26 Outubro 2015
Na celebração eucarística, na manhã de hoje, 25 de outubro, concluindo o Sínodo dos Bispos sobre a Família, o Papa Francisco retomou o tema das tentações. Inspirado pelas leituras da missa de hoje, descreveu duas. A primeira que intitula como "espiritualidade da miragem": "Podemos caminhar através dos desertos da humanidade não vendo aquilo que realmente existe, mas o que nós gostaríamos de ver; somos capazes de construir visões do mundo, mas não aceitamos aquilo que o Senhor nos coloca diante de olhos. Uma fé que não sabe radicar-se na vida das pessoas, permanece árida e, em vez de oásis, cria outros desertos".
A segunda, segundo Francisco, é cair numa «fé de tabela». "Podemos caminhar com o povo de Deus, mas temos já a nossa tabela de marcha, onde tudo está previsto: sabemos aonde ir e quanto tempo gastar; todos devem respeitar os nossos ritmos e qualquer inconveniente perturba-nos. Corremos o risco de nos tornarmos como «muitos» do Evangelho que perdem a paciência e repreendem Bartimeu. Pouco antes repreenderam as crianças (cf. 10, 13), agora o mendigo cego: quem incomoda ou não está à altura há que excluí-lo".
Eis a íntegra da homilia.
As três leituras deste domingo apresentam-nos a compaixão de Deus, a sua paternidade, que se revela definitivamente em Jesus.
O profeta Jeremias, em pleno desastre nacional, enquanto o povo é deportado pelos inimigos, anuncia que «o Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel» (31, 7). E por que o fez? Porque Ele é Pai (cf. 31, 9); e, como Pai, cuida dos seus filhos, acompanha-os ao longo do caminho, sustenta «o cego e o coxo, a mulher grávida e a que deu à luz» (31, 8). A sua paternidade abre-lhes um caminho desimpedido, um caminho de consolação depois de tantas lágrimas e tantas amarguras. Se o povo permanecer fiel, se perseverar na busca de Deus mesmo em terra estrangeira, Deus mudará o seu cativeiro em liberdade, a sua solidão em comunhão: e aquilo que o povo semeia hoje em lágrimas, recolhê-lo-á amanhã com alegria (cf. Sal 125, 6).
Com o Salmo, também nós manifestámos a alegria que é fruto da salvação do Senhor: «A nossa boca encheu-se de sorrisos e a nossa língua de canções» (125, 2). O crente é uma pessoa que experimentou na sua vida a acção salvífica de Deus. E nós, pastores, experimentamos o que significa semear com fadiga, por vezes em lágrimas, e alegrar-se pela graça duma colheita que sempre ultrapassa as nossas forças e as nossas capacidades.
O trecho da Carta aos Hebreus apresentou-nos a compaixão de Jesus. Também Ele «Se revestiu de fraqueza» (cf. 5, 2), para sentir compaixão por aqueles que estão na ignorância e no erro. Jesus é o Sumo Sacerdote grande, santo, inocente, mas ao mesmo tempo é o Sumo Sacerdote que tomou parte nas nossas fraquezas e foi provado em tudo como nós, excepto no pecado (cf. 4, 15). Por isso, é o mediador da nova e definitiva aliança, que nos dá a salvação.
O Evangelho de hoje liga-se diretamente à primeira Leitura: como o povo de Israel foi libertado graças à paternidade de Deus, assim Bartimeu foi libertado graças à compaixão de Jesus. Jesus acaba de sair de Jericó. Mas Ele, apesar de ter apenas iniciado o caminho mais importante, o caminho para Jerusalém, detém-Se ainda para responder ao grito de Bartimeu. Deixa-Se comover pelo seu pedido, interessa-Se pela sua situação. Não Se contenta em dar-lhe uma esmola, mas quer encontrá-lo pessoalmente. Não lhe dá instruções nem respostas, mas faz uma pergunta: «Que queres que te faça?» (Mc 10, 51). Poderia parecer uma pergunta inútil: que poderia um cego desejar senão a vista?
E todavia, com esta pergunta feita «face a face», direta mas respeitosa, Jesus manifesta que quer escutar as nossas necessidades. Deseja um diálogo com cada um de nós, feito de vida, de situações reais, que nada exclua diante de Deus. Depois da cura, o Senhor diz àquele homem: «A tua fé te salvou» (10, 52). É belo ver como Cristo admira a fé de Bartimeu, confiando nele. Ele acredita em nós, mais de quanto nós acreditamos em nós mesmos.
Há um detalhe interessante. Jesus pede aos seus discípulos que vão chamar Bartimeu. Estes dirigem-se ao cego usando duas palavras, que só Jesus utiliza no resto do Evangelho. Primeiro, dizem-lhe «coragem!», uma palavra que significa, literalmente, «tem confiança, faz-te ânimo!» É que só o encontro com Jesus dá ao homem a força para enfrentar as situações mais graves. A segunda palavra é «levanta-te!», como Jesus dissera a tantos doentes, tomando-os pela mão e curando-os.
Os seus limitam-se a repetir as palavras encorajadoras e libertadoras de Jesus, conduzindo directamente a Ele sem fazer sermões. A isto são chamados os discípulos de Jesus, também hoje, especialmente hoje: pôr o homem em contacto com a Misericórdia compassiva que salva. Quando o grito da humanidade se torna, como o de Bartimeu, ainda mais forte, não há outra resposta senão adoptar as palavras de Jesus e, sobretudo, imitar o seu coração. As situações de miséria e de conflitos são para Deus ocasiões de misericórdia. Hoje é tempo de misericórdia!
Mas há algumas tentações para quem segue Jesus. O Evangelho põe em evidência pelo menos duas.
Nenhum dos discípulos pára, como faz Jesus. Continuam a caminhar, avançam como se nada fosse. Se Bartimeu é cego, eles são surdos: o seu problema não é problema deles. Pode ser o nosso risco: face aos contínuos problemas, o melhor é continuar para diante, sem se deixar perturbar. Desta maneira, como aqueles discípulos, estamos com Jesus, mas não pensamos como Jesus. Está-se no seu grupo, mas perde-se a abertura do coração, perdem-se a admiração, a gratidão e o entusiasmo e corre-se o risco de tornar-se «consuetudinários da graça». Podemos falar d’Ele e trabalhar para Ele, mas viver longe do seu coração, que Se inclina para quem está ferido. Esta é a tentação duma «espiritualidade da miragem»: podemos caminhar através dos desertos da humanidade não vendo aquilo que realmente existe, mas o que nós gostaríamos de ver; somos capazes de construir visões do mundo, mas não aceitamos aquilo que o Senhor nos coloca diante de olhos. Uma fé que não sabe radicar-se na vida das pessoas, permanece árida e, em vez de oásis, cria outros desertos.
Há uma segunda tentação: cair numa «fé de tabela». Podemos caminhar com o povo de Deus, mas temos já a nossa tabela de marcha, onde tudo está previsto: sabemos aonde ir e quanto tempo gastar; todos devem respeitar os nossos ritmos e qualquer inconveniente perturba-nos. Corremos o risco de nos tornarmos como «muitos» do Evangelho que perdem a paciência e repreendem Bartimeu. Pouco antes repreenderam as crianças (cf. 10, 13), agora o mendigo cego: quem incomoda ou não está à altura há que excluí-lo. Jesus, pelo contrário, quer incluir, sobretudo quem está relegado para a margem e grita por Ele. Estes, como Bartimeu, têm fé, porque saber-se necessitado de salvação é a melhor maneira para encontrar Cristo.
E, no fim, Bartimeu põe-se a seguir Jesus ao longo da estrada (cf. 10, 52). Não só recupera a vista, mas une-se à comunidade daqueles que caminham com Jesus.
Queridos Irmãos sinodais, nós caminhámos juntos. Agradeço-vos pela estrada que compartilhámos tendo o olhar fixo no Senhor e nos irmãos, à procura das sendas que o Evangelho indica, no nosso tempo, para anunciar o mistério de amor da família. Continuemos pelo caminho que o Senhor deseja. Peçamos-Lhe um olhar são e salvo, que saiba irradiar luz, porque recorda o esplendor que o iluminou. Sem nos deixarmos jamais ofuscar pelo pessimismo e pelo pecado, procuremos e vejamos a glória de Deus que resplandece no homem vivo.
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Uma fé que não sabe radicar-se na vida das pessoas, permanece árida e, em vez de oásis, cria outros desertos", afirma o Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU