03 Mai 2025
Se o melhor da nova esquerda mundial abraçar um novo campismo, agora de alinhamento incondicional com o Estado chinês, as consequências serão terríveis.
O artigo é de Valerio Arcary, professor de história aposentado do IFSP e autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo), publicado por A Terra é Redonda, 01-05-2025.
1.
Fernand Braudel sustenta, em Civilização material, economia e capitalismo, que uma comparação entre a China e a Europa nos séculos XIII ou XIV, dificilmente teria permitido prever uma superioridade do Ocidente sobre o Oriente.[i] Talvez até o contrário, já que os fluxos, invariavelmente desfavoráveis de metais preciosos do Ocidente para o Oriente, durante séculos, seriam uma das evidências do seu maior desenvolvimento, assim como a espantosa diferença de expansão demográfica.
A conquista dos oceanos e, em função deste domínio, o papel hegemônico das potências europeias no mercado mundial teria decidido a seu favor a crescente desigualdade e, finalmente, a posterior colonização do Oriente. Por que a China teria abandonado as rotas comerciais que explorava em Malaca, na Índia até Ormuz e o Golfo Pérsico, garantindo para os seus juncos um intenso tráfico comercial? Por que teria renunciado às prometedoras perspectivas comerciais com o Islã e a Índia?
Segundo Fernand Braudel, o encerramento da China sobre si mesma nos séculos seguintes se explica pela necessidade prioritária de defesa das suas fronteiras ao norte. As ondas de invasão das estepes, um flagelo milenar que oprimiu o Império do Meio, ininterruptamente, levou à construção da maior obra de defesa da história pré-capitalista, a Grande Muralha.
A prioridade defensiva do Império e a preservação da unidade territorial teria inibido as tendências comerciais que se ampliavam com a prosperidade das rotas comerciais com o Islã e com a Índia, e bloqueado uma possibilidade evolutiva distinta. A aposta na segurança teria interiorizado o Império e garantido a unidade política estatal, ao contrário da Europa pulverizada em inúmeros Estados, teria sido um fator de bloqueio ao desenvolvimento da expansão comercial, e a disputa do controle dos oceanos.
Polêmica, mas muito sugestiva, esta hipótese nos permite analisar a desigualdade do desenvolvimento entre Ocidente e Oriente nos últimos quinhentos anos, até à Segunda Guerra Mundial e a vitória da revolução na China.
2.
A principal conclusão de Fernand Braudel, de natureza política, foi que a permanência da unidade política estatal na China, destruída na Europa com o desmoronamento do Império Romano, teria sido o obstáculo para uma dinâmica de expansão comercial pelo Índico que teria permitido uma disputa de hegemonia pelo mercado mundial em formação. A etapa política que estamos vivendo se caracteriza pela inversão desta hegemonia histórica.
A China ameaça a supremacia da Tríade liderada pelos EUA. Já é a maior potência comercial. Os EUA ainda mantêm a supremacia financeira e militar. Pequim abraça uma estratégia de concertação e aposta na negociação porque prefere ganhar tempo. Não é a estratégia de Washington sob Trump. Nunca aconteceu uma transição pacífica de liderança no sistema de Estados.
No século XVII Amsterdam e Londres mediram forças em três guerras.[ii] No século XVIII a França e a Inglaterra mediram forças em quatro guerras, e a superioridade britânica só se consolidou com a derrota de Napoleão em Waterloo.[iii] No século XX a Alemanha desafiou a supremacia em duas guerras mundiais. Poderá ocorrer uma passagem pacífica por sucessivas aproximações? Ninguém sabe.
As esperanças que todas as correntes socialistas ou revolucionárias (nem todos os socialistas eram revolucionários, e nem todos os revolucionários eram socialistas) do século XIX depositaram no proletariado como sujeito social, contrastam com o ceticismo deste início do século XXI. Parece, no entanto, pouco razoável afastar a hipótese de crises revolucionárias de grande intensidade nos países mais urbanizados.
Uma das razões sérias para esta mudança de atitude remete ao tema do substitucionismo social, que operou em uma escala nunca vista, no que poderíamos denominar a terceira onda da revolução mundial no pós-guerra, com o deslocamento do eixo da luta de classes para a Ásia, América Latina e África.
Afinal, a vitória da revolução chinesa, a maior revolução camponesa do século XX, uma revolução socialista em que o proletariado urbano não ocupou, essencialmente, nenhum papel, prostrado pela esmagadora derrota de 1927, mais do que um processo sui generis, estabeleceu uma referência, durante um quarto de século, para a passagem da fase democrático-nacional das revoluções anti-imperialistas à fase anticapitalista.
O substitucionismo social verificou-se em uma escala e proporção espantosa, superando (e surpreendendo) tudo o que o marxismo clássico poderia ter imaginado em termos de radicalização das massas camponesas. Vladímir Lênin se referiu inúmeras vezes às “duas almas” do camponês arruinado, uma esfomeada de terra e propriedade, e a outra com nostalgia de igualdade, sonhadora de um passado comunitário, em que a aldeia possuía e cultivava a terra em comum.
A história recente da América Latina e não só, tem nos oferecido, também, os exemplos de novos “Münzers” e seus modernos “anabatistas”. Na célebre correspondência de Marx com os narodniks nas décadas de 1870/80, organização revolucionária que buscava na revolução agrária a força motriz da revolução russa, o tema do substitucionismo social já tinha sido levantado, sem que Marx eliminasse a possibilidade, a priori. Ainda assim, o processo da revolução mundial no pós-guerra foi além de tudo que se poderia prever. Na China surgiu uma República operária-camponesa, um Estado dirigido por um partido-exército revolucionário que rompeu com o capitalismo.
Não é possível compreender o contexto atual, se não partirmos de uma referência fundamental que está na raiz da primeira “excepcionalidade chinesa”: na China ocorreu a maior revolução camponesa da história. Mas foi uma revolução socialista “sem proletariado”.
Isaac Deutscher faz interessante explicação do papel da liderança de Mao Zedong, apresentado mais como exército camponês do que como partido operário, indo à ruptura com o “bloco das quatro classes”, sob a pressão do imperialismo americano: “Conduzindo a revolução além da fase burguesa, o maoismo foi ativado não apenas pelos compromissos ideológicos, mas por um interesse nacional vital. Ele estava determinado a transformar a China em uma nação moderna e integrada. Toda a experiência do Kuomitang estava lá para provar que isso não podia ser conseguido na base de um capitalismo retardado e, em grande parte importado, sobreposto à classe proprietária de terras e patriarcal. A propriedade nacional da indústria, dos transportes e dos bancos e uma economia planificada eram as pré-condições essenciais para qualquer desenvolvimento racional, mesmo incompleto, dos recursos da China e para qualquer avanço social. Assegurar essas pré-condições significava iniciar uma revolução socialista. Mao fez exatamente isso. Isto não quer dizer que tenha transformado a China em uma sociedade socialista, mas ele usou cada grama da energia da nação para erigir a estrutura socioeconômica indispensável ao socialismo e para trazer à existência, desenvolver e educar a classe operária, a qual, somente ela, poderia fazer do socialismo uma realidade final”.[iv]
3.
O destino político costuma ser implacável diante dos erros teóricos. Aqueles na esquerda mundial que subestimaram a capacidade da liderança chinesa de fazer e defender a revolução erraram. Mas, na atual conjuntura o perigo inverso, uma exaltada defesa da China que conclui que seria um país em transição ao socialismo é, também, equivocada. O que parece estar em curso é um lento deslocamento da relação política de forças no sistema de Estados favorável ao Oriente, uma espetacular façanha histórica.
A China não está perseverando, nos últimos quarenta anos, uma passagem ao socialismo, como entre 1949/78, mas ao capitalismo. Est é a segunda excepcionalidade chinesa: trata-se da economia capitalista mais dinâmica do mundo. Essa é, aliás, a formulação oficial da direção chinesa: a necessidade de uma NEP de longa duração, ou transição ao capitalismo, para dentro de duas ou mais gerações, fazer um novo giro histórico e reiniciar a passagem ao socialismo.
Mas esta não é uma estratégia política. Uma estratégia política é uma aposta em um projeto balizado pelo tempo de sujeitos que estão vivos. Em 50 anos, a maioria de nós, e da população chinesa, estaremos mortos. Acreditar em um discurso ideológico desta natureza equivale a apostar na vida depois da morte. Ninguém pode prever, seriamente, o que vai acontecer no mundo ou na China sequer nos próximos dez anos.
Um modelo econômico que aprofunda a desigualdade social por uma etapa indefinida não pode ser considerado socialista. A própria liderança do Estado chinês teorizou a necessidade de métodos capitalistas para garantir o impulso do crescimento econômico mais exuberante dos últimos trinta anos. Em perspectiva, o processo de restauração capitalista teria se iniciado primeiro na China, onde a transição se fez por cima e, só depois e inspirado no “pioneirismo” de Deng Xiaoping, Gorbatchev teria feito a mesma escolha estratégica.
As correntes “campistas” se dedicaram incansavelmente, durante décadas, à defesa incondicional das “realizações” da construção do socialismo na URSS, ainda que as evidências socioeconômicas, entre outras, contrariassem, de forma cada vez mais indisfarçável, que o regime burocrático de Brejnev podia ser qualquer coisa (daí uma infindável polêmica sobre a sua natureza de classe e histórica), menos um regime em transição ao socialismo.
Se algo parece “granítico” nas lições da derrota histórica na URSS é que uma casta burocrática, a nomenclatura, se consolidou no poder por três gerações e desenvolveu interesses próprios. Diante da crise se dividiu, e tencionou até o limite da guerra civil. Venceu a fração restauracionista. Não é possível analisar a experiência chinesa do século XXI sem considerar que a liderança de Deng Xiaoping estudou e tirou lições do processo de Gorbatchev, e conseguiu até agora evitar os mesmos erros. Esta é a terceira excepcionalidade chinesa: a restauração gerou um híbrido de, talvez, capitalismo de Estado, mas a liderança do partido comunista permanece no poder.
O Estado chinês era uma república operária-camponesa com grotescas deformações burocráticas que iniciou uma transição ao socialismo, mas chocou com obstáculos objetivos colossais: o dramático atraso histórico herdado de uma colonização imperialista por mais de cem anos. Quarenta anos depois do início de uma restauração capitalista controlada, qual é hoje a natureza social deste Estado?
Que haja um híbrido de relações sociais capitalistas e pós-capitalistas não autoriza a conclusão de que o Estado chinês já seja capitalista. Se não é a burguesia que está no poder não se pode concluir que o Estado seja capitalista. O exercício de abstração exigiria concluir que o aparelho burocrático do partido-exército se eleva sobre as classes sociais, e substitui a burguesia ao serviço da burguesia. Uma hipótese esdrúxula.
Símbolos não são senão adereços ideológicos, mas nenhuma burguesia aceitaria ter como bandeira nacional do seu Estado a bandeira vermelha, nem aceitaria nomear o seu partido como partido comunista. Mas a ausência da burguesia interna no controle do Estado, tampouco legitima que permanece sendo um Estado dos trabalhadores, se o programa do governo favorece, há 40 anos, a ilimitada acumulação de capital privado, fortalece a burguesia, e aumenta a desigualdade social.
Quarenta anos é um tempo superior ao intervalo de uma geração. Estamos, portanto, diante de um dilema teórico. A melhor hipótese, ensina o método, é a mais simples. Se quem controla o Estado há quase meio século, é uma casta burocrática consolidada em trono de um projeto de restauração, então, talvez, a melhor caracterização é que o Estado é burocrático.
4.
Esta é a quarta excepcionalidade chinesa: a natureza social do Estado mudou, mas o regime político não. Em linguagem marxista teria acontecido uma contrarrevolução social sem uma revolução política democrática. A definição de que o Estado ainda seria uma República dos trabalhadores parece insustentável depois de quarenta anos de restauração capitalista. Se esta hipótese é consistente o desafio teórico é compreender quando ocorreu uma mudança no Estado. Mais importante: por quê?
Historicamente, tudo sugere ter sido a partir da “substituição” do núcleo dirigente que foi formado sob direção de Mao Zedong durante a revolução cultural, entre 1966/76, conhecido como o “bando dos quatro”: Jiang Qing (esposa de Mao), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan associados ao general Lin Biao. A luta de frações foi brutal e impiedosa. Um mês depois da morte de Mao foram destituídos e presos, em um golpe de estado palaciano liderado por Hua Guofeng.[v]
Deng Xiaoping, uma das principais lideranças históricas do partido, da Longa Marcha até a revolução, preso, torturado e exilado durante a revolução cultural, foi reabilitado e assumiu o poder em 1978, e permaneceu à frente do partido, exército e Estado até os anos noventa do século passado.
A questão é saber como foi possível mudar a natureza social do Estado sem mudar o regime. Um Estado burocrático é um fenômeno histórico novo. Não ter acontecido antes não autoriza concluir que não seja possível. Na sociedade contemporânea não existem somente as classes sociais determinadas pelo lugar que ocupam no processo produtivo, grosso modo, capitalistas, trabalhadores e classe média.
Existem outros fenômenos como o lumpen, que desgarra do proletariado, ou o crime organizado, uma fração pequeno-burguesa e até burguesa, quando agiganta na ilegalidade, ou grupos sociais especiais mais homogêneos, como intelectuais profissionais, religiosos e policiais.
Mas o fenômeno mais importante é a alta burocracia estatal. A experiência histórica pós-revolucionária na União Soviética conheceu, de forma pioneira, a formação de uma casta de especialistas da gestão do partido, exército, polícia e Estado. Seria obtuso desconhecer que a classe trabalhadora gera, também, uma burocracia própria em suas organizações, até antes de conquistar o poder.
Uma casta privilegiada não é o mesmo que uma classe de proprietários. Usufrui de regalias, vantagens, benefícios e imunidades, mas não detém o direito de herança, a garantia de transmissão blindada da riqueza. A tragédia histórica da restauração capitalista na ex-URSS e no Leste europeu confirmou que o projeto político-social de toda burocracia é o aburguesamento. Individualmente, haverá exceções, por suposto. Mas um juízo marxista não pode repousar em excepções. As relações promíscuas entre famílias da cúpula do partido comunista e a burguesia interna são públicas. Alguns exemplos foram tão escandalosos que foram punidos pelo próprio regime.
Estado e regime político não são o mesmo. O mesmo Estado pode ter diferentes regimes políticos. Um regime político é a forma institucional que assume a gestão do Estado, a arquitetura do exercício do poder. Na China o regime é uma ditadura de um partido-exército que mantém controle monolítico do poder. Mas não se deve concluir que não haja luta política.
Mesmo em regimes de partidos únicos há frações, correntes de opinião e, também, camarilhas, mais ou menos formais ou dissimuladas, e regras para a disputa de posições, projetos e cargos, que repousam no maior ou menor apoio interno, expressando distintas pressões sociais. O regime é uma ditadura, mas não é totalitário. Uma peculiaridade chinesa tem sido o culto à personalidade dos líderes, e a máxima concentração de poder pessoal.
A imensa autoridade de Deng Xiaoping, último líder da geração pré-revolucionária, favoreceu alguma descentralização, depois dos excessos “asiáticos” do período Mao Zedong. Mas Xi Jinping reverteu desde 2012 essa tendência. Não foi somente por razões defensiva externas que o regime político permaneceu tão fechado e autoritário.
Seria leviano desconhecer o significado do massacre da Praça da Paz Celestial em 1989. Na Tian An Men aconteceu a repressão da juventude que ainda cantava a Internacional foi um crime e trauma histórico. Não foi um “momento Kronstadt”, por analogia coma revolução russa. A escala foi outra. Mas, em perspectiva histórica, a repressão do soviete sobre influência anarquista foi um erro.
Esquecer que o campismo foi uma deformação ideológica com sequelas irreversíveis. A destruição do internacionalismo com o divórcio das lutas no Ocidente e no Leste, e a associação do socialismo à tirania burocrática na URSS estão entre as derrotas mais profundas do marxismo, como movimento político e do movimento dos trabalhadores, em geral.
A estratégia campista tem responsabilidades inescapáveis. A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que os seus regimes políticos tivessem aberrantes deformações burocráticas, um híbrido histórico, necessariamente transitório, colocou a esquerda mundial em uma situação paradoxal e desconcertante.
Deveria defender a natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista, e ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores e da juventude pelas liberdades democráticas, contra os regimes políticos de opressão. Ou seja, uma defesa condicionada ao signo de classe do conflito. Algo muito mais complexo do que uma defesa incondicional ou uma oposição incondicional.
A oscilação do pêndulo foi sempre, muito complexa, originando desequilíbrios: estalinofilia ou estalinofobia. O mesmo problema político se coloca hoje, embora em outra dimensão, face ao Irã ou Coreia do Norte. A defesa de países independentes perante a agressão imperialista não desobriga a crítica e delimitação diante de regimes ditatoriais. Em suma, o campismo simplifica o que não é redutível a fórmulas unilaterais.
Se o melhor da nova esquerda mundial abraçar um novo campismo, agora de alinhamento incondicional com o Estado chinês, as consequências serão terríveis. Os dilemas do internacionalismo não são simples.
Não há como se possa fugir a esta encruzilhada teórica. Da resposta que se ofereça a esta questão depende boa parte das divisões e unificações da esquerda nas próximas décadas. Mas não se pode pedir à juventude que se aproxima da causa socialista que defendam uma bandeira manchada.
[i] BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII, volume 1, As estruturas do cotidiano, Martins Fontes, São Paulo, 1997, p. 21, 34, 36.
[ii] Aqui.
[iii] Aqui.
[iv] DEUTSCHER, Isaac. Ironias da história: ensaios sobre o comunismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 133.
[v] O julgamento dos membros da Camarilha dos Quatro aconteceu em 1980. Jiang Qing e Zhang Chunqiao foram condenados à pena de morte (penas comutadas para prisão perpétua), enquanto Yao Wenyuan e Wang Hongwen condenados a vinte anos de prisão.