30 Outubro 2014
“Gostaria que, no Brasil, a razão objetiva para adoção de políticas inclusivas fosse a alteridade, além do reconhecimento da nossa história, desta pluralidade de origens que alguns por ora decidiram negar”, afirma a advogada.
Foto: revistaescola.abril.com.br |
“A exigência de autorização para trabalho prévia ao ingresso no país, por exemplo, baseia-se numa grande hipocrisia, pois hoje os migrantes engrossam o mercado informal brasileiro.” É com base nesse, entre outros argumentos, que Deisy Ventura defende o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, que propõe o abandono do Estatuto do Estrangeiro, que regula a situação jurídica dos imigrantes no país. Segundo ela, independente de haver uma mudança na lei, “os migrantes virão, de qualquer modo, enquanto existir emprego. Mas virão irregularmente, o que amplia a vulnerabilidade de todos os envolvidos”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, ela explica que o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil está alicerçado em três diretrizes: “a mudança de paradigma na política migratória, atualmente subordinada à lógica da segurança nacional e controle documental voltado ao acesso de mercado de trabalho; o abandono da tipologia ‘estrangeiro’, que tem conotação pejorativa, em benefício da expressão ‘migrantes’, que inclui os brasileiros que deixam o país; e a incorporação de reivindicações da sociedade civil como a criação de um órgão estatal centralizado para atendimento aos migrantes, em especial para regulamentação, pois o Brasil é um dos únicos países no mundo que não possui um serviço especializado de migrações”.
Entre as defensoras de uma nova legislação para regulamentar a imigração, Deisy Ventura enfatiza que as mudanças são necessárias para “adaptar a legislação brasileira à realidade de mobilidade humana e globalização econômica. Promover a regularização migratória permitirá ao Estado formular políticas específicas para migrantes, mas, sobretudo, incluir os migrantes nas políticas já existentes”. Segundo ela, “não se trata de tirar dos brasileiros para dar aos estrangeiros, como dizem, com evidente má-fé, os que vociferam pelo fechamento das fronteiras (e, veja que ironia, por vezes têm um sobrenome alemão ou italiano). Que vantagem tem um brasileiro em conviver com alguém que está à margem da sociedade?
Quem ousaria dizer que a educação e a saúde brasileira não comportam cerca de 1% a mais de atendimentos ou vagas? E quem não conta com orgulho que seus parentes no exterior estão estudando, trabalhando e tendo seus direitos reconhecidos?”
Foto: www.iea.usp.br |
Deisy Ventura é mestre em Direito Comunitário e Europeu e doutora em Direito Internacional pela Universidade de Paris 1. Foi professora do Programa de Pós-Graduação em Direito na Unisinos e professora adjunta e Pró-Reitora de Assuntos Estudantis da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Atualmente é professora de Direito Internacional e Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais dilemas e dificuldades quando se trata de abordar a questão das migrações?
Deisy Ventura - Creio que as principais dificuldades podem ser explicadas em dois diferentes planos: no âmbito do Estado e no seio da sociedade. No que se refere ao Estado, predominam os paradigmas da segurança (ver o estrangeiro como um inimigo, um agressor em potencial) e do trabalho (política migratória como meio de controle do mercado de trabalho). Ambos são anacrônicos e equivocados. A exigência de autorização para trabalho prévia ao ingresso no país, por exemplo, baseia-se numa grande hipocrisia, pois hoje os migrantes engrossam o mercado informal brasileiro. Ou seja, os migrantes virão, de qualquer modo, enquanto existir emprego. Mas virão irregularmente, o que amplia a vulnerabilidade de todos os envolvidos. O sonho da migração seletiva nutrido pelos setores mais conservadores de nossa sociedade é uma utopia totalitária. Surpreende-me que as grandes empresas brasileiras não se deem conta do quanto teriam a ganhar com a livre circulação de pessoas.
Em lugar de pressionar o Estado por concessões pontuais para setores que necessitam de mão de obra, elas deveriam compreender que condicionar a regularização migratória ao trabalho previamente contratado, além de empurrar os que aqui chegam sem emprego ao mercado informal e de gerar uma burocracia intragável, outorga ao Estado uma discricionariedade incompatível com o reconhecimento internacional do direito de migrar.
Teoricamente, este controle evitaria violação de direitos sociais. Na prática, porém, ele suprime os direitos sociais de quem não obtém a entrada regular.
Quanto à sociedade, o mais difícil é fazer com que as pessoas vejam o imigrante como a si próprias, ou seja, como alguém que decidiu viver em outro país, o que pode acontecer a qualquer um de nós, por variadas razões. Colocar-se no lugar do outro revela de imediato que condicionar direitos à nacionalidade é um absurdo. Evidencia também que invejar e tratar bem os estrangeiros ricos que aqui chegam, mas rechaçar ou maltratar trabalhadores migrantes, é uma forma de dificultar ou impedir a prosperidade dos que vêm em busca de trabalho e vida digna. Assim como detestamos os estereótipos sobre a cultura brasileira, devemos desconfiar do que nos é dito sobre os trabalhadores migrantes. Dizer que estrangeiros não gostam de trabalhar ou que são bandidos é tão absurdo quanto dizer, por exemplo, que os brasileiros não gostam de trabalhar ou que são bandidos. Em qualquer caso, negar a regularização migratória a quem aqui está é aumentar radicalmente a sua vulnerabilidade. Ademais, ignorar que as pessoas se movem ou confiná-las a um gueto é negar tudo de bom que elas, e nós, temos a dar, o que não beneficia nem brasileiros nem migrantes. Ou seja, ninguém ganha com restrições à mobilidade humana.
IHU On-Line - Quantos imigrantes ingressam no Brasil anualmente? É possível traçar um perfil de quem são os imigrantes que vêm para o país? De quais regiões do mundo eles vêm e quais são as razões que motivam a vinda deles?
“Não dispomos de estatísticas confiáveis sobre migrações internacionais no Brasil”
Deisy Ventura - Não dispomos de estatísticas confiáveis sobre migrações internacionais no Brasil. Por exemplo, não creio que os dados do censo do IBGE, que indicam a presença de cerca de 500 mil estrangeiros em nosso território, correspondam à realidade. Mas mesmo as maiores cifras já citadas (que, repito, não são confiáveis) parecem insignificantes à luz da nossa população de mais de 200 milhões de habitantes, ficando em torno de 1 a 1,5% de nossa população. Não me parece que haja, como dizem alguns veículos de imprensa, um aumento vertiginoso da migração para o Brasil nos últimos anos. Há, na verdade, um novo ciclo de migrações internacionais causado pela globalização econômica, portanto há mais de uma década, que atinge o mundo inteiro, e não é uma invasão: ele é lento e contínuo, com picos que se devem a razões pontuais, como os conflitos armados. Recebemos, por exemplo, dezenas de milhares de migrantes latino-americanos nos últimos dez anos, mas eles são quase invisíveis. Os europeus que fugiram da crise econômica nos últimos anos não suscitam inquietude porque são europeus. Em nossa experiência prática, o que fica evidente é uma mudança no perfil dos imigrantes, mas ainda precisamos de estudos consistentes para fazer esta afirmação sem correr o risco de alimentar preconceitos.
IHU On-Line - Nem sempre os processos migratórios são aceitos pela população local com as justificativas de que os imigrantes irão concorrer com vagas de emprego, terão de utilizar o mesmo sistema de saúde, por exemplo. Como essa discussão tem sido feita no Brasil? A sociedade civil tem uma opinião unânime acerca deste assunto?
Deisy Ventura - Estes são os famosos mitos sobre as migrações. Sobre a saúde, se o problema do SUS fosse a presença de estrangeiros no Brasil poderíamos ficar muito felizes. Infelizmente, o pequeno percentual de trabalhadores migrantes não é, nem de longe, a causa da sobrecarga do atendimento das unidades do SUS. Além disso, os migrantes pagam impostos do mesmo modo que nós. Até os que não conseguiram a regularização migratória pagam impostos, como, por exemplo, o ICMS. Quanto à questão do emprego, não há estudo sério que evidencie perda para brasileiros em matéria de mercado de trabalho, do mesmo modo que não há estudo sério sobre a ameaça que brasileiros no exterior causariam ao mercado de trabalho dos países em que se instalam. Creio que as entidades sociais que lidam com direitos dos migrantes têm absoluta convicção de que se trata de mero preconceito. Quanto à opinião pública, dispondo de pouca informação, quase sempre tendenciosa, é difícil precisar o que nela predomina.
IHU On-Line - Quais são os principais apontamentos da legislação migratória brasileira vigente acerca da migração?
Deisy Ventura - O Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980), assinado pelo General Figueiredo, é um legado da ditadura civil-militar, incompatível com a Constituição Federal de 1988 e com acordos internacionais firmados pelo Brasil. Para citar alguns exemplos, a lei vigente:
Além disso, o Estatuto do Estrangeiro dificulta, burocratiza e em alguns casos até proíbe a regularização migratória. A ideia é deixar o estrangeiro em situação de vulnerabilidade, de modo a desembaraçar-se dele facilmente quando se tornar indesejado.
IHU On-Line - Em que consiste o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil? Quais são as diretrizes dele?
Deisy Ventura - O Anteprojeto consiste, antes de tudo, no completo abandono do Estatuto do Estrangeiro, primariamente por necessidade de compatibilidade com a Constituição Federal e com os tratados internacionais de Direitos Humanos vigentes. Creio que suas diretrizes mais importantes seriam três: a mudança de paradigma na política migratória, atualmente subordinada à lógica da segurança nacional e controle documental voltado ao acesso de mercado de trabalho; o abandono da tipologia “estrangeiro”, que tem conotação pejorativa, em benefício da expressão “migrantes”, que inclui os brasileiros que deixam o país; e a incorporação de reivindicações da sociedade civil como a criação de um órgão estatal centralizado para atendimento aos migrantes, em especial para regulamentação, pois o Brasil é um dos únicos países no mundo que não possui um serviço especializado de migrações.
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“Há, na verdade, um novo ciclo de migrações internacionais causado pela globalização econômica, portanto há mais de uma década, que atinge o mundo inteiro, e não é uma invasão” |
IHU On-Line - O Anteprojeto também indica uma mudança de paradigma na política migratória. Em que consistirá essa mudança e por que ela se faz necessária nesse momento?
Deisy Ventura - Trata-se de, enfim, adaptar a legislação brasileira à realidade de mobilidade humana e globalização econômica. Promover a regularização migratória permitirá ao Estado formular políticas específicas para migrantes, mas, sobretudo, incluir os migrantes nas políticas já existentes. Não se trata de tirar dos brasileiros para dar aos estrangeiros, como dizem, com evidente má-fé, os que vociferam pelo fechamento das fronteiras (e, veja que ironia, por vezes têm um sobrenome alemão ou italiano). Que vantagem tem um brasileiro em conviver com alguém que está à margem da sociedade? Quem ousaria dizer que a educação e a saúde brasileira não comportam cerca de 1% a mais de atendimentos ou vagas? E quem não conta com orgulho que seus parentes no exterior estão estudando, trabalhando e tendo seus direitos reconhecidos?
IHU On-Line - A política inclusiva migratória, tal como o projeto de lei e o Anteprojeto de Lei de Migrações estão propondo, já é realizada em algum outro país do mundo?
Deisy Ventura - Creio que há políticas inclusivas em diversos países do mundo, e também em entidades federativas, em especial nas cidades. A legislação argentina é uma das maiores referências na matéria. Mas não gosto da ideia de apresentar um país ideal, por diversas razões. Uma delas é que, em geral, um Estado possui razões objetivas para promover determinadas políticas (por exemplo, necessidade de mão de obra ou de povoamento de territórios) e não seria adequado ler uma política fora de seu contexto. Gostaria que, no Brasil, a razão objetiva para adoção de políticas inclusivas fosse a alteridade, além do reconhecimento da nossa história, desta pluralidade de origens que alguns por ora decidiram negar.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Deisy Ventura - A recente suspeita de um caso de ebola no Brasil foi uma demonstração cabal de que a ausência de políticas de promoção dos direitos dos migrantes constitui um grave risco de aumento do racismo e da xenofobia em nosso país. A exposição pública ostensiva da identidade de um solicitante de refúgio, identificado também ostensivamente como “o africano” (que chegou até a ser referido em um programa da Globo News como “foragido”), parece ser o grande argumento que faltava para justificar o clamor pela expulsão dos migrantes indesejados e pelo “fechamento” das fronteiras brasileiras. É difícil combater a presença de migrantes ávidos de trabalho e de integração ao nosso país sem deixar transparecer o preconceito. Disseminar a ignorância sobre as formas de contágio e de combate ao ebola serviu então para associar o migrante à doença, ressuscitando velhos fantasmas sobre os estrangeiros. Por exemplo, os milhares de judeus torturados e queimados vivos entre os séculos XV e XVI, acusados de “trazer a peste” a diversos países da Europa. Tecnicamente, os controles de temperatura em aeroportos são inócuos devido à ausência de sintomas quando o vírus está incubado, e as restrições de entrada conduzem à clandestinidade que só aumenta os riscos de ocultação da doença por temor às autoridades. Em outras palavras, as restrições adotadas por alguns países fazem parte do circo político. Do ponto de vista da saúde pública, o importante é ter um sistema de saúde de dimensão nacional, público e gratuito, capaz de detectar e tratar a doença. E isto o Brasil mostrou que tem.
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“O mais difícil é fazer com que as pessoas vejam o imigrante como a si próprias”. Entrevista especial com Deisy Ventura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU