10 Agosto 2015
“Para impedir esses linchamentos, tem de trabalhar com as causas, as quais estão relacionadas com essa percepção de que as instituições não darão as respostas que as pessoas esperam”, frisa a socióloga.
Foto: CartaCapital |
Autora da dissertação de mestrado 30 anos de linchamentos na região metropolitana de São Paulo – 1980-2009 (2013), a socióloga frisa que a democracia brasileira “não foi capaz de garantir que as instituições tomassem as rédeas em casos de conflitos, e tampouco garantir que os direitos fossem respeitados nos diversos aspectos, inclusive os direitos daquelas pessoas que são acusadas de algum crime”.
A violência praticada nos casos de linchamento, explica, também é motivada por um desejo de “manter a ordem” e de eliminar as pessoas que cometeram crimes, para “manter a paz”, porque “há um sentimento generalizado de que há impunidade e de que as pessoas têm medo. Ou seja, a percepção das pessoas é de que há uma criminalidade generalizada e essa sensação às vezes é mais importante do que os números”. Na avaliação da socióloga, o linchamento é motivado, de outro lado, por “uma ideia bastante rasa de que o problema da criminalidade está focado em alguns indivíduos e de que, eliminando-os, se conseguiria estabelecer a ordem”.
Ariadne Natal analisou mais de 500 casos de linchamento que ocorreram no país, e destaca que é possível entender o anseio das pessoas que cometem essas ações, mas “o que se coloca em questão é: por que essa resposta? Ela é a mais adequada? Vai realmente trazer tranquilidade?” Embora seja “impossível” pensar que o linchamento resolverá o problema da segurança, a socióloga pontua que “temos de entender que se é esse tipo de ação que gera paz, imagina o que as pessoas estão vivendo no momento anterior ao linchamento. Então, essa situação está relacionada a uma série de privações, aliada a uma percepção de que a criminalidade é presente, alta e de que não há respostas para a resolução desse caso, mas de que a partir do linchamento algo foi feito”.
Entre as propostas para diminuir esse tipo de crime, ela é categórica: “É preciso construir a ideia de que ter a lei funcionando é bom para todo mundo e ir contra ela é ruim para todo mundo. Ou seja, quando as pessoas desrespeitam a lei, elas também estão cometendo um crime”.
Ariadne Natal é graduada em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, onde atualmente cursa o doutorado na mesma área, desenvolvendo a pesquisa Entre a defesa e a violação da lei: Percepções de policiais militares a respeito de seu papel, poder e legitimidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a lógica que sustenta os linchamentos?
Foto: researchgate.net
Ariadne Natal – Uma questão de fundo importante é a de que as instituições do Estado não são uma fonte de segurança garantida. Nesse sentido, há um sentimento generalizado de que há impunidade e de que as pessoas têm medo. Ou seja, a percepção das pessoas é de que há uma criminalidade generalizada e essa sensação, às vezes, é mais importante do que os números. Por conta disso, algumas pessoas tomam certas medidas para resolver os conflitos, e os casos de linchamento entrariam nesse contexto. Isso seria uma forma de tentar estabelecer uma “ordem”, porque se trata de uma ação violenta, mas essa ação tem como objetivo fazer justiça e garantir uma ordem que foi quebrada ou que parece ter sido quebrada por alguém que cometeu um delito. Então, as pessoas se revoltam contra o suspeito de ter cometido um delito e praticam uma ação violenta com o objetivo de restabelecer essa ordem, eliminando ou tentando eliminar a pessoa.
Essa é a lógica de fundo, mas, além disso, tem uma questão que está relacionada com a existência de uma cultura de uso da violência para resolver conflitos. Infelizmente a nossa democracia não foi capaz de garantir que as instituições tomassem as rédeas em casos de conflitos, e tampouco garantir que os direitos fossem respeitados nos diversos aspectos, inclusive os direitos daquelas pessoas que são acusadas de algum crime. Elas não têm a cidadania suspensa por terem cometido algum crime ou por serem culpadas. São esses valores que, apesar de vivermos numa democracia, não conseguimos incutir nas pessoas.
IHU On-Line - Por que, segundo sua avaliação, o linchamento é algo aceito no Brasil? Esse sentimento de impunidade justifica as ações?
Ariadne Natal – Não sei se ele justifica, mas ajuda a explicar, porque as pessoas têm uma certa abertura para resolver os conflitos de maneira violenta. Há outras situações em que a população muitas vezes apoia a violência, e o anseio é o mesmo: o de eliminar aquela pessoa que cometeu um crime como forma de garantir a paz. É uma ideia bastante rasa de que o problema da criminalidade está focado em alguns indivíduos e de que, eliminando-os, se conseguiria estabelecer a ordem. Essa é uma ideia falsa de combater a criminalidade, mas que tem uma lógica que está não só por trás dos linchamentos, mas de outras ações, as quais contam com o apoio da população e, por isso, continuam acontecendo. Existe um processo de valores que são compartilhados, entre eles está essa ideia de que eliminar o outro é legítimo para garantir a segurança.
"O mais comum é o linchamento não ser caracterizado como uma ocorrência criminal" |
IHU On-Line – O que os casos de linchamento evidenciam sobre o sistema judiciário brasileiro?
Ariadne Natal – Fica claro, nos casos de linchamento, que a população não recorre a essas instituições em razão da falta de confiança que se tem nelas, seja por causa da ineficiência em identificar responsáveis, indiciar e julgar aqueles que são culpados. O linchamento deixa de fora as instituições que foram criadas para lidar com essas situações, por conta do descrédito que se tem em relação ao fato de essas instituições poderem dar alguma resposta.
IHU On-Line - Linchamentos acontecem também entre os presos?
Ariadne Natal – Sim, porque o linchamento tem a ver com uma ação que quebra alguns valores, os quais variam bastante conforme o grupo em questão. Então, de acordo com o código dentro da cadeia, uma pessoa roubar, por exemplo, não é considerado um problema, mas cometer um ato de estupro fere o código interno dos presos.
Ocorre, contudo, que o linchamento sempre envolve uma disputa desproporcional entre uma vítima e um número grande de agressores, e tem o objetivo de fundo de controle social, de fazer justiça. Ou seja, trata-se sempre de uma resposta a uma ação especial que é considerada problemática.
IHU On-Line - Como os linchamentos são tratados legalmente?
Ariadne Natal – Há uma dificuldade da polícia em tratar desse tipo de fenômeno, primeiro, porque é algo que é imprevisível, mas quando a polícia se depara com uma situação dessas, tem a função de impedir que isso aconteça e, portanto, cessar as agressões é sempre a primeira preocupação. Ocorre, contudo, que nem sempre no calor dos acontecimentos a polícia militar se preocupa em identificar quem são os agressores. Muitas vezes a polícia é chamada em razão do delito anterior, do qual o linchado é acusado. A polícia chega na ocorrência com a informação de que algo ocorreu, mas se depara com o acusado do roubo, por exemplo, sendo agredido. Então, ela identifica o suspeito e o detém, mas nem sempre faz alguma coisa em relação à agressão física que ele está sofrendo. O mais comum, portanto, é o linchamento não ser caracterizado como uma ocorrência criminal também.
Em casos que envolvem homicídio do suspeito, e que necessita de uma investigação, há uma dificuldade de realizar a investigação, porque são múltiplos atores participando da agressão ao suspeito. O papel da polícia seria identificar as ações individualmente, mas o problema é que nesses casos, geralmente, ninguém está disposto a falar, porque muitas vezes o linchamento acontece em comunidades e as pessoas não querem denunciar o vizinho, por exemplo, por medo de reações. Então, sem testemunhas é difícil investigar esse tipo de crime.
Hoje, muitas dessas ações acabam sendo filmadas e, através das imagens, é possível identificar quem são as pessoas envolvidas, mas é um tipo de crime de difícil resolução. Geralmente o Instituto Médico-Legal - IML faz exames para identificar qual foi a lesão que provocou a morte e, nesse caso, seria necessário identificar quem foi o responsável pela lesão. No caso do Maranhão, temos a informação de que o que provocou a morte de Cledenilson foi uma facada. Então, provavelmente a polícia está atrás de quem o esfaqueou, porque é mais fácil de identificar a responsabilidade. É difícil solucionar esses casos, especialmente quando não se tem casos de morte, porque é mais difícil de a polícia investigar.
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"Não é um tipo de crime que gera uma revolta na população" |
IHU On-Line - Que avaliação você faz da abordagem e divulgação feita do linchamento de Cledenilson, no Maranhão?
Ariadne Natal – Tem formas diferentes de noticiar esse tipo de ocorrência, desde abordagens que alimentam novos casos, porque naturaliza a situação e diz que esses casos são legítimos e, com isso, estimula outras pessoas a agir da mesma maneira, criando um clima em que esse tipo de ação não é favorável. No ano passado, por exemplo, no caso de um linchamento no Botafogo, no Rio de Janeiro, uma jornalista deu uma declaração dizendo que o linchamento foi em legítima defesa, ou seja, legitimou esse tipo de ação.
Outra possibilidade de noticiar é expondo o lnchamento de maneira crítica, como foi feito pelo Jornal Extra, do Rio de Janeiro, que abordou o caso do Maranhão com uma capa em que foi colocada a imagem do rapaz amarrado no poste e outra imagem de um negro amarrado ao tronco, fazendo alusão à escravidão e mostrando o absurdo do linchamento. Ou seja, é possível noticiar o caso de maneira crítica, mostrando um problema que tem de ser resolvido.
IHU On-Line - Pode nos falar sobre os 589 casos de linchamento que você analisou na região metropolitana de São Paulo entre 1980 e 2009? Quais os casos que motivaram os linchamentos ao longo dos anos?
Ariadne Natal – Tem uma série de variações no perfil das vítimas. Nos anos 1980, por exemplo, tem um perfil de vítimas mais jovens e houve também um aumento da proporção de mulheres entre as vítimas de linchamento, de 5% para 10%. Ao longo do período diminuiu o número de notícias sobre linchamentos e, na minha avaliação, isso tem a ver com o momento. Ou seja, o interesse da imprensa sobre esse tipo de evento é sazonal. Tem picos de casos registrados em alguns momentos, e aponto na pesquisa que esses picos estão relacionados com a repercussão dos casos, ou seja, quando tem um caso que reverbera bastante, em seguida há mais informações e notícias sobre isso.
Elenquei duas hipóteses para analisar essa questão: uma delas é esse interesse da imprensa por esse tipo de fenômeno; a outra é de que, diante de um caso de grande repercussão, outros casos aconteceriam. É provável que as duas coisas aconteçam. No ano passado, por exemplo, tivemos um caso e neste ano já tivemos outros.
A principal motivação foi o crime contra a vida, a segunda motivação foi crime contra o patrimônio, como roubo, e a terceira está relacionada a crimes contra os costumes, que são crimes relacionados a questões sexuais. As motivações mudam um pouco ao longo do tempo, porque na década de 1980 tinha uma proporção maior de crimes contra o patrimônio, mas depois esse índice diminuiu.
Ao longo de todo esse acompanhamento, não vi casos de linchamento relacionados ao tráfico de drogas, justamente porque essa não é uma situação em que se tem uma vítima específica, ou seja, não é um tipo de crime que gera uma revolta na população. Isso demonstra também quais são os valores que estão em jogo, quais são os valores que são considerados graves em cada momento. Apesar de esse ser um crime que encarcera muito, não motiva uma reação dessa natureza.
"Existe um apelo emocional muito forte nos linchamentos, por isso eles geram uma sensação de que há resolução" |
IHU On-Line – Por trás desses linchamentos, que são violentos, há motivações como a preservação de valores, conforme você menciona. Parece algo contraditório?
Ariadne Natal – Parece, claro. Mas a revolta se dá justamente por conta da quebra da ordem. É claro que é uma ideia falsa, porque se tem a percepção de que eliminando a pessoa que quebrou a ordem, estaria se restabelecendo a ordem. O discurso das pessoas que cometeram linchamento ou que moram em comunidades onde esses linchamentos acontecem, é de que, depois do linchamento, é possível andar tranquilo pela rua e pelo bairro porque o bandido não está mais lá e de que há paz. Mas é obvio que se trata de uma paz fundada numa violência brutal.
Para quem está olhando de fora, é impossível ver uma situação dessas e pensar que se trata de paz. Por outro lado, temos de entender que se é esse tipo de ação que gera paz, imagina o que as pessoas estão vivendo no momento anterior ao linchamento. Então, essa situação está relacionada a uma série de privações, aliada a uma percepção de que a criminalidade é presente, alta e de que não há respostas para a resolução desse caso, mas de que a partir do linchamento algo foi feito.
O sistema de Justiça é muito invisível e as pessoas não veem a coisa acontecer, ou seja, uma pessoa pode ser julgada e condenada, mas não vemos notícia disso; só temos notícia do crime e parece que nada está sendo feito. O linchamento, ao contrário, é uma ação extremamente pública, e para aquelas pessoas que têm uma sede de resolução — que não é justiça, mas é vingança —, o linchamento é uma possibilidade de ver que algo foi feito. Existe um apelo emocional muito forte nos linchamentos, por isso eles geram uma sensação de que há resolução.
Além disso, as pessoas que participam de linchamentos são pessoas das próprias comunidades, ou seja, não são malucos e psicopatas, são pessoas comuns. As notícias falam que os participantes de linchamentos são moradores do local, são membros de uma família. Nós entendemos o anseio, mas o que se coloca em questão é: por que essa resposta? Ela é a mais adequada? Vai realmente trazer tranquilidade? É possível uma tranquilidade fundada na violência? A percepção do problema é compartilhada, mas o acordo com a resolução é que não é. Esse é um tipo de situação que gera debate, porque para muitas pessoas o linchamento é aceitável e gera uma resposta. Trata-se de uma controvérsia muito grande.
"Respeitar direitos não significa não fazer justiça" |
IHU On-Line - Que ações ou mudanças estruturais poderiam ser desenvolvidas para conter esse tipo de ação?
Ariadne Natal – Tem de pensar em algo pontual, a começar pela própria discussão sobre o assunto, para mostrar que esse tipo de ação não é eficiente no sentido de combater a criminalidade, ou seja, esse tipo de ação não vai diminuir o número de crimes. Mas, para impedir esses linchamentos, tem de trabalhar com as causas, as quais estão relacionadas com essa percepção de que as instituições não darão as respostas que as pessoas esperam. Se as pessoas se sentissem seguras e achassem que poderiam recorrer à polícia, à Justiça, elas não estariam propensas a agir dessa maneira. Elas estão propensas justamente porque não confiam na capacidade que essas instituições têm. É preciso restabelecer essa confiança e mostrar que respeitar direitos não significa não fazer justiça. Pelo contrário, quando você dá o direito de defesa a uma pessoa, direito de que ela possa ser julgada e pague sua pena, esse não é um processo injusto. É preciso construir a ideia de que ter a lei funcionando é bom para todo mundo e ir contra ela é ruim para todo mundo. Ou seja, quando as pessoas desrespeitam a lei, elas também estão cometendo um crime.
Por Patricia Fachin
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Linchamentos: “É possível uma tranquilidade fundada na violência?”. Entrevista especial com Ariadne Natal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU