23 Dezembro 2015
“A gratuidade do Deus de Jesus Cristo é a única capaz de nos fazer perceber a existência e, portanto, vivê-la no dia a dia, de forma renovada”, diz o exegeta francês.
Imagem: bibliamormon.org |
Autor de Le Sermon sur la Montagne. Vivre la confiance et la gratuité [O Sermão da Montanha. Viver a confiança e a gratuidade], Cuvillier afirma que para ele, o Sermão da Montanha “ressoa como um convite a viver neste mundo sob a luz da Boa Nova de Jesus Cristo que é confiança e gratuidade: confiança em um Deus que vem ao meu encontro e que, em troca desta confiança, não me pede mais nada. Pois, o que o SM nos ensina é que o Evangelho não é uma moral (tu deves fazer isto ou aquilo para obter isto ou aquilo — lógica da troca e da retribuição), mas a proclamação de uma Palavra que vem abrir para uma nova compreensão de Deus, de nós mesmos e dos outros”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o exegeta ressalta que a Palavra que Jesus pronuncia no Sermão “é verdadeiramente Palavra de alteridade no que ela anuncia de inédito, um inédito que não se confunde totalmente com o que o Jesus terrestre dá a conhecer dele no decorrer de seu ministério na Galileia. O SM antecipa o que se realizará plenamente na Paixão de Jesus. A recusa de erguer a espada, na hora de sua prisão, destaca que prefere o agir da Palavra ao das armas. A morte na cruz é o lugar em que Jesus realiza, ao extremo de sua lógica, a palavra inédita do SM. No Calvário, Jesus é revelado verdadeiramente como o ‘Filho de Deus’ que rompe a lógica da violência e oferece um lugar onde descobrir o novo rosto de seu Pai, como o SM anunciava”, explica.
Elian Cuvillier pontua ainda que “as noções de ‘confiança’ e de ‘gratuidade’” presentes no Sermão da Montanha são “utilizadas com um sentido teológico e bíblico específico: o termo confiança equivale, para mim, à palavra grega pistis, que é traduzida, na maioria das vezes, em nossas Bíblias, pelo termo ‘fé’. Gosto de definir a fé em Cristo como a ‘confiança na confiança de um outro’. Quanto à gratuidade, ela equivale à noção de ‘misericórdia’ que se encontra no Novo Testamento, em que ela expressa a bondade originária de Deus para conosco”, conclui.
Elian Cuvillier defendeu sua tese de doutorado sobre Novo Testamento na Faculdade Teológica Protestante de Montpellier, em 1991, onde foi nomeado professor. Em 1999, obteve a Livre Docência na Faculdade Teológica Protestante de Estrasburgo. Desde então, é professor de Novo Testamento em Montpellier.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que leitura o senhor faz do Sermão da Montanha, em Mateus 5? Poderia comentar a estrutura exegética sugerida pelo texto?
Foto: www.franceculture.fr
Elian Cuvillier – Proponho estruturar o Sermão da Montanha (SM) [1] da seguinte maneira:
Mt 5,1-2: Introdução
Mt 5,3-16: A palavra fundadora
- As bem-aventuranças (Mt 5,3-12)
- O sal e a luz (Mt 5,13-16)
Mt 5,17-7,12: O cumprimento da Lei e dos Profetas
- Lei e justiça (Mt 5,17-20)
- O razoável ou o excesso (Mt 5,21-48)
- O aparecer ou o secreto (Mt 6, 1-18)
- A preocupação ou a confiança (Mt 6,19-34)
- Julgamento e “Regra de ouro” (Mt 7,1-12)
Mt 7,13-27: Exortação final: os dois caminhos
Mt 7,28-29: Conclusão
Proponho agora um comentário rápido dessa estrutura:
Mt 5,1-2: Introdução
Jesus sobe na montanha como Moisés no Sinai. Porém, ao invés de receber a Lei em um face a face com Deus, ele dirige uma palavra de autoridade a seus discípulos, mas também, como detalhado no final do Sermão (cf. 7,28-29), às multidões.
Mt 5,3-16: A palavra fundadora
Nove bem-aventuranças abrem o SM (v. 1-12) por meio de uma proclamação paradoxal: a felicidade se alcança no meio da prova, em uma situação de necessidade e de humildade em que aumenta o espaço para acolher e receber.
A primeira e a oitava mencionam o “Reino dos céus” [2], afirmando que pertence aos “pobres de espírito” (v. 3) e aos que são perseguidos por causa da justiça (v. 10), ou seja, aos que vivem não na abundância transbordante (a riqueza e a harmonia com o mundo), mas na necessidade (a pobreza de coração e o conflito com a lógica do mundo). Deus reina para aqueles que não se bastam sozinhos e estão submetidos à prova.
Entre essas duas bem-aventuranças, outras seis desenvolvem qual seria a atitude existencial correspondente à proclamação inaugural de Jesus: mansidão (v. 4; cf. 11,29b), choro (v. 5), fome e sede da justiça (v. 6; cf. 6,33), misericórdia (v. 7; cf. 9,12 e 12,7), pureza de coração (v. 8), paz (v. 9; cf. 10,34-35). As bem-aventuranças se apresentam como a realização das promessas da Escritura: os que estão tristes (Is 61,2) serão consolados (Is 66,13); aos misericordiosos será alcançada misericórdia (Pv 17,5; Ec 28,1-7); a pureza de coração é a condição exigida para comparecer diante de Deus em seu lugar santo (Sl 24,2-4).
A nona e última bem-aventurança (v. 11-12) representa uma retomada e um desenvolvimento da oitava, estabelecendo uma equivalência entre a perseguição “por causa da justiça” e a perseguição “por causa” de Jesus (cf. v. 11). Ela realiza, assim, uma reinterpretação das oito primeiras com base em uma ligação estreita (“por causa de mim”) entre o ouvinte do SM e o locutor. Dessa forma, ela toma os ouvintes como discípulos. Para eles, a alegria não nasce do sofrimento, mas da espera de um galardão cuja origem está “nos céus”: esse último termo designa, em Mateus, uma alteridade radical. A situação dos que estão com Jesus é parecida, então, à dos profetas do passado (v. 12).
- O sal e a luz (Mt 5,13-16)
Jesus chama, em seguida, seu público de “sal” (v. 13) e “luz” do mundo (v. 14-16). Os que estão com Cristo (cf. v. 11) dão sabor, caso contrário, não são úteis para nada. Por meio de suas “boas obras”, eles iluminam o mundo, como uma cidade edificada sobre um monte ou uma candeia em uma casa, em vista de um louvor dos homens dirigido não para eles, mas para o Pai celeste. Jesus não detalha a natureza das “boas obras” que devem manifestar os que o escutam. Em Mt 26,10, ele emprega a mesma expressão para qualificar o gesto da mulher que derrama o unguento sobre a cabeça de Jesus, um unguento que, segundo os discípulos, podia ser vendido para dar o dinheiro aos pobres (cf. 26,9): a “boa obra” se situa além do registro moral designando, antes, uma estreita relação com Cristo.
Mt 5,17-7,12: O cumprimento da Lei e dos Profetas
- Lei e justiça (Mt 5,17-20)
Contra aqueles que afirmam que sua vinda tem, como consequência, a abolição da Lei e dos Profetas, Jesus discorda vigorosamente (v. 17). O verbo “cumprir” expressa a convicção que é nele que as Escrituras, dito de outra forma, a Lei e os Profetas, se cumprem. Jesus fornece seu verdadeiro sentido à Lei e às promessas proféticas. O versículo 18 testemunha o vínculo do evangelista com a obediência aos mandamentos da Lei. No entanto, a afirmação da perenidade da Lei (“nem um jota ou um til jamais passará da lei”) é delimitada de um lado e do outro por duas orações (“até que o céu e a terra passem” e “sem que tudo seja cumprido”); elas marcam seus limites e mitigam assim o caráter absoluto da afirmação. Será comparado com a afirmação de Jesus em 24,35: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar”.
Apesar de relativa, a perenidade da Lei implica, porém, que nenhum homem está dispensado de submeter-se (v. 19). Se a transgressão ou a obediência aos mandamentos conduzirem à instauração de uma hierarquia dentro do Reino (relativizada em seguida, cf. 11,11 e 20,16), apenas a justiça concede a entrada nele (v. 20). A fidelidade sem falha à Lei não é, portanto, o critério de entrada no Reino. A obediência à letra do mandamento se torna secundária em relação ao cumprimento de uma justiça que Mateus afirma exceder a dos escribas e dos fariseus.
- O razoável ou o excesso (Mt 5,21-48)
Os versículos 21-48 detalham a articulação entre Lei e justiça. Cada vez, Jesus lembra o mandamento assim como é transmitido pela tradição (“Ouvistes que foi dito...”) e coloca-o em tensão com sua própria palavra (“Eu, porém, vos digo...”): por essa razão, é possível falar de antíteses do SM.
A primeira antítese (v. 21-26) concerne à proibição do homicídio. Jesus lembra que a transgressão dessa proibição fundamental é passível de julgamento (v. 21). Em um segundo momento, radicaliza-a: a cólera contra o irmão é também passível de julgamento, o insulto passível do sinédrio (isto é, do tribunal) e do fogo do inferno (v. 22). Dessa radicalização deriva uma dúplice consequência. Por um lado, a prática religiosa (v. 23-24) não exonera da interpelação: a oferta exigida pela Lei não substitui nem precede a exigência da reconciliação. Por outro lado, no que diz respeito às relações interpessoais (v. 25-26), é preciso reconciliar-se com o adversário sob pena de perder qualquer esperança de remissão de dívida e de perdão. O detalhe “no caminho” (v. 25) oferece a chave da compreensão: o lugar da reconciliação é a existência cotidiana. Trata-se de um convite a livrar-se da necessidade de ganhar contra o outro, uma atitude que leva, na maioria das vezes, a perder! A primeira antítese é uma crítica implícita da pretensão ao respeito da letra do mandamento. No plano comunitário, ela contesta a ideia de que a Lei ritual substitua ou mesmo preceda a exigência de reconciliação com o irmão. No cotidiano, ela visa desligar as relações interpessoais de uma lógica da retribuição em prol da possibilidade de uma reconciliação.
As duas antíteses que seguem, sobre a proibição de adultério (v. 27-28) e a autorização do divórcio (v. 31-32), se tornam uma só (a fórmula do v. 31 não é idêntica à dos v. 21.27.33.38.43). Jesus lembra, primeiramente, a regra da proibição de adultério (v. 27) para logo radicalizá-la (v. 28): cobiçar, já significa cometer adultério, e a salvação (ou seja, evitar o fogo do inferno) passa pela amputação ou o arrancamento do olho (v. 29.30). Em um segundo momento, ele lembra a possibilidade de uma carta de repúdio (v. 31), para depois torná-la também caduca por meio da interdição do divórcio (v. 32), à exceção do caso de união ilegal. A radicalização visa, claramente, a saída permitida pela Lei: proibindo o adultério, mas permitindo, pelo divórcio, ter outras mulheres, ela é uma concessão à tendência originária dos homens à infidelidade (cf. 19,8). Os v. 29-30 (a menção à imputação ou ao arrancamento do olho) contestam a ilusão de que seja possível evitar a perda de uma parte de si mesmos. Entendamos aqui: a ilusão da onipotência (possuir todas as mulheres que se quiserem). Entrar no Reino dos céus passa por aquilo que as ciências humanas chamam de “castração simbólica”.
A terceira antítese concerne ao juramento (v. 33-37). Jesus lembra, primeiramente, a obrigação de cumprir os compromissos diante de Deus (v. 33). Ele radicaliza, logo em seguida, proibindo qualquer forma de juramento, na ordem do religioso e na ordem do mundo (v. 34-36): é preciso não se comprometer com uma palavra solene que nunca se tem certeza de poder cumprir, porque não se sabe o que será do amanhã. Nem a esfera religiosa, nem a esfera política, nem a esfera das relações interpessoais devem prender o homem na armadilha de compromissos solenes impossíveis de cumprir (cf. 26,30-35: negação de Pedro). A única exigência é um “sim” ou um “não” (v. 37a), exigência que não diz respeito ao juramento, mas a uma palavra responsável que não impeça um deslocamento ulterior. O que for dito além disso vem do “Maligno” (v. 37b), isto é, daquele cuja palavra não é confiável, pois contém em si mesma sua própria desmentida.
A quarta antítese refere-se à lei do talião (v. 38-42). Jesus recorda, em primeiro lugar, a regra (v. 38) para convidar, logo depois, a superá-la (v. 39-42). “Oferecer a outra face” não é um gesto de submissão servil, mas uma atitude visando abalar no outro a certeza de que se deve responder à violência pela violência. Trata-se de romper a lógica circular do restabelecimento do equilíbrio da justiça entendida de forma especular. Os outros exemplos generalizam conforme o mesmo princípio: convidam a adotar uma postura que tente mudar a relação do outro com a realidade através do questionamento de sua compreensão do mundo. A finalidade é a recusa do efeito espelho.
A quinta antítese diz respeito ao amor e ao ódio (v. 43-47). Como sempre, começa por lembrar a regra (v. 43) comum às sociedades humanas, mas raramente escrita — não se encontra explicitamente formulada no judaísmo — segundo a qual a unidade de um grupo sempre se baseia na rejeição e no ódio de adversários reais ou imaginários. A radicalização proposta por Jesus consiste na recusa de qualquer forma de discriminação: bons e maus, justos e injustos, todos estão nas mãos da providência divina (v. 44-45). Para o crente, trata-se da superação da lógica do mundo: a comunidade escatológica não pode ser construída no modelo das comunidades humanas (v. 46-47), porque reina aí um verdadeiro universalismo em que cada um é reconhecido independentemente de suas qualidades, de suas heranças ou origens.
O v. 48 conclui o conjunto. A questão de saber se seria melhor traduzir “sede perfeitos” ou “vós sereis perfeitos” está ligada ao status que se atribui ao discurso de Jesus: exortação à aplicação prática de uma nova regra estabelecida por Jesus (imperativo), ou possibilidade oferecida de uma nova compreensão de si mesmos e dos outros, que pode ter efeitos na vida cotidiana (indicativo)? Neste último caso, que prefiro, a perfeição (o termo grego utilizado aqui designa, também, o cumprimento) pode, então, ser entendida como a experiência desta nova compreensão, que nunca é adquirida, mas surge, dia após dia, da escuta da palavra de Jesus.
- O aparecer ou o secreto (Mt 6, 1-18)
Esses versículos reinterpretam os três pilares da piedade judaica: a esmola, o jejum e a oração. Opõem uma lógica do aparecer — o crente baseia sua vida no olhar dos outros — a uma lógica do secreto — a identidade não se constitui naquilo que o homem faz sob o olhar dos outros, mas na relação filial com o Pai que vê em segredo. A “recompensa” (v. 1.2.5.16) é concedida com base em critérios que não são aqueles do mundo ao qual pertence a ordem religiosa. Na perspectiva do Reino dos céus que é o do secreto e do íntimo, o ato ético ou o gesto de piedade são o contrário do que se pode constatar a olho nu.
A primeira entre as obras de piedade, a esmola, é a ocasião de uma crítica à hipocrisia, isto é, ao disfarce e ao parecer (v. 2). Na lógica do mundo, a recompensa corresponde à medida da esmola, ou seja, a satisfação de receber em troca o que tem se dado: uma boa imagem de si. Por meio de um aforismo nos limites do absurdo (v. 3), Jesus sugere que é sem o próprio conhecimento que o crente oferece algo: o segredo em que se dá a esmola concerne ao próprio autor ou, pelo menos, a uma parte dele! A recompensa escapa à lógica da simetria, pois, como será o caso dos v. 6 e 18, se pode traduzir literalmente: “O Pai [...] te recompensará”, ou seja, implicitamente, dará o que julgará bom e do qual o beneficiário ignora a natureza exata.
A segunda das obras de piedade é a oração. Jesus começa novamente denunciando a atitude dos “hipócritas” que oram publicamente (v. 5) e opõe a essa atitude uma oração secreta, na própria intimidade (v. 6). Essa é a ocasião de trazer um ensinamento mais desenvolvido sobre a oração. Negativamente, trata-se, em primeiro lugar, de contestar a atitude infantil que consiste em pronunciar um rio de palavras para tentar ser ouvido (v. 7). A confiança no Pai que sabe o que é necessário para seus filhos invalida uma oração que consiste apenas em saciar o simples pedido de satisfação. Positivamente, Jesus propõe um modelo de oração que se dirige ao Pai celeste (v. 9a), ou seja, a uma exterioridade. Essa oração se desenvolve em dois momentos. Primeiramente, três pedidos concernem ao Pai em seu ato de revelação junto aos homens (v. 9b-10). A oração não consiste em pedir para participar da vontade divina nem para colaborar com o cumprimento de sua vontade. Ela é um apelo ao próprio Deus para que se revele a todos (v. 9b), que faça vir seu Reino (v. 10a) e que se cumpra sua vontade (v. 10b). Portanto, a oração é primeiramente desvio e abandono de suas preocupações e pretensões de agir por Deus.
Posteriormente, três pedidos referem-se ao orante (v. 11-13). O pedido do pão necessário para a vida cotidiana (v. 11) destaca, se ainda for necessário, que a oração não é um pedido de objeto que possa ser satisfeito, mas confiança absoluta naquele que, como certa vez no deserto, alimenta seu povo dia após dia. O pedido de perdão (v. 12 e 14-15) é um convite a abandonar a lei do talião para abrir-se à possibilidade de descobrir um Deus misericordioso. Rompendo a simetria constitutiva da lei de reciprocidade (qualquer ofensa ou dívida precisam reparação ou restituição sob pena de sanção), o perdão concedido supera a lógica do talião (cf. 5,38-42; contra exemplo: 18,23-35). Jesus evita uma falsa interpretação da relação de causalidade que ele estabelece entre perdão concedido ao outro e perdão recebido de Deus: na medida em que perdoar rompe a lógica de reciprocidade, perdão concedido e perdão recebido são uma única e mesma realidade, a da superabundância do dom que mostra o Pai celeste como um Deus de misericórdia. Ao contrário, não perdoar põe em ação um Deus de retribuição, que não concede então seu perdão. O terceiro pedido é um apelo ao Pai celeste enquanto figura da alteridade: ele pode se interpor entre eu e o que me leva a cair em tentação. Não é, portanto, Deus que tenta, mas é ele quem pode proteger o crente da tentação (cf. Tg 1,13-14). Só que este último tem de apelar a essa instância terceira.
Terceira obra de piedade revisitada por Jesus: o jejum. Aqui também, trata-se de contradizer o hipócrita (v. 16) não mostrando que se está jejuando (v. 18). Recentrar a piedade na intimidade do sujeito é, paradoxalmente, a possibilidade de uma verdadeira exterioridade, pois o Pai celeste, figura da alteridade, vê em segredo. Ao contrário, mostrar aos homens que se está em jejum remete apenas à sua própria satisfação narcísica, então, sem alteridade verdadeira, mas em um simples efeito-espelho em que somente se recebe o que se oferece.
- A preocupação ou a confiança (Mt 6,19-34)
O tema principal do conjunto dos v. 19-34 é o destaque de duas atitudes existenciais, uma fundada na “terra” (v. 19), sinônimo de trevas, a serviço de Mamom e inquietude pelas realidades deste mundo; a outra, no “céu” (v. 20), sinônimo de luz, a serviço de Deus e confiança. Essa temática amplia o que precede (v. 1-18: lógica do aparecer ou do secreto) e anuncia o que segue (cf. 7,13-14: os dois caminhos). O olho é uma candeia que ilumina o corpo. Se o olho for bom, o corpo inteiro terá luz; ao contrário, se o olho for “mau”, então o corpo será tenebroso (v. 22-23). Não se trata da constatação de uma deficiência fisiológica, mas de um estado interno da pessoa. A lumen internum (“luz interna” dos filósofos) pode, ela também, ser afetada pelas trevas, isto é, pelo mal. Ela não permite ao homem lutar contra os desejos dos sentidos e dominar as paixões, pois ela mesma é atingida pelo mal. A parábola dos dois senhores (v. 24) mostra que, enquanto instâncias fundadoras da existência, o céu e a terra não são conciliáveis: ou minha existência se desenvolve segundo os critérios do mundo dos homens, ou entendo-a como dom da misericórdia de Deus.
A questão das preocupações (v. 25-34) resulta da afirmação de que os discípulos e os ouvintes de Jesus não devem temer nada por sua sobrevivência, desde que ajuntem tesouros no céu, ou seja, em uma instância superior externa a este mundo e sua lógica. A insistência com a qual Jesus convida seus ouvintes e discípulos a escolher entre o céu e a terra, entre as trevas e a luz, e entre Deus e Mamom (6, 19-24), tem como objetivo fazê-los passar da “pouca fé” (v. 30; cf. 14,31; 16,8; 17,20) à fé, ou seja, da preocupação consigo mesmos à busca confiante do Reino e da justiça de Deus. O Deus de Jesus cuida das aves do céu e das plantas que não trabalham nem fiam (v. 25-29). A inatividade dos lírios se torna, assim, o sinal da generosidade e da bondade do Pai celeste que doa gratuitamente, segundo a sua benevolência. A justiça do Reino dos céus não se manifesta, portanto, segundo a lógica deste mundo: ela é a misericórdia de um Pai celeste que cuida até mesmo de quem não trabalha nem fia. Ao contrário, a glória de Salomão reside em uma sabedoria que supõe a capacidade de conhecer e de aprender. Assim, não apenas a glória de Salomão não iguala a beleza do lírio (v. 29), mas ainda sua sabedoria não é da mesma natureza daquela do Deus de Jesus. Esta não é construída na ambiguidade dos poderes humanos. Ela cuida até mesmo dos que não podem, à imagem de Salomão, invocar sua força, sua inteligência ou trabalho. A “pouca fé” dos ouvintes de Jesus não lhes permite crer na assistência soberana de Deus que cuida da erva do campo (v. 30-34). Assim, os discípulos correm o risco de ser como os pagãos: preocupados quanto ao que há de comer, beber e vestir, esquecendo que seu Pai celeste preocupa-se por eles com todas essas coisas.
Na parte conclusiva da seção, reencontra-se o fio condutor que estrutura o conjunto da seção que vai de 5,17 a 6,34, ou seja, a justiça de Deus e seu Reino que devem se tornar a preocupação principal dos discípulos (5,19-20; 6,1 e 33; cf. também 5,3: “Reino dos céus”; 5,6: “justiça”; e 5,10: “Reino” e “justiça”). A confiança caracteriza a releitura da Lei e dos Profetas. Em lugar de uma inquietude pelas coisas desse mundo, cada um está convidado à confiança absoluta no Pai celeste.
- Julgamento e “Regra de ouro” (Mt 7,1-12)
As palavras sobre o julgamento (v. 1-2) devem ser entendidas no mesmo sentido daquelas sobre o perdão (6,14-15): trata-se de abandonar a lógica da reciprocidade, da lei do talião. Além disso, julgar o outro é fazer dele um objeto e tornar-se o objeto do julgamento dos outros. Não existe mais relação entre sujeitos, mas relação de objetos. A parábola do argueiro e da trave (v. 3-5) ilustra o impasse do julgamento sobre outros: conduz a estabelecer-se juiz dos outros não conseguindo mais enxergar-se em sua mediocridade originária. Ao contrário, e segundo um desses paradoxos de que o Evangelho guarda o secreto, ser generoso com os outros supõe ao mesmo tempo uma grande lucidez sobre si mesmo e uma grande compaixão, aquela que justamente se deseja oferecer aos outros, como o que se quer receber de Deus! O aforismo do v. 6 constata que há pessoas que se confrontam com o tesouro sagrado e com as pérolas do Evangelho, mas que não sabem o que fazer disso: os cães e os porcos, de um lado, as coisas santas e as pérolas, do outro, pertencem a mundos estranhos um ao outro e que não têm nada em comum.
Nos v. 7-11, Jesus retorna à oração (cf. 6,7-13): não se trata de acumular palavras esperando ser ouvido (6,7), mas, na confiança, dirigir-se ao Pai que dará “coisas boas” àqueles que pedem, isto é, não necessariamente o que foi pedido, mas o que for bom para o filho. É preciso, então, que o pedido esteja de acordo com a oração do modo como a ensina Jesus, ou seja, que se desloque da necessidade infantil de objetos à vontade de Deus, figura da alteridade. A imagem é aquela de um pai que sabe do que seu filho precisa. A parte se conclui com a assim-chamada “regra de ouro” (v. 12), a qual se encontra, de uma forma ou outra, em todas as tradições sapienciais da humanidade: fazer aos outros o que queremos que nos seja feito. Não se trata, porém, de um retorno à lógica da reciprocidade: entre o outro e eu mesmo, de fato, Jesus introduz uma instância terceira, ou seja, “a Lei e os Profetas”. Essa instância evita o efeito-espelho, oferecendo um enquadramento e limites que preservam do que poderia se tornar um face a face aprisionador ou até perverso (como uma relação sadomasoquista).
Mt 7,13-27: Exortação final: os dois caminhos
O SM conclui-se por uma série de recomendações (v. 13-27) que prolongam as perspectivas adotadas desde 5,1. O ensinamento sobre os dois caminhos (v. 13-14) lembra, primeiramente, que o caminho da vida não é aquele das grandes avenidas onde circulam as multidões, mas o caminho estreito da singularidade. Na rua estreita da existência, cada um é chamado a responder por si mesmo ao apelo a viver recebido.
O alerta contra os falsos profetas (v. 15-20) ressoa como uma advertência a não escutar a palavra perversa daqueles que, em nome de Deus, avançam disfarçados e transformam a mentira em verdade (v. 15). “Por seus frutos os conhecereis” (v. 20): o desmascaramento dos falsos profetas se insere no tempo da maturação. O discernimento supõe a capacidade de analisar os efeitos de vida ou de morte das palavras que têm a pretensão de expressar a verdade. Assim como é preciso tempo para ver se os frutos da árvore serão bons, também é preciso submeter à prova do tempo as palavras ou as obras de cada um.
Os v. 21-23 confirmam que o discernimento se centra no espaço religioso: não são aqueles que se contentam com palavras, mas aqueles nos quais a palavra está enraizada na “vontade do Pai” que entram no Reino dos céus. “Fazer a vontade”, aqui, não designa primeiramente a concretização em atos de uma relação com o Pai. Agir não é, de fato, necessariamente sinônimo de fazer a vontade do Pai (cf. v. 22: “não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios?”). Mais importante é inserir sua existência em uma instância externa (“que está nos céus”), ou seja, não se baseando na lógica do mundo que é a da reciprocidade (se fizer isso, então mereço aquilo), mas na confiança no Pai que cuida de seu filho. Esse é o sentido dos v. 24-27: “Praticar” as palavras de Jesus não significa fazer isto ou aquilo, pois tanto o homem “prudente” quanto o homem “insensato” (cf. 25,2) edificam sua casa. “Praticar” (literalmente: “fazer”) a palavra de Jesus significa tornar-se literalmente o “poeta” (do grego poien, “fazer”, “realizar”; cf. Tg 1,22: “Sede cumpridores — literal— da Palavra”), ou seja: edificar sua existência sobre pilares sólidos que resistam às tempestades da existência.
Mt 7,28-29: Conclusão
Poder-se-ia pensar em 5,1-2 que Jesus falou apenas para seus discípulos. Nada disso: as multidões, também, beneficiam-se dessa palavra de autoridade (v. 27-28). A questão que esse dúplice público traz, detectável ao longo de todo o discurso, é recorrente na interpretação do SM ao longo da história.
IHU On-Line - Em seu livro Le Sermon sur la Montagne. Vivre la confiance et la gratuité [O Sermão da Montanha. Viver a confiança e a gratuidade], o senhor parte de duas perguntas inter-relacionadas: a) se o Sermão da Montanha dirige-se tanto aos discípulos quanto às multidões; e b) se as exigências do Sermão são verdadeiramente viáveis. Como responde a essas duas perguntas e como as relaciona?
Elian Cuvillier – Duas perguntas, ligadas uma à outra, acompanharam de forma recorrente a interpretação do SM. A primeira refere-se aos seus destinatários: o SM dirige-se apenas aos discípulos — como a introdução deixa supor (cf. 5,1) — ou se estende às multidões — conforme indicado pela conclusão (cf. 7,28-29)? Dito de outra forma, o SM dirige-se a um grupo limitado de ouvintes ou a um público mais vasto? A segunda pergunta diz respeito às exigências do SM: são elas realmente praticáveis (cf., por exemplo, 5,44 sobre o amor pelos inimigos)? A alternativa pode, também, ser formulada da seguinte maneira: as exigências do SM deveriam ser consideradas como preceitos que requerem uma obediência à qual todos os crentes, sem exceção, devem se submeter? Ou trata-se de recomendações destinadas unicamente aos que, buscando um ideal de perfeição, escolhem um estilo de vida radical, por exemplo, em uma vida religiosa consagrada?
Quanto à pergunta do público, o SM embaralha as cartas. A palavra de Jesus possui a capacidade de movimentar quem se deixa atingir por ela (cf. 8,1), tanto discípulo quanto membro da multidão. Trata-se, pois, de um público universal ao qual o SM se dirige, com vistas a fazer surgir sujeitos singulares, entre os quais a figura dos discípulos é paradigmática sem, porém, ser exclusiva. O SM se distingue assim tanto do discurso particularista, até mesmo sectário, quanto do discurso uniformizador de massa que nega a individualidade do destino da mensagem. No entanto, a pergunta mantém-se: são todos destinatários das exigências do SM? Pergunta que chama outra: é preciso distinguir, dentro do SM, o que se dirige a um público específico e o que se dirige a um público universal? Na história da interpretação, essas perguntas — às vezes sob formas diferentes — foram feitas e por muito tempo opuseram uma leitura “católica” e uma “protestante” do SM. Menciono aqui três nomes importantes neste debate: Tomás de Aquino, Martinho Lutero e João Calvino.
A teologia da Idade Média sempre defendeu a ideia de que o SM se dirigia prioritariamente aos discípulos, ou seja, às pessoas que haviam abandonado tudo para seguir Jesus. Para os teólogos dessa época, de fato, a ética radical do SM pode apenas ser explicada pela situação excepcional da época apostólica. Via de regra, é impossível conciliar as obrigações da vida em sociedade com as exigências “espirituais” do SM. Apenas os indivíduos capazes de retirar-se do mundo podem dar conta dessas exigências. Para a Igreja da Idade Média, o monaquismo correspondia à condição dos discípulos como Jesus a concebe no SM. Essa distinção entre duas categorias de crentes se encontra na Suma Teológica de Tomás de Aquino [3] (1225-1274). De um lado, há o povo da Igreja, cujas obrigações profanas tornam impossível a conformidade com as exigências do SM e que, por conseguinte, não está submetido a elas. Do outro, há uma categoria de homens e mulheres que renunciaram ao mundo pela vida religiosa e devem conformar sua existência às instruções do SM.
Martinho Lutero
Martinho Lutero [4] (1483-1546) é o primeiro a romper com esta oposição entre vida consagrada de um lado e laicado do outro. Segundo ele, a necessidade se impõe a todos de submeter inteiramente sua vida à vontade de Deus, independentemente de seu status — religioso ou laico. Para Lutero, de fato, Deus reivindica a vida inteira, e o SM não fornece algum argumento apontando para uma divisão da obediência. Exclui, portanto, a ideia de uma dúplice ética.
Ao mesmo tempo, Lutero constata que essa obediência é impossível. Ele mesmo havia feito a experiência: enquanto monge agostiniano, nunca havia podido levar uma vida conforme as exigências do SM. Foi a leitura da epístola de Paulo aos Romanos que o levou a reconhecer que Cristo doa gratuitamente pelo Evangelho o que nunca obtemos pela obediência: a graça e a misericórdia de Deus.
No entanto, a mensagem da justificação pela fé não torna a Lei caduca. Não apenas, segundo Lutero, ela continua a governar como pode a vida em sociedade, mas, além disso, mostra aos homens suas transgressões aos mandamentos, de tal forma que eles não podem mais confiar em sua obediência, mas apenas em Cristo. Para Lutero, a função insubstituível da Lei consiste, então, em tomar consciência da desobediência a Deus e da força do pecado. É a partir dessa dialética da Lei — que acusa — e do Evangelho — que dá misericórdia — que ele encontra a chave para compreender a Bíblia em geral e o SM em especial.
João Calvino
Uma geração após Lutero, João Calvino [5] (1509-1569) introduz um novo paradigma na história da interpretação do SM. Em relação à época de Lutero, os debates não são mais os mesmos. A controvérsia com a teologia católica passou para o segundo plano das preocupações do Reformador, enquanto que se tornou necessário distinguir-se dos anabatistas e antinomistas.
A designação de anabatistas vem da prática do rebatismo de crentes já batizados na infância. Os movimentos anabatistas surgidos no século XVI se caracterizam pela oposição radical que estabelecem entre a Antiga e a Nova Aliança. Eles leem o SM como uma nova lei e tentam aplicá-la ao pé da letra. Segundo seu ponto de vista, essa nova lei concedida por Jesus revogou assim a lei veterotestamentária. Por conseguinte, não se sentem mais governados pelos mandamentos do Antigo Testamento. De um lado, fizeram da observância literal do SM o critério da existência após Jesus. Do outro, rejeitam a autoridade do Antigo Testamento para a organização da vida social e, consequentemente, toda legislação civil baseada nos Dez Mandamentos.
Os antinomistas que, conforme o nome sugere, se opunham fundamentalmente ao reconhecimento da validade da lei (nomos em grego) na Igreja, pretendiam viver apenas do Evangelho e deixar o exercício da lei aos magistrados civis e aos príncipes. Para eles, se a lei ainda possuiu um valor político, desde Cristo ela não tem mais nenhum significado teológico.
Calvino se opôs a uns como aos outros: opor Antiga e Nova Aliança seria desconhecer a intenção de Jesus no SM. Jesus não se opõe à lei veterotestamentária, mas revela, ao contrário, o sentido desejado por Deus. Suas palavras são dirigidas contra a interpretação dos escribas e dos fariseus que, desde seu ponto de vista, obscureceram o sentido original, mas nunca contra a Lei. Tanto a ideia da abolição, por Jesus, dos mandamentos como a assimilação do SM a uma nova lei comportam mal-entendidos. Segundo Calvino, os mandamentos divinos não superam as possibilidades humanas, sendo, ao contrário, aplicáveis. O que importa é não lê-los ao pé da letra, mas entendê-los a partir da intencionalidade divina que os sustenta e que Jesus revela.
IHU On-Line - O senhor sugere ainda que há uma terceira via de interpretação possível. De que se trata? Como essa via é diferente das outras possibilidades? Nesse livro, o senhor também questiona se o Sermão pode ser visto como normativo ou como um conjunto de conselhos para quem deseja viver uma vida religiosa. Assim, como deveríamos nos colocar diante do texto do Sermão da Montanha?
Elian Cuvillier – Se as exigências são regras morais, compreendemos que ninguém se atreve realmente a alegar pô-las em prática, à exceção de alguns “santos” ou alguns radicais extremistas. Se as exigências forem um convite para uma nova compreensão do mundo e de si mesmo, então a questão de saber para quem é dirigido o SM e se é praticável desloca-se. O SM se dirige àqueles que estão à escuta de uma palavra capaz de renovar sua existência. Discípulos ou multidões? Pouco importa quem sejam no início. O conjunto do SM se dirige justamente a todos. Visa fazer surgir um sujeito: um “vós” constituído por uma multiplicidade de “eu” que o Pai conhece “em segredo”, cada uma e cada um singularmente. Esses sujeitos não têm ilusões sobre eles mesmos e suas capacidades (sabem que são potencialmente maus como o resto dos homens), mas sabem também que essa palavra ouvida e recebida os coloca em tensão com o mundo. Que essa palavra excede tudo o que creem saber de sua relação com os outros, que ela anula todos os particularismos, as divisões habituais, as distinções discriminantes.
O SM questiona e abre um horizonte. Realiza esse dúplice movimento, radicalizando a norma comum (não a suprimindo ou a negando). Não foca, primeiramente, no que é preciso fazer, mas na palavra a receber. É bem verdade, portanto, que o SM não se dirige a todos, pois se dirige a cada um particularmente. E, como se dirige a cada um particularmente, se torna verdadeiramente universal. Se, ao final do SM, as multidões admiradas (7,28-29) seguem Jesus (8,1), será preciso que delas se destaquem aqueles em quem essa palavra terá traçado seu caminho. Estamos apenas no início do evangelho. O caminho é ainda cumprido. Toda uma vida não é demais para que essa palavra nos atinja a ponto de deslocar duradouramente nossa existência, de mudar em profundidade o olhar que dirigimos a Deus, a nós mesmos, aos outros e ao mundo. Para que ela introduza em nós uma confiança que não vem de nós, mas nos é oferecida pela própria escuta da Palavra. Essa confiança na gratuidade do Deus de Jesus Cristo é a única capaz de nos fazer perceber a existência e, portanto, vivê-la no dia a dia, de forma renovada.
IHU On-Line - Qual é a relação entre o Sermão da Montanha e a não violência?
Elian Cuvillier – Por sua própria radicalidade, o SM é uma violência feita contra a lógica do mundo. Um novo discurso sobre Deus (literalmente, uma “teo-logia”) que suscita violência e oposição contra quem é seu pregador. A sequência do evangelho mostra, aliás, que Jesus deverá assumir a violência que suas palavras suscitam. Mostra, também, como o próprio Jesus, para manter-se coerente com essas palavras inéditas do SM, deverá passar por um luto fundamental, aquele de uma imagem violenta e retribuidora de Deus, profundamente ancorada na sua história e cultura. Se o evangelho destaca que o Jesus terrestre veio para cumprir, desde seu ministério na Galileia, o que o SM anuncia (cf. Mt 11,28-30; 20,28), esse cumprimento é, porém, apenas parcial até a Paixão. A palavra de Jesus, na continuação do evangelho, permanece, de fato, às vezes em contraste com a lógica radical e inédita do SM (o próprio Jesus se vê, em alguns momentos, sob o impacto de seu próprio julgamento: comparar Mt 5,22 e Mt 23,17). Apenas a Paixão permitirá que se realize plenamente, em Jesus, esse novo discurso sobre Deus.
No SM, a Palavra que Jesus pronuncia é verdadeiramente Palavra de alteridade no que ela anuncia de inédito, um inédito que não se confunde totalmente com o que o Jesus terrestre dá a conhecer dele no decorrer de seu ministério na Galileia. O SM antecipa o que se realizará plenamente na Paixão de Jesus. A recusa de erguer a espada, na hora de sua prisão, destaca que prefere o agir da Palavra ao das armas. A morte na cruz é o lugar em que Jesus realiza, ao extremo de sua lógica, a palavra inédita do SM. No Calvário, Jesus é revelado verdadeiramente como o “Filho de Deus” que rompe a lógica da violência e oferece um lugar onde descobrir o novo rosto de seu Pai, como o SM anunciava.
