Por: Vitor Necchi | 18 Junho 2018
Henrique Costa lembra que “as manifestações de Junho de 2013 nasceram com a bandeira da revogação de aumento do transporte em São Paulo e ganharam um dimensão espantosa com a violentíssima repressão policial”. Na sequência, “muitas outras bandeiras surgiram, vinculadas à reivindicação de melhores serviços públicos e, em seguida, de denúncia da corrupção”. Cinco anos depois, entende que o maior legado daquela mobilização “foi ter desmistificado a rua e desautorizado as organizações tradicionais”.
A cara dos protestos foi dada pela classe média, que compareceu em peso, lembra Costa na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. “A proporção que eles atingiram, contudo, impactou todas as classes, mesmo aqueles que se mantiveram afastados.” A partir da movimentação, “como um nocaute, a população passou a questionar a gestão lulista para os mais pobres que vinha acompanhada dos ganhos exorbitantes de setores selecionados do empresariado, como empreiteiras e bancos”.
Para Costa, o lulismo, “ao despolitizar e atrelar os órgãos vitais da sociedade à sua existência”, esvaziou os movimentos sociais de seu teor crítico. Isso aprofundou a crise da representação, pois o lulismo “caiu na armadilha de que a política se trata apenas de gestão racional de recursos escassos, amansamento de um Parlamento disposto a tudo pela autopreservação e boas relações com setores-chave do empresariado, tudo isso mediado pelo dinheiro”. Junho de 2013, no seu entendimento, também aprofundou a crise da representação.
No que tange à periferia, Costa entende que ela não teve papel relevante, apesar de ter sido tocada pelos acontecimentos. Isso não impediu que as manifestações captassem “um mal-estar difuso e que existia nas sombras da euforia lulista: ao incluir uma massa de jovens precarizados em um mercado de trabalho que cresceu sobretudo para as ocupações que pagavam até 1,5 salário mínimo, frustrava expectativas de quem tanto se dedicava (e se endividava) para conseguir qualificações que não dariam retorno à altura”. Assim, “as manifestações de Junho foram como uma revelação de que a insatisfação não era individual e havia penetrado nos poros da sociedade”. Depois que passaram “o susto e as tentativas desesperadas e estapafúrdias de dar respostas às demandas das ruas”, Costa entende que “a política tentou se resolver nos velhos esquemas e conspirações palacianas”.
Henrique Costa | Foto: Arquivo Pessoal
Henrique Costa é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Cinco anos depois, qual teu entendimento em relação ao que houve em Junho de 2013 e que leituras podem ser feitas daquele ciclo de manifestações?
Henrique Costa – O cenário que levou a Junho deve ser visto com as lentes da contradição de um país que, como diz Chico de Oliveira, “não é isso nem aquilo”, isto é, não é nem mais subdesenvolvido, quando superar o atraso já não é mais possível (e nem desejável), nem tem condições de atingir um novo regime de acumulação que o coloque competitivamente no capitalismo globalizado. Diante disso, a opção da esquerda que governou o país a partir de 2003 foi abdicar de reformas de qualquer alcance em favor da gestão de populações, com políticas públicas focalizadas e que, em ambiente econômico favorável, melhoram a vida do chamado “subproletariado”, mas sem provocar mudanças sustentáveis, que sobrevivessem às turbulências externas e às resistências internas. De fato, foi o que aconteceu com o “reformismo fraco” do lulismo por volta de 2013.
As manifestações de Junho de 2013 nasceram com a bandeira da revogação de aumento do transporte em São Paulo e ganharam um dimensão espantosa com a violentíssima repressão policial. A partir daí, muitas outras bandeiras surgiram, vinculadas à reivindicação de melhores serviços públicos e, em seguida, de denúncia da corrupção. A classe média compareceu em peso e acabou dando a sua cara aos protestos. A proporção que eles atingiram, contudo, impactou todas as classes, mesmo aqueles que se mantiveram afastados. Como um nocaute, a população passou a questionar a gestão lulista para os mais pobres que vinha acompanhada dos ganhos exorbitantes de setores selecionados do empresariado, como empreiteiras e bancos. A reflexão individual e coletiva provocada pelas manifestações arruinaria a planejada apoteose do lulismo com a Copa do Mundo no ano seguinte, também extremamente rejeitada em Junho, e estabeleceu uma nova determinação mental no país – de uma certa anestesia a uma impaciência generalizada.
A incompreensão de Dilma quanto ao colapso da modernização brasileira e dos pressupostos de um desenvolvimentismo tardio ativaram um mecanismo violento de progresso a todo custo, cujo capítulo mais dramático se deu pela construção de Belo Monte, digna dos regimes mais autoritários da história do país. A conclusão a que chegou Fernando Henrique Cardoso em 1964 de que a burguesia brasileira havia renunciado à modernização brasileira para aceitar o papel de sócio menor do capitalismo internacional, bloqueando a via do desenvolvimento endógeno, deveria ter sido admitida desde o começo, o que teria poupado muita dor de cabeça, uma crise econômica que tem efeitos até hoje, além de muitos bilhões de reais.
Há dúvidas sobre se Dilma tentou aprofundar o lulismo ou romper com ele, de todo modo, o resultado não foi brilhante. Ao tentar fazer algo para o qual não tinha nem condições políticas, nem estofo intelectual, o governo extrapolou seu autoritarismo, como na famigerada Lei Antiterrorismo, que por si só era também resultado de outro espetáculo construído a partir do arbítrio e da velha obsessão pelo “Brasil Grande”, a Copa do Mundo. Lula teve a fortuna e a virtude de conter o fracionamento da sociedade e o desmanche que se anunciava desde os anos 1980 e a crise da dívida, mas a barragem construída pelo lulismo atingiu seu limite.
Creio que o lulismo, ao despolitizar e atrelar os órgãos vitais da sociedade à sua existência, esvaziando os movimentos sociais de seu teor crítico e alimentando-os como um grande gestor de políticas sociais, tenha não apenas alienado a sociedade de escolhas próprias, de caráter reivindicativo, como aprofundou a crise da representação, pois caiu na armadilha de que a política se trata apenas de gestão racional de recursos escassos, amansamento de um Parlamento disposto a tudo pela autopreservação e boas relações com setores-chave do empresariado, tudo isso mediado pelo dinheiro.
Junho de 2013 aprofundou a crise da representação. Não é preciso ser leitor de Guy Debord para perceber que a separação entre uma massa precária e sem perspectivas e o espetáculo que acontece nas cúpulas partidárias, nos parlamentos e na mídia ameaça ter atingido um ponto de não retorno. No momento em que a representação se torna puramente uma fantasia enquanto no chão social sobra desalento, como fica claro na volta da informalidade e na explosão da população que simplesmente desistiu de procurar trabalho, planos de reforma e projetos que se autointitulam moderados e racionais perdem totalmente seu apelo.
Outro detalhe a se observar é que, desde então, nada se aprendeu. Ainda em campanha pela reeleição, Dilma redobrou a aposta no espetáculo com uma campanha que iludiu até mesmo observadores experientes. Pela primeira vez em sua história, o PT não apresentou um programa de governo e atribuiu a um marqueteiro, hoje em regime de prisão domiciliar, a elaboração de propostas que aprofundaram o tudo ou nada eleitoral. Ao assumir o mandato e abandonar imediatamente sua plataforma supostamente progressista, Dilma escancarou não só o irrealismo do que apresentara antes, adotando o programa do adversário, mas também a impotência do público em fazer valer seu voto. O aprofundamento da crise de representação viria a cobrar seu preço no esvaziamento do apoio ao seu governo.
IHU On-Line – Que papel a periferia teve e desempenhou em Junho de 2013? O que esse estrato da população pretendia naquele momento?
Henrique Costa – A periferia não teve papel relevante naquele Junho, apesar de ter sido tocada pelos acontecimentos. Na pesquisa que desenvolvi à época para o curso de mestrado, observei que poucos estiveram nas ruas, ou por medo de violência, ou por sentirem que aquele não era “lugar” para eles, isto é, se encaixavam no que Singer analisou como uma indisposição ou mesmo rejeição dos mais pobres a ruídos na ordem. Assim mesmo, de certa maneira as manifestações daquele mês captaram um mal-estar difuso e que existia nas sombras da euforia lulista: ao incluir uma massa de jovens precarizados em um mercado de trabalho que cresceu sobretudo para as ocupações que pagavam até 1,5 salário mínimo, frustrava expectativas de quem tanto se dedicava (e se endividava) para conseguir qualificações que não dariam retorno à altura. As manifestações de Junho foram como uma revelação de que a insatisfação não era individual e havia penetrado nos poros da sociedade.
IHU On-Line – Como esquerda e direita entenderam aquelas manifestações e que uso fizeram delas?
Henrique Costa – Até 2016, tanto a centro-esquerda quanto a centro-direita estavam comprometidas com a ordem democrática e com alguns entendimentos tácitos, como a necessidade de frear as investigações da Operação Lava Jato. Portanto, passados o susto e as tentativas desesperadas e estapafúrdias de dar respostas às demandas das ruas, em 2013, a política tentou se resolver nos velhos esquemas e conspirações palacianas. Com a irrupção de uma nova direita nas ruas, a ascensão da Justiça como ator político e a progressiva indisposição de parte da elite econômica com Dilma, o sistema foi acossado a dar respostas que hoje se mostram desastrosas.
Mas a esquerda estava em situação “desconfortável” para fazer a sua parte. Enquanto acreditava que governava para os mais pobres, boa parte da população, sobretudo nas periferias das grandes cidades, entendia que a administração do conflito pelos programas do lulismo tinha exatamente esse objetivo, vide o fim que levou a política de pacificação no Rio, apoiada pelos governos do PT. À época, era comum ouvir, sobretudo dos mais jovens – totalmente desconectados do que havia significado o petismo dos primeiros anos – que políticas públicas como o Prouni [Programa Universidade para Todos] eram nada mais que obrigação do governo para aqueles que já se esfolavam tanto no trajeto sofrido entre casa, trabalho e escola. Essas pessoas cansaram de “gestão”.
A esquerda gosta de atribuir à mídia esse quadro político como um enredo de manipulações, mas não percebe que ela mesma faz parte disso e alimenta esse sistema. Mandatos de esquerda que há alguns anos contavam com militância ativa e convencida de suas bandeiras hoje se resumem a alimentar a máquina com postagens patrocinadas em redes sociais questionadas no mundo todo, mas útil para partidos sem mais nenhuma conexão com as classes trabalhadoras. Mesmo a esquerda considerada “radical” dá as costas ao mundo do trabalho e suas perversidades.
Hoje a esquerda sofre as consequências de seus próprios erros, ao ser rechaçada em qualquer espaço popular, e se refugia sempre nos mesmo abrigos dos movimentos de cultura, nos bairros centrais e com público de convertidos. É indiferente que queira apoiar ou desconfiar de um movimento como o dos caminhoneiros, pois perdeu o bonde da construção política em Junho de 2013 ou na greve da categoria em 2015. Com exceção de Lula, não é por acaso que, no último Datafolha, Guilherme Boulos, por exemplo, tenha suas melhores performances entre os mais ricos e escolarizados. É o que Thomas Piketty analisou em relação às esquerdas dos Estados Unidos e da França que progressivamente se metamorfosearam em partidos de classe média alta escolarizada. Ou seja, se tornaram os partidos dos vencedores de uma guerra que não é apenas cultural, mas também pelos melhores postos do capitalismo globalizado, fenômeno que também tem suas repercussões por aqui.
IHU On-Line – De que maneira a esquerda tem se relacionado com a periferia das cidades? E a direita?
Henrique Costa – Não existe mais propriamente uma “relação” entre a esquerda tradicional e a periferia que não seja puramente instrumental. De um lado, há o PT, pendurado unicamente no carisma de Lula e no seu potencial eleitoral. Tacitamente, a compreensão de que a eleição que se avizinha será um desastre para a bancada do partido no Congresso, especialmente para os parlamentares do Sul e do Sudeste, é o que move a estratégia da cúpula petista, pois só Lula pode minimizar o desgaste do partido e de seus parlamentares cada vez mais rechaçados em suas bases. Portanto, não há boas opções para o PT, que assim sacrifica as alianças estaduais com as quais contam os governadores do Nordeste.
Enquanto o PT se acantona no resíduo sindical-parlamentar que lhe dá sustentação – bastante simbolizado, aliás, pelo bunker armado em São Bernardo do Campo na iminência da prisão de Lula –, parte da velha classe trabalhadora devastada pela reestruturação produtiva se volta para Bolsonaro, que personifica o pulso firme contra a violência – que atinge sobretudo a periferia, é sempre bom lembrar – e a corrupção nas instituições. Não é um apoio majoritário, mas aqueles que o apoiam se destacam pela militância ativa, algo que nenhum outro candidato tem nas periferias. As pesquisas indicam que a intenção de voto espontâneo em Bolsonaro já supera inclusive a de Lula, especialmente nas faixas de renda acima de 2 salários mínimos, e isso se constata nas ruas com uma observação mais atenta.
Em um momento em que as classes baixas se revoltam contra a gestão de populações com objetivo de contenção de conflitos (a famigerada pacificação), é exatamente isso que a esquerda propõe, um lulismo repaginado com retórica desenvolvimentista. Curiosamente, apesar de ser a esquerda quem repisa a ideia de que não há alternativa fora da política, o renascimento dela vem pela extrema direita, cujo discurso se distancia da gestão e toca nas questões sensíveis de uma parte significativa do eleitorado. Não à toa houve tanta comoção pela execução de Marielle Franco, pois há décadas não surgiam novas lideranças de destaque atuando no meio popular. Mesmo ela acabou adotada pela Zona Sul e tinha dificuldades para atuar dentro do Complexo da Maré, de onde veio.
IHU On-Line – A partir de 2013, ocorreram novas formas de organização e mobilização das pautas políticas? O que houve nas periferias em termos de canalização do descontentamento político, social, econômico?
Henrique Costa – Falando especificamente da periferia de São Paulo, é o antipetismo que se espalhou pelo precariado que dará a tônica novamente, assim como foi na eleição municipal há dois anos. Noto que em bairros como o Capão Redondo, onde estou pesquisando, a apatia e indiferença com relação ao processo eleitoral é um processo sem volta diante das opções à esquerda, com um certo resquício de apoio a Lula.
De todo modo, há clivagens importantes na periferia que não podem ser desconsideradas. A melhora nas condições de vida na região durante a década lulista atingiram de maneira desigual famílias muito próximas geograficamente. É possível encontrar desde um núcleo familiar em que os filhos tiveram melhores oportunidades escolares, se aproveitaram das políticas públicas do lulismo e conseguiram alguma estabilidade até regiões muito pobres em que a viração nunca deixou de ser a regra, tudo isso a poucos quarteirões de distância e igualmente vulneráveis ao crime e à violência policial. Como diz Feltran, durante o lulismo houve uma trégua entre diferentes instâncias normativas – trabalho, crime, igrejas etc. – mediada pelo dinheiro. Como uma política de emergência, essa trégua se esgotou e a represa que a continha, ruiu.
É curioso quem diz que a política “ganha-ganha” dos anos Lula não pode ser reproduzida, enquanto se enaltece a gestão petista por ter olhado para os mais pobres. O conflito generalizado atual não se resume a um metafísico embate entre classe média (sempre vista como “os ricos”) e classes baixas. Seu contorno dramático é um conflito entre pessoas reais intraclasse, isto é, um precariado formado pelo lulismo irritado por não alcançar o que lhe foi prometido, depois de anos de estudo e dívidas a perder de vista e que passa tempo demais trabalhando por quase nada, famílias remediadas que sentiram no bolso a inflação de serviços (efeito colateral de uma bem-vinda melhora na remuneração de manicures, garçons, domésticas etc. cujo aumento nos rendimentos acabaram repassados para os preços desses serviços), universitários que tiveram acesso às melhores universidades por conta das políticas de cotas e aqueles que se mantiveram no mundo do crime porque o dinheiro que correu na periferia aqueceu inclusive esse mercado.
Por diversos motivos, que inclui a inanição do trabalho de base, mas principalmente a dinâmica de competição de um mercado de trabalho cada vez mais dessolidarizado, esses indivíduos se veem em guerra pela sobrevivência. A classe média pode até se incomodar com maiores gastos com trabalhos domésticos, mas se sente segura na maior parte do tempo em seus bairros centrais. Durante a ditadura militar, ela ainda tinha um peso desproporcional na “intermediação sem mediações”, como diz Chico de Oliveira, pois a classe trabalhadora se viu sufocada pelo regime. Com o lulismo e a ascensão da classe trabalhadora organizada a postos chave do Estado e dos fundos públicos, por um lado, e a racionalização do Estado pelas práticas empresariais, por outro, sua importância política relativa se reduz drasticamente.
Para “criar pontes” com a juventude, a esquerda tenta correr atrás do tempo perdido recorrendo a certos coletivos de cultura anabolizados durante o lulismo, não apenas por sua incapacidade de dialogar com a juventude, exposta dramaticamente em Junho, mas por sua pouca disposição para tentar e descobrir que certas mudanças dependem de algumas cabeças rolarem. Abrir mão de princípios e práticas que desde sempre foram essência do movimento socialista torna-se então uma questão de sobrevivência. O que mais os preocupa não é a alienação da classe trabalhadora de seus instrumentos de representação, nem a ascensão da extrema direita: a luta desesperada pela autopreservação serve, ao fim e ao cabo, para que tudo volte ao que era, movimentos previsíveis e controlados pelas burocracias, como nos acostumamos a ver durante o lulismo e antes de Junho.
IHU On-Line – Os movimentos de ocupação urbana – secundaristas/universitárias e de moradia – são tributários de Junho de 2013? Por quê? De que forma?
Henrique Costa – Certamente o movimento dos secundaristas fez parte do legado de Junho de 2013. Se há algo positivo que permaneceu daquele mês é a desmistificação do método tradicional de mobilização através de partidos e sindicatos e a revelação de que sim, é possível fazer movimento social auto-organizado e que não dependa da aprovação de instâncias hierarquizadas. Foi com essa porta aberta e com o espírito visionário daqueles que sofrem na carne a perspectiva de se tornarem o precariado de amanhã que esses jovens não tiveram paciência para acumular forças para um futuro que já os oprime agora.
Mas antes de 2013, houve o Pinheirinho, por exemplo. Ali já estava claro o papel desempenhado pela esquerda tradicional que chegou ao poder. Essas rebeliões que surgiram por dentro do modelo gestionário de seguridade social do PT já informavam que ele tinha falhas e que, como em uma panela de pressão, poderia implodir com um golpe brusco.
IHU On-Line – Que balanço você faz da greve dos caminhoneiros? Ela teve apoio na periferia paulista? É possível estabelecer algum tipo de relação entre essa greve recente e Junho de 2013?
Henrique Costa – Há relação, pois o maior legado de Junho de 2013 foi ter desmistificado a rua e desautorizado as organizações tradicionais. Segundo Ruy Braga, os autônomos, que são 70% da categoria, têm uma renda mensal de quatro salários mínimos em média, sem aposentadoria, seguro saúde, FGTS, 13º salário ou férias. Os demais estão sendo progressivamente pejotizados. Para o bem ou para o mal, a possibilidade de que uma categoria extremamente precarizada possa expressar seu descontentamento sem a necessidade da mediação de políticos e organizações que se especializaram nos últimos anos em gerir os conflitos, pela negociação ou pela capitulação, é uma inovação sem precedentes.
A greve dos caminhoneiros teve um elemento de auto-organização muito presente, facilitado pelas redes sociais, e também contou com a insatisfação generalizada com o governo Temer, com os políticos de modo geral e com os rumos da economia, cuja retomada é a mais lenta da história. Em 2015 já havia acontecido uma greve semelhante, então não foi uma surpresa tão grande. De modo que se trata de uma massa insatisfeita, disponível para o confronto e sem amarras, defendendo, em sua maioria, melhores condições de trabalho.
Evidentemente, o fato de que parte do movimento tenha inclinações autoritárias e defenda absurdos como a “intervenção militar” não é desprezível, mas é necessário um esforço de compreensão. Assim como aconteceu em Junho, um desejo de rompimento pela força com as instituições democráticas, vistas como inerentemente corruptas, está presente na sociedade. É possível remontar esse sentimento à Revolução de 1930, aos golpes de 1937 e 1964, à proclamação da República etc.
Aponto dois erros aqui: primeiro, acreditar que um ciclo econômico virtuoso como a década lulista poderia ter represado definitivamente as enormes contradições de uma sociedade fraturada na origem, algo que nossos clássicos sempre alertaram. Segundo, o assombro com o aparecimento de uma extrema direita com adesão popular revela, como diria Walter Benjamin, a insuficiência da própria esquerda, que ainda hoje entende que seu motor é o progresso, enquanto para os oprimidos o estado de exceção desse progresso é a regra geral. Se a esquerda não consegue capturar a “pulsão” que vem da massa precária, é porque está afogada em sua própria inadequação à realidade dos oprimidos.
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Junho de 2013 e a greve dos caminhoneiros – “Um desejo de rompimento com as instituições democráticas, vistas como corruptas, está presente na sociedade”. Entrevista especial com Henrique Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU