Pesquisadora aponta que mulheres chegam a dedicar 22 horas semanais a tarefas da casa, enquanto homens chegam somente a 11 horas por semana
A pandemia tem se revelado como a gota d’água para derramar o copo sob vários aspectos, e um deles é relacionado ao trabalho doméstico. Com mais pessoas em casa e o lar passando a abrigar também as atividades profissionais, famílias inteiras se revelam estressadas com tantas responsabilidades. Mas esse estresse não vem somente deste momento que temos vivido. “Acredito que a pandemia contribuiu para retirar o véu da invisibilidade que marca o trabalho doméstico (seja ele remunerado ou não)”, observa a socióloga Luana Simões Pinheiro. “De repente, aquele trabalho tido como menos importante e menos valorizado (que nem trabalho é considerado) tornou-se um ‘elefante’ na sala”, acrescenta.
Luana tem se dedicado a pesquisar o tema e classifica o trabalho doméstico em duas categorias: o remunerado e o não remunerado. Em ambos os casos, é sobre as mulheres que recai a maior parte desse trabalho. “Apenas o fato de ser mulher amplia em 14 vezes a chance de realização de trabalho doméstico não remunerado e aumenta a jornada semanal em 13 horas em relação aos homens”, exemplifica, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E no caso do trabalho doméstico remunerado, essa mulher ainda carrega outros marcadores sociais. “São basicamente mulheres, negras e de baixa renda, juntando em um mesmo corpo (e em uma mesma ocupação) o tripé de desigualdades que nos caracteriza enquanto sociedade: as desigualdades de gênero, raça e classe”, pontua.
A pesquisadora tem uma resposta pronta para quem diz que é preciso reconhecer os avanços no que diz respeito à divisão das tarefas em casa: “não há mudança na estrutura da divisão sexual do trabalho, mas uma adaptação das mulheres à sobrecarga de trabalho, seja via terceirização para o mercado para aquelas que possuem recursos para tanto (creches, serviços de cuidados, restaurantes, trabalhadoras domésticas), seja reduzindo o número de filhos que têm ao longo da vida, seja buscando novas tecnologias que possam auxiliar neste trabalho etc.” E os dados são impressionantes. “Em 2019, as mulheres dedicavam, em média, 22 horas semanais ao trabalho reprodutivo. Já os homens dedicavam, em média, 11 horas por semana”, revela.
Assim, Luana defende a emergência de se quebrarem paradigmas sociais e de se reconhecer a importância do trabalho doméstico. E essa quebra exige ações de mudanças de hábitos individuais, coletivos e mesmo estatais. “É importante não apenas a atuação dos indivíduos (estimulando posturas, comportamentos e valores mais igualitários em relação a gênero), mas é crucial que o Estado assuma sua função na construção de uma sociedade mais igualitária para homens e mulheres”, diz. Ou seja, é, por exemplo, estimular a licença-paternidade estendida para que os homens também se envolvam com as transformações do filho recém-chegado. De outro lado, é fundamental a fiscalização para o cumprimento das recentes conquistas de proteção aos trabalhadores domésticos remunerados.
Luana Pinheiro (Foto: Arquivo pessoal)
Luana Simões Pinheiro é doutora e mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília - UnB, graduada em Economia pela mesma instituição. É técnica de pesquisa e planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, no Distrito Federal. A pesquisadora faz questão de destacar que sua tese de doutorado, intitulada “O trabalho nosso de cada dia: determinantes do trabalho doméstico de homens e mulheres no Brasil”, foi construída e defendida em meio a licenças-maternidade decorrentes de duas gestações. A defesa da tese, realizada em 2018, se dá em meio a atividades profissionais e aos cuidados de uma criança de cinco e outra de três anos e depois de seis anos do início dos estudos.
IHU On-Line – O que caracteriza o trabalho doméstico no Brasil do século XXI? Quem é o principal agente que desenvolve essas tarefas?
Luana Simões Pinheiro – Em relação ao trabalho doméstico remunerado, este é caracterizado, ainda hoje, por uma extrema precariedade e vulnerabilidade. Não apenas o nível de proteção social é muito baixo (menos de 30% possuem carteira de trabalho assinada), como há uma grande desvalorização social e econômica (as trabalhadoras domésticas ainda ganham menos que um salário mínimo por mês, na média), bem como muitos casos de abuso e assédio moral e/ou sexual, culminando, inclusive, com trabalhadoras em situação análoga à escravidão.
As trabalhadoras domésticas são basicamente mulheres, negras e de baixa renda, juntando em um mesmo corpo (e em uma mesma ocupação) o tripé de desigualdades que nos caracteriza enquanto sociedade: as desigualdades de gênero, raça e classe.
Em relação ao trabalho doméstico não remunerado, este ainda é realizado majoritariamente por mulheres e é possível notar ao longo dos anos uma redução nas desigualdades de gênero no tempo alocado nessas atividades. Essa redução, porém, é fruto exclusivamente do comportamento das próprias mulheres que diminuíram suas jornadas reprodutivas, enquanto os homens permanecem, desde 2001 (primeiro ano para o qual o IBGE captou esta informação), realizando exatamente as mesmas 10/11 horas semanais desse trabalho.
Ou seja, não há mudança na estrutura da divisão sexual do trabalho, mas uma adaptação das mulheres à sobrecarga de trabalho, seja via terceirização para o mercado para aquelas que possuem recursos para tanto (creches, serviços de cuidados, restaurantes, trabalhadoras domésticas), seja reduzindo o número de filhos que têm ao longo da vida, seja buscando novas tecnologias que possam auxiliar neste trabalho etc. É importante, além disso, ter em mente que o trabalho doméstico e de cuidados não remunerado realizado por homens e mulheres é diferente. Enquanto cabem às mulheres os trabalhos mais rotineiros, mais consumidores de tempo e menos discricionários (têm que ser realizados todo dia), cabem aos homens trabalhos mais eventuais, que demandam menos tempo e que podem ser postergados (como trabalhos de reparos ou jardinagem).
IHU On-Line – Quanto tempo o trabalho doméstico não remunerado ocupa no cotidiano das famílias? Em que medida ele sobrecarrega a jornada profissional das mulheres?
Luana Simões Pinheiro – O tempo dedicado ao trabalho doméstico varia enormemente a depender do sexo de quem o realiza. Em 2019, as mulheres dedicavam, em média, 22 horas semanais ao trabalho reprodutivo. Já os homens dedicavam, em média, 11 horas por semana a este conjunto de atividades (dados da Pnad Contínua de 2019). É interessante notar que a jornada reprodutiva masculina pouco varia a depender de outros atributos, como sua idade, sua raça, sua condição de ocupação, a existência de filhos, de pessoas idosas no domicílio etc. Já entre as mulheres, há uma enorme variação nas jornadas: mulheres que trabalham mais horas no mercado de trabalho reduzem de forma muito expressiva sua jornada no domicílio, da mesma forma que mulheres com renda mais alta, uma vez que podem adquirir no mercado bens e serviços que substituem o trabalho doméstico.
A responsabilização feminina pelo trabalho reprodutivo faz com que as mulheres enfrentem uma dupla jornada de trabalho muito intensa. É importante notar que a dupla jornada é, de fato, um conceito que só faz sentido quando olhamos para a composição do tempo total de trabalho (no mercado + em casa) das mulheres. Isso porque a diferença entre o tempo de trabalho de homens e mulheres no mercado não é tão expressiva (cerca de 5 horas), ao passo que as desigualdades de gênero na jornada reprodutiva são muito significativas (mulheres com o dobro da jornada dos homens).
Assim, a jornada total de trabalho das mulheres é composta por duas jornadas igualmente extensas e intensas – uma no mercado de trabalho e outra no domicílio. Enquanto isso, a jornada total de trabalho dos homens é composta basicamente por uma jornada que se dá no mercado de trabalho e que é complementada de forma residual pela jornada no espaço doméstico.
Importante destacar, ainda, que o fato de as mulheres seguirem responsáveis pelo trabalho doméstico impacta a sua trajetória profissional desde antes mesmo que elas consigam entrar no mercado de trabalho. Estudos mostram que a existência de filhos, por exemplo, é um dos maiores empecilhos para a entrada de mulheres no mercado, uma vez que o trabalho de cuidados com crianças (e idosos, doentes ou outras pessoas com dependência) é um elemento que condiciona de forma importante quando e em quais tipos de ocupações estas mulheres podem atuar.
Uma vez ocupadas no mercado, as extensas jornadas reprodutivas ainda levam mulheres a se ocuparem proporcionalmente mais em ocupações de tempo parcial que, obviamente, não são as que remuneram melhor ou as que correspondem a postos de poder e/ou decisão. Além disso, muitas vezes os postos de trabalho de maior prestígio e poder nem são oferecidos às mulheres pela pré-suposição de que elas precisarão se ausentar mais do trabalho, não terão a mesma disponibilidade que os homens para o exercício do posto etc.
Claro que muitas vezes isso pode ser verdade – exatamente porque a divisão sexual do trabalho doméstico não remunerado é desigual e injusta –, mas muitas vezes as mulheres podem ter estratégias que as possibilitem ocupar estas posições e os preconceitos as impedem de alcançá-las.
IHU On-Line – Pelo que nos traz, mesmo as famílias de hoje sendo fruto de novos arranjos, as mulheres ainda são as principais responsáveis pela cozinha, faxina e cuidado com as roupas. Como a senhora compreende essa realidade diante de todas as mudanças pelas quais passou o conceito de família?
Luana Simões Pinheiro – As mulheres continuam sendo as principais responsáveis pelos trabalhos de cuidados com o domicílio e com as pessoas que neles habitam, sejam elas crianças, idosos (cada vez mais frequente por conta do envelhecimento populacional), pessoas com deficiência ou qualquer outro tipo de dependência. É interessante dizer que umas das principais mudanças nos formatos das famílias é a redução no tamanho das famílias ao longo dos últimos anos. Hoje, a nossa taxa de fecundidade já está abaixo da taxa de reposição populacional, o que significa que estamos caminhando em direção ao envelhecimento da nossa sociedade, com cada vez menos jovens e mais idosos.
Uma das principais razões para as mulheres estarem adiando a maternidade e tendo cada vez menos filhos reside justamente nas consequências negativas que a carga do trabalho reprodutivo impõe sobre suas vidas. Não havendo divisão do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres no interior das famílias e entre as famílias, o Estado e o mercado, as mulheres seguirão tendo poucos filhos e tendo estes filhos mais tarde. Uma das consequências é que teremos famílias cada vez menores e, portanto, cada vez menos pessoas para cuidarem dos idosos, que são uma parcela cada vez maior da população. Esse descasamento entre redução da oferta de cuidados no interior das famílias e aumento da demanda por cuidados leva a um fenômeno que tem sido chamado na literatura de “crise dos cuidados”.
Outra mudança importante se refere ao fato de que temos cada vez mais famílias que identificam as mulheres como as principais responsáveis, ou seja, como “chefes” daquele núcleo familiar. No entanto, quando assumem a posição de chefe de famílias, as mulheres tendem a realizar ainda mais horas de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado do que quando não são chefes, ao passo que os homens, quando chefes, possuem jornadas reprodutivas menores do que quando não são chefes.
Ou seja, mesmo com a disseminação de valores de gênero mais igualitários ao longo dos últimos anos, com os avanços das mulheres em diferentes campos da vida social, a divisão sexual do trabalho doméstico permanece insistentemente atual e presente nas mais diversas sociedades. Mesmo em sociedades vistas como mais avançadas em termos de igualdade de gênero, como as escandinavas, a desigualdade de gênero nas jornadas reprodutivas é ainda muito expressiva. Para a Suécia, por exemplo, os dados mostram que, em 2000, as mulheres ainda eram responsáveis por mais de 70% do total de trabalho reprodutivo.
IHU On-Line – Muitos analistas dizem que no Brasil de hoje ainda é muito viva a associação entre trabalho doméstico e trabalho escravo. A senhora concorda que essa raiz comum ainda é muito presente?
Luana Simões Pinheiro – O trabalho doméstico remunerado é, como dito anteriormente, baseado em um tripé de desigualdades: de gênero, de raça e de classe. Suas origens e sua formação histórica no Brasil, portanto, remontam, indubitavelmente, ao período de escravidão, no qual a população negra da senzala tinha como uma de suas missões servir aos senhores e senhoras brancos/as da casa grande, inclusive no que diz respeito à realização das tarefas domésticas e de cuidados com pessoas (vale lembrar o papel das amas-de-leite nesse período – também chamadas mães pretas –, as quais eram as escravas que amamentavam os filhos das mulheres brancas que não podiam/queriam fazê-lo).
Na atualidade, é importante notar que, enquanto as trabalhadoras domésticas são predominantemente negras, as famílias que as contratam são predominantemente brancas, pois são aquelas famílias que possuem recursos suficientes para, do seu próprio salário, conseguir remunerar uma outra pessoa. A desigualdade de renda é um pressuposto do trabalho doméstico, afinal é um salário que remunera outro salário. Ademais, as trabalhadoras domésticas seguem submetidas a condições indignas de trabalho, com muita desproteção social, abuso e assédio moral e sexual culminando com a realidade ainda presente de trabalhadoras domésticas que trabalham em condições análogas à escravidão.
Enquanto as desigualdades raciais forem parte da estrutura de desigualdades e conformação da sociedade brasileira, as trabalhadoras domésticas seguirão, em boa medida, submetidas a situações de grande vulnerabilidade e precariedade na ocupação.
IHU On-Line – A historiadora Silvia Federici, autora de Calibã e a Bruxa, vem lutando pelo reconhecimento do trabalho doméstico. Como analisa essa luta e as disputas que vem gerando ao longo da história?
Luana Simões Pinheiro – O trabalho doméstico remunerado foi historicamente invisibilizado nas sociedades ao redor de todo o mundo. Esta invisibilidade – que o mantém sob a proteção do lar, espaço sagrado e inviolável, aliada à ideia de que este é um trabalho que não exige qualquer tipo de qualificação, pois realizado por aquelas que são naturalmente dotadas das habilidades necessárias para tanto, o tornam um trabalho sem valor social e monetário, constituindo-se quase como que em um dever imposto às mulheres, sem um retorno (ao contrário, com várias “penalidades” como já mencionado anteriormente).
Esta construção, contudo, é altamente funcional para as sociedades capitalistas, pois garante, de forma gratuita, a reprodução da força de trabalho. Quando as teóricas feministas começaram a lutar pelo reconhecimento do trabalho doméstico na segunda metade do século XX, a demanda era justamente para que este trabalho fosse reconhecido pela importância que tinha na reprodução da força de trabalho presente e futura (filhos). Com o passar dos anos, porém, esta visão foi ampliada para incluir a reprodução não apenas da força de trabalho, mas da sociedade como um todo e, portanto, da vida.
Assim, o trabalho doméstico e de cuidados não remunerado passa a ser entendido como aquele trabalho necessário para manter a reprodução da vida, para manter existindo e funcionando as sociedades, sejam elas quais forem. É condição para nossa existência e, portanto, seu reconhecimento e valorização social e econômica são essenciais para que possa ser desenvolvido e assumido por toda a sociedade, não apenas pelas famílias e muito menos somente pelas mulheres.
IHU On-Line – Ainda na primeira década dos anos 2000, o mundo do trabalho no Brasil viveu uma transformação com a promulgação de legislação acerca do trabalho doméstico. Que mudanças essa legislação trouxe? O que diferencia aquele Brasil da atual conjuntura?
Luana Simões Pinheiro – A promulgação da Emenda Constitucional - EC 72/2013 foi uma grande vitória para as trabalhadoras domésticas, pois estendeu a elas os direitos trabalhistas constitucionais que já eram assegurados ao conjunto de trabalhadores urbanos e rurais do Brasil desde 1988. A exclusão das domésticas deste rol de direitos era uma expressão da discriminação e da desvalorização do trabalho doméstico.
Com a EC e, posteriormente, com a sua regulamentação pela Lei Complementar 150/2015, passaram a ser devidos às trabalhadoras, entre outros direitos, também o recolhimento de FGTS, o pagamento de horas extras e de salário-família e a multa do FGTS quando as trabalhadoras fossem demitidas sem justa causa. Estas conquistas foram importantes tanto do ponto de vista da vida das trabalhadoras, quanto do ponto de vista do fortalecimento das organizações sindicais do trabalho doméstico.
Sabemos que o trabalho doméstico é uma ocupação que em nada favorece a organização das trabalhadoras e sua sindicalização. É um trabalho realizado de forma isolada, em que as trabalhadoras pouco encontram espaços para socializarem e se organizarem para demandar por seus direitos, os patrões são quase que individuais para cada trabalhadora (diferente de uma empresa em que um conjunto de trabalhadores faz a demanda para uma única direção), as trabalhadoras são pouco escolarizadas e não contam com licença para assumir cargos sindicais. Mesmo nesse contexto desfavorável, as trabalhadoras conseguiram se organizar enquanto categoria de trabalho e montar seus sindicatos desde muitos anos atrás.
Com o passar dos anos, essa organização foi sendo fortalecida, culminando com a fundação da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas - Fenatrad, em 1997. A atuação da Fenatrad e dos sindicatos de trabalhadoras domésticas foi essencial para que a EC 72/13 fosse aprovada e que importantes conquistas trabalhistas fossem estendidas a um conjunto de mais de 6 milhões de pessoas ocupadas no trabalho doméstico.
Ao longo dos anos 2000 e até, aproximadamente, metade dos anos 2010, as condições de trabalho das trabalhadoras domésticas foi, paulatinamente, sendo melhorada. A formalização e a remuneração vinham subindo lentamente, assim como a escolaridade da categoria e o (re)conhecimento de seus direitos. Desde 2016, contudo, esse cenário – que ainda era de muita precariedade, mas caminhava em um rumo de melhorias – passa por uma inflexão e os indicadores começam a regredir em direção a um cenário de maior precariedade e vulnerabilidade do trabalho doméstico.
Os indicadores de formalização e proteção social caem abaixo da taxa de 30% e a trajetória de crescimento da renda do trabalho é freada, especialmente por conta dos pequenos reajustes do salário mínimo ao qual, de uma forma ou de outra, a remuneração destas trabalhadoras acaba sendo indexada. Sugiro uma olhada no texto publicado pelo Ipea no final de 2019, mostrando um pouco esse movimento de inflexão da trajetória de melhoria das condições de vida do trabalho doméstico.
IHU On-line – Podemos considerar que a experiência da pandemia ressignificou o trabalho doméstico? Por quê?
Luana Simões Pinheiro – Acredito que a pandemia contribuiu para retirar o véu da invisibilidade que marca o trabalho doméstico (seja ele remunerado ou não). Com escolas e outros serviços de cuidados fechados, com as trabalhadoras domésticas sendo mantidas em casa, o peso do trabalho doméstico recaiu diretamente sobre as famílias e, de repente, aquele trabalho tido como menos importante e menos valorizado (que nem trabalho é considerado) tornou-se um “elefante” na sala.
Alguns estudos mostraram o quanto o trabalho doméstico e de cuidados aumentou na pandemia tanto para homens, quanto para mulheres, mas, obviamente, muito mais para elas do que para eles. Assim, houve – e há – sobrecarga ainda maior das mulheres com o trabalho doméstico, uma vez que elas não puderam contar com o Estado, com o mercado ou com os homens para compartilhar o trabalho doméstico de suas famílias de forma igualitária.
Em relação ao trabalho doméstico remunerado, a pandemia aprofundou as vulnerabilidades e precariedades que já marcavam esse trabalho. Isso se dá basicamente por três motivos:
1) a natureza do trabalho doméstico – que se dá dentro do domicílio de outra família, lidando com corpos e fluidos corporais, sem qualquer tipo de controle sobre os movimentos e a qualidade de isolamento ou cuidado com o vírus das pessoas que residem naquele domicílio;
2) a baixa proteção social desta ocupação – que fez com que muitas mulheres ficassem sem qualquer tipo de renda quando o isolamento social se iniciou (por isso a renda emergencial é um benefício muito relevante para esta categoria), sem acesso a seguro-desemprego ou mesmo a um auxílio-doença no caso de contraírem o vírus; e
3) a violação de direitos fundamentais – o que tem estreita relação com o histórico escravagista, patriarcal e classista do trabalho doméstico – que vai se aprofundando à medida que os efeitos da pandemia e sua duração vão se intensificando e que resultam em aumento dos casos de abusos e explorações.
IHU On-Line – A senhora analisou determinantes da participação e das jornadas em trabalho doméstico não remunerado de homens e mulheres casados, no Brasil. O que mais a surpreendeu na pesquisa? E como lê esse dado que lhe chamou atenção?
Luana Simões Pinheiro – O principal resultado da pesquisa é que ainda que diversas variáveis sejam importantes para explicar o envolvimento de homens e, principalmente, de mulheres em trabalho doméstico não remunerado, o elemento mais importante está exatamente nos valores e convenções de gênero que moldam as sociedades. Estes, mesmo em sociedades mais avançadas em termos de igualdade de gênero, ainda associam o trabalho de cuidados e o trabalho doméstico às mulheres como uma habilidade inata e, portanto, como uma responsabilidade que é naturalmente feminina.
Nesse sentido, apenas o fato de ser mulher amplia em 14 vezes a chance de realização de trabalho doméstico não remunerado e aumenta a jornada semanal em 13 horas em relação aos homens (considerando aqui homens e mulheres em uniões). Ou seja, são as construções sociais e culturais que determinam a desigual divisão de gênero do trabalho doméstico, mais do que a existência de filhos no domicílio, do que a renda ou do que a escolaridade das pessoas, por exemplo.
Isso significa que é preciso, portanto, alterar tais normas e convenções de gênero que, apesar de estarem sofrendo abalos significativos, ainda permanecem marcando fortemente posições de homens e mulheres no espaço doméstico a partir de um olhar bem tradicional e conservador.
IHU On-Line – Como, dentro de casa e no interior das famílias, estimular uma participação nas jornadas de trabalho não remunerado de forma mais igual entre homens e mulheres?
Luana Simões Pinheiro – É importante não apenas a atuação dos indivíduos (estimulando posturas, comportamentos e valores mais igualitários em relação a gênero), mas é crucial que o Estado assuma sua função na construção de uma sociedade mais igualitária para homens e mulheres. Estimular a adoção de licenças parentais, por exemplo, em que os homens também tenham que assumir parte do tempo de cuidado com os filhos pequenos, é uma forma de mostrar aos próprios filhos ( que vão crescer com novos paradigmas), mas também a toda a sociedade, em particular às empresas (que tendem a assumir que as mulheres possuem custos maiores por engravidarem e saírem de licença-maternidade), que o cuidado e a reprodução da vida são missões de todos os seres humanos, independentemente de seu sexo.
É importante também que programas e conteúdos que promovam a igualdade de gênero sejam trabalhados nas escolas desde a mais tenra idade. Assim como é fundamental capacitar e qualificar os servidores e gestores públicos para que não reproduzam estereótipos de gênero no desenho, implementação e avaliação das políticas públicas e que sejam capazes de perceber como suas ações podem promover – ou desfavorecer – a construção de novos valores de gênero que não prendam mulheres e homens em espaços historicamente associados a eles.
IHU On-Line – Quais os desafios para implementação de políticas públicas que reconheçam o trabalho doméstico remunerado e, também, estimulem a divisão de tarefas no trabalho doméstico não remunerado de forma mais equilibrada entre homens e mulheres?
Luana Simões Pinheiro – São vários, mas gostaria de destacar alguns (além dos citados na questão anterior). O primeiro deles é a necessidade de o Estado assumir seu papel como corresponsável pela reprodução da vida e da sociedade. O Estado precisa oferecer serviços à sociedade que compartilhem com as famílias o cuidado de seus dependentes, sejam eles crianças, idosos, doentes ou quaisquer outras pessoas que demandem a presença de um/a cuidador/a com frequência. É preciso construir uma política de cuidados que deixe de contar com o trabalho gratuito das mulheres nas famílias como única fonte para a oferta de bem-estar a este público, especialmente porque, como dito anteriormente, estamos entrando em um cenário de déficit de cuidados.
Em relação ao trabalho doméstico remunerado, acho que o principal desafio se refere à fiscalização do cumprimento da legislação trabalhista para esta categoria. Como o exercício do trabalho se dá em um domicílio, há o princípio da inviolabilidade do lar que é utilizado largamente como pretexto para justificar a não fiscalização das condições de trabalho das trabalhadoras domésticas. Este princípio, porém, não é intocado, já tendo sido flexibilizado, por exemplo, nos casos de violência doméstica contra as mulheres pela Lei Maria da Penha. Até o momento, porém, não há uma política de fiscalização da legislação trabalhista e, assim, a informalidade, a precariedade e a exploração seguem sendo a regra para o trabalho desta categoria tão importante.