Poder-se-ia, portanto, pensar que o evangelho de Mateus tenta destacar como, pouco a pouco, se apaga em Jesus qualquer traço de violência para deixar aparecer somente a figura de um Messias “manso e humilde de coração” (Mt 11,29), que, como o Servo de Javé, não suscita a contenda (12,19). Tal imagem, a de um Jesus “não violento”, é, porém, incompleta e corre o risco de ser tachada de ingênua, ou até caricaturada. Com certeza, devemos insistir neste ponto: assim como Mateus o apresenta, Jesus está radicalmente distante da violência brutal, tanto física quanto de estado, violência revolucionária ou até violência divina. No entanto, no evangelho das palavras de Jesus uma forma de violência é detectável, uma violência que se poderia definir como positiva, portadora de vida.
Ilustro esse ponto voltando à quarta antítese do SM (5,38-42), em que Jesus aborda a questão do talião. Ele reitera primeiramente a regra (v. 38) que, lembramos, é um progresso nas relações humanas no que diz respeito a uma prática que consiste em fazer justiça sob forma de uma vingança que excede em violência ou em danos o prejuízo inicialmente causado (cf., por exemplo, a história de Diná, vingada por seus irmãos em Gn 34). Depois, nos v. 39-42, Jesus convida a superar a lei do talião por meio de propósitos cuja radicalidade violenta literalmente a lógica da retribuição habitualmente em vigor nas sociedades humanas. É assim que é preciso entender a proposta de “dar a outra face”: longe de ser um gesto de submissão servil pelo qual um indivíduo se submete ao arbitrário de seu adversário, trata-se, ao contrário, de uma atitude enérgica e voluntária pela qual alguém muda radicalmente de atitude (ou seja, não responde à agressão por um gesto parecido de agressão), convidando assim o outro a deslocar seu próprio olhar para si mesmo e para o outro. Trata-se de desestabilizá-lo para vencer nele a pulsão original que o conduz a responder à violência física com uma violência parecida. O resto do propósito deve ser entendido segundo a mesma lógica, ou seja, adotar uma postura que visa mudar a relação do outro com a realidade por meio de um questionamento profundo de sua compreensão do mundo. A lógica é aquela da recusa da especularidade e do “efeito-espelho”. Longe de ser não violenta, a lógica da “outra face” contém, assim, uma forma especial de violência, no sentido de um apelo a uma força da Vida que se ergue contra a violência brutal do “golpe por golpe”, que é a do talião. O Reino de Deus que nasce dessa possibilidade oferecida de uma nova compreensão da existência (cf. 5,20) supõe, então, uma violência contra a lógica do mundo. Nesse sentido, o SM constrói mesmo uma “lógica do excesso do dom e da confiança na gratuidade” que coloca o crente — ou seja, aquele que leva a sério a palavra de Cristo — em uma tensão saudável com o mundo, logo, com parte de si mesmo.
IHU On-Line - Qual é o sentido do conceito de “bem-aventurança” no Sermão da Montanha?
Elian Cuvillier – A busca da felicidade é tão antiga quanto a humanidade: como viver uma vida feliz considerando nossa condição humana marcada pela finitude e pelas circunstâncias da existência (doenças, azar, catástrofes de todo tipo, perda dos entes amados e, mais cedo ou mais tarde, a perspectiva de nossa própria morte)? Na Antiguidade, os deuses são ditos felizes, pois escapam ao destino dos mortais, gozando então da felicidade eterna. Por seu lado, os homens não cessam de procurar a felicidade e associam-na, segundo as convicções e, às vezes, sem exclusividade, à saúde, ao amor, ao dinheiro, à sabedoria, à beleza, ao poder, à piedade, à proteção dos deuses. “Nada há de novo debaixo do sol” (1,9), já dizia o Eclesiastes — o Qoheleth — que fazia da busca da felicidade e da maneira de ser feliz uma de suas preocupações principais, com a lucidez habitual: “Disse eu no meu coração: Ora vem, eu te provarei com alegria; portanto goza o prazer; mas eis que também isso era vaidade. Ao riso disse: Está doido; e da alegria: De que serve esta?” (Qo 2, 1-2).
Felicidade e suas condições de possibilidade
Quanto a essa questão da felicidade e de suas condições de possibilidade, as bem-aventuranças do evangelho de Mateus (Mt 5,3-12) constituem uma contribuição original. Seu dizer é, de fato, no mínimo paradoxal: Jesus proclama que a felicidade se recebe na pobreza de espírito, pela prova e, de modo geral, em uma situação de necessidade e humildade a priori pouco conforme aos cânones habituais da felicidade. Apesar de não afirmar que a felicidade nasce do sofrimento, Jesus considera não apenas que ela tem sua fonte na expectativa de algo cuja origem deve ser situada fora desse mundo (o que Mateus chama de “Reino dos céus”), mas também que pode residir no cerne da prova. Eis uma definição de felicidade que não corresponde absolutamente àquela com a qual estamos acostumados!
As bem-aventuranças designam, habitualmente, a coleção das nove palavras de Jesus que abrem o SM. A palavra deriva do latim beati (“bento” ou “feliz”) e com ela inicia, na tradução latina do Novo Testamento, cada frase de Mt 5,3-12. De modo mais geral, o termo designa palavras que possuem uma forma literária comum atestada no Egito, na Grécia e na literatura hebraica. Designada pelo termo técnico de “macarismo”, derivado do grego makarios, “bem-aventurado” [6].
Do ponto de vista da forma literária, os macarismos começam pelo adjetivo makarios, seguido por uma oração relativa ou um pronome pessoal introduzindo uma cláusula que descreve uma conduta específica ou uma qualidade que incentiva ao louvor da pessoa declarada bem-aventurada. Os macarismos são formulados na terceira pessoa e, na maioria das vezes, no singular. O exemplo mais antigo conhecido de macarismo se encontra nos Hinos homéricos a Deméter: “Feliz, entre os homens da terra, quem possui a visão desses mistérios”.
A bem-aventurança se distingue da bênção. Enquanto esta, introduzida pela fórmula “bendito seja...” (eulogêtos ou o particípio eulogêmenos), realiza o que diz (ela abençoa!), a bem-aventurança é uma proclamação: o macarismo não aparece primeiramente como uma maneira de indicar o caminho a seguir para ser feliz, nem como uma fórmula de bênção que quer comunicar a felicidade. Ele constata e proclama essa felicidade. Parabeniza o bem-aventurado a quem se dirige.
Em grego clássico makarios significa “favorecido pelos deuses”, aquele que vive como os deuses, sem preocupações. Nas bem-aventuranças evangélicas é, portanto, o efeito de surpresa suscitado pelo uso sistemático da frase paradoxal que é o motor das bem-aventuranças. Chamam-se de bem-aventurados os que, pela visão humana, vivem na situação contrária da felicidade e do favor dos deuses: os pobres, os aflitos, os famintos... De forma geral, encontram-se duas maneiras principais de restituir o termo makarios nas traduções francesas mais comuns:
1) A ideia de felicidade: “Heureux” [Felizes] (TOB, BJ, NBS, Colombe, Segond, BFC, Osty, Maredsous, Joana d’Arc); “Bienheureux” [Bem-aventurados] (Darby et Crampon); “Ils sont heureux” [Eles são felizes] (Bíblia Parole de Vie); “Joie de ceux qui” [Alegria daqueles que] (tradução Bayard); “Magnifiques” [Magníficos] (tradução de Jean Grosjean: “a palavra grega evoca a felicidade dos deuses, dos reis, dos ricos, mais do que a boa sorte de um homem feliz”).
2) Mais raro, a ideia dinâmica de movimentação: “Em marche” [Em marcha] (Bíblia Chouraqui); “Debout” [De pé]. A razão dessa tradução é que a raiz hebraica da qual deriva a palavra bem-aventurado corresponde à ideia de caminhar, de avançar: uma dinâmica.
No que me concerne, proponho traduzir makarios pelo termo “Vivo”. Trata-se de passar, aqui, não a noção de vida biológica, mas daquilo que poderíamos chamar de vida psíquica ou espiritual, a que vem do sopro de vida que Deus insufla em cada homem. Os “Vivos” designam não aqueles que são cheios de si, de suas riquezas materiais ou intelectuais, mas os que deixaram que se criasse neles um espaço para que advenha algo além do que já existe e que eles dominam. Dito de outra forma, “Vivo” significa aberto, no sentido de disponível para a vida do desejo em si. Assim entendida, cada bem-aventurança abre para outra dimensão que institui uma nova forma de ser homem.
IHU On-Line - No livro, o senhor afirma que o principal desafio com o qual o Sermão da Montanha nos confronta não é fugir do mundo, mas, ao contrário, considerá-lo o lugar em que ainda é possível viver uma relação de confiança e de gratuidade. Como esses conceitos podem nos ajudar a entender esta dimensão de que é possível viver tanto a confiança quanto a gratuidade neste mundo? Ainda neste sentido, como devemos entender a criação a partir do sopro de Deus? De qual forma o vivente originário do sopro se relaciona com as dimensões da gratuidade e da confiança?
Elian Cuvillier – As noções de “confiança” e de “gratuidade” são, aqui, utilizadas com um sentido teológico e bíblico específico: o termo confiança equivale, para mim, à palavra grega pistis, que é traduzida, na maioria das vezes, em nossas Bíblias, pelo termo “fé”. Gosto de definir a fé em Cristo como a “confiança na confiança de um outro”. Quanto à gratuidade, ela equivale à noção de “misericórdia” que se encontra no Novo Testamento, em que ela expressa a bondade originária de Deus para conosco. O SM ressoa, para mim, como um convite a viver neste mundo sob a luz da Boa Nova de Jesus Cristo que é confiança e gratuidade: confiança em um Deus que vem ao meu encontro e que, em troca desta confiança, não me pede mais nada. Pois, o que o SM nos ensina é que o Evangelho não é uma moral (“tu deves fazer isto ou aquilo para obter isto ou aquilo” — lógica da troca e da retribuição), mas a proclamação de uma Palavra que vem abrir para uma nova compreensão de Deus, de nós mesmos e dos outros. Cada ouvinte dessa Palavra pode, então, deixar-se tomar por ela e assim, no dia a dia, viver um pouco dessa confiança e dessa gratuidade em um mundo em que reina, geralmente, a desconfiança e a lógica da retribuição.
Por Patricia Fachin | Tradução: Vanise Dresch
Notas:
[1] O Sermão da Montanha é um discurso de Jesus Cristo que pode ser lido no Evangelho de Mateus (Caps. 5-7) e no Evangelho de Lucas (Fragmentado ao longo do livro). (Nota da IHU On-Line)
[2] Para a tradução das citações oficiais da Bíblia, foi usada a versão Corrigida e Revisada Fiel de João F. Almeida – disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf. (Nota da tradução).
[3] São Tomás de Aquino (1225-1274): padre dominicano, teólogo, distinto expoente da escolástica, proclamado santo e cognominado Doctor Communis ou Doctor Angelicus pela Igreja Católica. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo com a visão aristotélica do mundo, introduzindo o aristotelismo, sendo redescoberto na Idade Média, na escolástica anterior. Em suas duas "Summae", sistematizou o conhecimento teológico e filosófico de sua época: são elas a Summa Theologiae e a Summa Contra Gentiles. (Nota da IHU On-Line)
[4] Martinho Lutero (1483-1546): teólogo alemão, considerado o pai espiritual da Reforma Protestante. Foi o autor da primeira tradução da Bíblia para o alemão. Além da qualidade da tradução, foi amplamente divulgada em decorrência da sua difusão por meio da imprensa, desenvolvida por Gutemberg em 1453. Sobre Lutero, confira a edição 280 da IHU On-Line, de 03-11-2008, intitulada Reformador da Teologia, da igreja e criador da língua alemã. O material está disponível para download em http://bit.ly/ihuon280. (Nota da IHU On-Line)
[5] João Calvino (1509-1564): teólogo cristão francês, teve uma influência muito grande durante a Reforma Protestante e que continua até hoje. Portanto, a forma de Protestantismo que ele ensinou e viveu é conhecida por alguns pelo nome Calvinismo, embora o próprio Calvino tivesse repudiado contundentemente este apelido. Esta variante do Protestantismo viria a ser bem-sucedida em países como a Suíça (país de origem), Países Baixos, África do Sul (entre os africânderes), Inglaterra, Escócia e Estados Unidos. Leia, também, a edição 316 da IHU On-Line intitulada Calvino - 1509-1564. Teólogo, reformador e humanista, disponível em http://bit.ly/1oBIrpn. (Nota da IHU On-Line)
[6] “Heureux” foi traduzido para o português como “bem-aventurados” na Bíblia, mas geralmente é traduzido por “feliz”, por isso tentei conciliar dessa forma aqui e a seguir no parágrafo em que trata das traduções possíveis de Heureux. (Nota da tradutora)
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O Sermão da Montanha: um convite à gratuidade e à confiança. Entrevista especial com Elian Cuvillier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU