeras iniciativas que visam o desenvolvimento de um estilo de vida sustentável, baseado em ciência e nos desafios sociais, ambientais e econômicos contemporâneos. Entender a realidade ambiental ao nosso redor e agir para melhorá-la é cada vez mais necessário e urgente.
Por fim, a ciência e a tecnologia devem buscar melhorar a nossa compreensão sobre a natureza e a nossa interação com os ecossistemas, de forma a minimizar os impactos humanos na biosfera. Isso implica também em ações de conservação da biodiversidade, tendo em vista sua importância estrutural no funcionamento dos ecossistemas e na provisão de recursos e serviços ambientais essenciais.
Aparentemente, ainda não estamos no ápice da atual crise ambiental mas, se nada for feito para aliviar as pressões sobre os ecossistemas, bastarão poucos séculos para alcançarmos um patamar irreversível. Estamos diante de um dos maiores desafios da história humana, cabe a nós encará-lo antes que seja tarde demais para evitarmos um final trágico.