14 Fevereiro 2017
"No Intenso Agora", que o documentarista João Moreira Salles apresenta no Festival de Berlim, reflete sobre mobilização política e a desilusão que segue após os sonhos de um mundo novo não se concretizarem.
A reportagem é de Bruno Ghetti, publicada por portal Uol, 13-02-2017.
Demorou dez anos para que João Moreira Salles, um dos documentaristas mais prestigiados do país, lançasse um novo filme.
“No Intenso Agora”, muito aplaudido no Festival de Berlim, na mostra Panorama, é o primeiro longa do carioca desde o aclamado “Santiago” (2007). O projeto existe desde 2011, mas o demorado processo de maturação veio a calhar: se lançado em outra época, nem de perto teria a mesma força que tem neste exato momento do Brasil, e perderia as incontornáveis ligações com as consequências das mobilizações de junho de 2013 e a crise política que se instalou desde então.
Por vias indiretas, o filme fala muito sobre o contexto atual no país – mesmo sem sequer mencionar o que se passa politicamente hoje em dia em solo brasileiro. O longa é uma colagem de filmagens de épocas, autores e contextos diversos para falar sobre utopia e engajamento político, mas, sobretudo, da desilusão que segue após os sonhos de um mundo novo não se concretizarem, cedendo espaço a retrocessos.
Salles faz isso a partir da montagem de um material bem heterogêneo, que inclui cenas caseiras feitas pela própria mãe (Elisa, mulher do banqueiro Walther Moreira Salles) na China, em 1966, alternadas com registros variados do efervescente ano de 1968, em passeatas de Paris, Praga e Rio. Em tom de ensaio pessoal, Salles reinterpreta esses eventos a partir da observação das imagens enquanto representação da intensidade um determinado instante.
“Achei o material da minha mãe em 2006, mas não sabia bem o que fazer com aquilo”, disse o cineasta, em entrevista ao UOL. “Em 2011 nasceu essa ideia de pensar sobre a intensidade do momento e de quando ela passa. Eu me dediquei muito na época a ler sobre 1968. Aí, em 2012, entrei na ilha de edição. O filme demorou cinco anos para ser feito. É claro que tudo o que aconteceu no mundo por essa época – como a Primavera Árabe e [as manifestações no Brasil de] Junho de 2013 – estava meio que como pano de fundo”, diz Salles, refutando, porém, que o filme tenha surgido de uma necessidade de falar especificamente do Brasil de hoje ou de conclamar alguma reação popular em um contexto de desalento político.
A política aparece muito, mas o cerne do filme está antes em uma questão mais filosófica sobre a função de uma imagem: Salles nos mostra que quando alguém faz algum registro com uma câmera, pode até ter uma intenção, mas que quando outras pessoas assistem, o material original passa a ganhar novo sentido, de acordo com a percepção do espectador.
Ironicamente, ao ser lançado no momento atual, “No Intenso Agora” se torna um exemplo vivo de sua própria tese: foi feito em um contexto, com uma intenção, mas, dada a situação do Brasil de hoje, certamente ganha uma ressonância política muito mais poderosa que qualquer um envolvido na produção poderia imaginar.
“Acaba sendo um presente, mal ou bem, o filme chegar exatamente neste momento. Porque não foi pensado dessa maneira. Mas serve para refletir sobre o engajamento político, o sonho de mudanças, o desejo de interferir na história. E também o outro lado da moeda: os sonhos que não se concretizam, as propostas que não são realizadas”.
No filme, Salles ressignifica as manifestações estudantes do Maio de 1968, com algumas observações interessantes sobre um movimento que muitos ainda tendem a glamourizar em excesso. Em grande parte do tempo, porém, o diretor não apresenta nada muito além do que sempre trouxe qualquer análise menos superficial sobre o período: foi um levante essencialmente burguês e algo conservador (feito por homens, brancos, de classe média), apesar de ter sido um grande passo em uma luta por um mundo mais inclusivo e que, de fato, balançaria o planeta a partir dali.
“Se você pensar a agenda específica de 1968, houve uma derrota ali: porque o [então presidente] De Gaulle se impôs. Mas uma outra coisa, que não estava explicitada, venceu. Que é tudo aquilo do que a gente se beneficia hoje – o movimento das mulheres, o da sexualidade, a liberalização dos costumes”, diz o documentarista.
“Em 2013 [no Brasil], a agenda foi também bastante difusa. Aquele movimento se extinguiu ali mesmo. Mas se teve alguma coisa que ficou de 2013, que ainda está tentando ganhar forma, é uma contribuição civilizatória para o país. Mas ainda não está articulado, eu ainda não saberia dizer o que é”.
Um dos filmes mais conhecidos de Salles é “Entreatos” (2004), sobre as eleições presidenciais de 2002, que levariam Lula ao poder. Mesmo dizendo que acredita que o tempo é essencial para se fazer qualquer tipo de reflexão sobre algum período, ele se arrisca a avaliar a história mais recente do país.
“O governo [do PT] teve grandes acertos e grandes erros. Acertou nas políticas de transferência de renda, na educação superior – não na básica, que não funcionou bem. Mas do ponto de vista econômico, produziu a maior recessão econômica que o Brasil já viu. O que não quer dizer que eu seja um entusiasta do atual governo, muito pelo contrário”, diz, sobre o mandato de Michel Temer, que ele acredita ter chegado à presidência “de forma bizarríssima”.
“É um governo que não tem legitimidade popular, e isso é uma coisa dramática. E é um governo mais conservador. Onde o conservadorismo se torna reacionário, é difícil dizer. Há elementos reacionários no atual governo? Sem dúvida, embora já houvesse no governo do PT também. Agora, a gente entra em um momento político que percorre o planeta que é o pior possível. É o da ordem, da lei, na sua expressão mais autoritária. Assim como nos Estados Unidos, pode acontecer algo muito ruim na França em breve. No Brasil, em 2018, está aberto: você pode ter de um Ciro Gomes a um Bolsonaro. Todos estão no jogo.”
O diretor acredita que é possível resistir a situações políticas adversas. “Mas fazer resistência pelo Facebook não é nada; é simplesmente você ficar se autocongratulando em meio a pessoas que concordam com você. Resistir é ir para a luta política, mesmo”, diz, referindo-se à importância de cada ideologia lutar por ter representantes em cargos da máquina do Estado.
O desinteresse pela política, diz ele, pode ser algo perigoso. “Se você faz isso, você libera espaço para Bolsonaro e os filhos. Que liderança [dos movimentos de] 2013 entrou na política? Nenhuma. O que mostra a pouca fé na democracia e na política em geral”.
A rua, como fizeram os franceses em 1968, ainda é uma opção? “Adianta, mas só se a luta não se esgota na rua. Quando editei o filme, enquanto a rua se manifestava, em 2013, entendia o que estava ocorrendo sob a luz de 1968, quando não se havia um programa para depois daquele movimento. O que havia era só uma espontaneidade absoluta. Ganhou-se muito com ela, sim, mas perdeu-se a capacidade de ocupar a máquina do Estado e, portanto, transformá-lo e a sociedade que existe dentro dele.”
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Olhando para trás, documentário joga luz sobre desilusão pós-junho de 2013 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU